por Julius Evola
Nós conhecemos o tipo de interesse que o Zen tem evocado mesmo fora de disciplinas especializadas, desde que foi popularizado no Ocidente por D.T. Suzuki através de seus livros Introdução ao Budismo Zen e Ensaios no Budismo Zen. Esse interesse popular é devido ao encontro paradoxal entre Oriente e Ocidente. O Ocidente adoecido percebe que o Zen possui algo de "existencial" e surrealista a oferecer. A noção Zen de uma realização espiritual, livre de qualquer fé e qualquer laço, sem mencionar a miragem de uma "conquista espiritual" instantânea e de algum modo gratuita, tem exercido uma atração fascinante sobre muitos ocidentais. Porém, isso é verdade, em maior parte, apenas superficialmente. Há uma diferença considerável entre a dimensão espiritual da "filosofia da crise", que se tornou popular no Ocidente como consequência de seu desenvolvimento materialista e niilista, e a dimensão espiritual do Zen, que tem estado enraizada na espiritualidade da tradição budista. Qualquer encontro autêntico entre o Zen e o Ocidente, pressupõe, em um ocidental, ou uma predisposição excepcional, ou a capacidade de operar uma metanoia. Por metanoia eu quero dizer uma virada interior, afetando não tanto suas "atitudes" intelectuais, mas uma dimensão que em cada tempo e cada lugar tem sido concebida como uma realidade mais profunda.
O Zen possui uma doutrina secreta que não pode ser encontrada nas escrituras. Ela foi transmitida pelo Buda a seu discípulo Mahakassapa. Essa doutrina secreta foi introduzida na China por volta do século VI por Bodhidharma. O cânone foi transmitido na china e no Japão através de uma sucessão de professores e "patriarcas". No Japão é uma tradição viva e possui muitos adeptos e numerosos Zendos ("Salões de Meditação").
No que concerne ao espírito que informa a tradição, o Zen pode ser considerado uma continuação do Budismo primitivo. O Budismo emergiu como uma reação vigorosa contra a especulação teológica e o ritualismo vazio na qual a antiga casta sacerdotal hindu havia decaído após possuir uma sabedoria sagrada e viva desde tempos antigos. O Buda fez tábula rasa de tudo isso - focando ao invés no problema prático de como superar o que na mentalidade popular é compreendido como o "sofrimento da vida". Segundo ensinamentos esotéricos, esse sofrimento era considerado como o estado de caducidade, agitação, "sede" e esquecimento típico das pessoas comuns. Tendo seguido o caminho que levava ao despertar espiritual e à imortalidade sem auxílio externo, o Buda indicou o caminho para queles que sentiam uma atração por ele. É sabido que Buda não é um nome, mas um atributo ou título significando "o Desperto", "Aquele que alcançou a iluminação". O Buda mantinha silêncio sobre o conteúdo de sua experiência, já que ele queria desencorajar as pessoas de atribuírem à especulação e à filosofia uma primazia sobre a ação. Portanto, diferentemente de seus predecessores, ele não falava sobre Brahman (o absoluto), ou sobre Atman (O Eu transcendental), mas empregava apenas o termo nirvana, sob risco de não ser compreendido. Alguns, em verdade, pensavam, em sua falta de entendimento que o nirvana devia ser identificado com a noção de "nada", uma transcendência inefável e evanescente, quase chegando aos limites do inconsciente e a um estado de não-ser inconsciente. Assim, em um desenvolvimento posterior do Budismo, o que ocorreu novamente, mutatis mutandi, foi exatamente a situação contra a qual Buda havia reagido; o Budismo se tornou uma religião, completa com dogmas, rituais, escolasticismo e mitologia. Ele eventualmente se diferenciou em duas escolas: Mahayana e Hinayana. A primeira era mais grandiloquente em metafísica e o Mahayana eventualmente se tornou complacente com seu simbolismo abstruso. Os ensinamentos da segunda escola eram mais estritos e diretos, e ainda assim preocupada demais com a mera disciplina moral que se tornou cada vez mais monástica. Assim o núcleo essencial e original, nomeadamente a doutrina esotérica da iluminação, quase se perdeu.
Nesse momento crucial o Zen apareceu, declarando a inutilidade desses supostos métodos e proclamando a doutrina do satori. Satori é um evento interior fundamental, uma súbita descoberta existencial, correspondendo em essência àquilo que eu chamei de "despertar". Mas essa formulação era nova e original e constituía uma mudança radical em abordagem. O nirvana, que já foi considerado como o suposto Nada, como extinção, e como o resultado final de um esforço por obter a liberação (o que segundo alguns pode demandar mais do que uma vida), agora passou a ser considerado como a condição humana normal.
Por essas luzes, cada pessoa possui a natureza de Buda e cada pessoa já está livre, e portanto, situada acima e além do nascimento e da morte. É apenas necessário tornar-se consciente disso, perceber isso, ver dentro da própria natureza, segundo a principal expressão do Zen. O satori é como uma abertura atemporal. Por um lado, o sator é algo súbito e radicalmente diferente de todos os estados humanos de consciência; é como um trauma catastrófico dentro da consciência ordinária. Por outro lado, o satori é o que leva de volta, em um sentido superiro, àquele que devia ser considerado como normal e natural; assim é o exato oposto de um êxtase, ou transe. É a redescoberta e apropriação da própria natureza: é a iluminação, que faz emergir da ignorância ou do subconsciente a realidade profunda do que foi e sempre será, independentemente das próprias condições em vida. A consequência do satori é uma maneira completamente nova de olhar para o mundo e para a vida. Para aqueles que o experimentaram, tudo é o mesmo (coisas, outros entes, o próprio eu, "céu, os rios e a vasta terra"), e ainda tudo é fundamentalmente diferente. É como se uma nova dimensão fosse acrescentada à realidade, transformando o sentido e valor. Segundo os Mestres Zen, a característica essencial da nova experiência é a superação de cada dualismo: de interior e exterior; de Eu e não-Eu; de finitude e infinitude; ser e não-Ser; aparência e realidade; "vazio" e "cheio"; substância e acidente. Outra característica é que qualquer valor posto pela consciência finita e confusa do indivíduo não é mais discernível. E assim, o liberto e o não-liberto, o iluminado e o não-iluminado, são uma e a mesma coisa. O zen efetivamente perpetua a equação paradoxal do Budismo Mahayana, nirvana-samsara, e o ditado taoísta "o retorno é infinitamente longínquo". É como se o Zen dissesse: a liberação não deve ser buscada no próximo mundo; o próprio mundo é o próximo mundo; é liberação e não precisa ser liberado. Esse é o ponto de vista do satori, da iluminação perfeita, da "sabedoria transcendente" (prajnaparamita).
Basicamente, essa consciência é uma modificação do centro do eu. Em qualquer situação e em qualquer evento da vida ordinária, incluindo os mais triviais, o senso ordinário, dualista e intelectual de si mesmo é substituído por um ser que não mais percebe um "eu" oposto a um "não-eu", e que transcende e supera qualquer antítese. Esse ser eventualmente passa a desfrutar de uma perfeita liberdade e incoercibilidade. Ele é como o vento, que sopra para onde quiser, e como um ser nu que é tudo após "deixar ir" - abandona tudo, abraçando a pobreza.
O Zen, ou pelo menos o sua corrente principal, enfatiza o caráter descontínuo, súbito e imprevisível da revelação do satori. Em relação a isso, Suzuki falhou quando ele discordou das técnicas usadas nas escolas hindus como a Samkya e o Yoga. Essas técnicas também eram contempladas nos textos budistas primitivos. Suzuki empregou a símile da água, que em um momento se torna gelo. Ele também usou a símile de um alarme, que, como consequência de alguma vibração, subitamente dispara. Não há disciplinas, técnicas ou esforços, segundo Suzuki, que por conta própria possam levar ao satori. Ao contrário, é afirmado que o satori não raro ocorre espontaneamente, quando se exauriram todos os recursos de seu ser, especialmente o intelecto e a faculdade lógica do entendimento. Em alguns casos diz-se que o satori é facilitado por sensações violentas e mesmo pela dor física. Sua causa pode ser a mera percepção de um objeto bem como de qualquer evento na vida ordinária, desde que uma certa predisposição latente exista no sujeito. Em relação a isso, alguns equívocos podem ocorrer. Suzuki reconheceu que "genericamente falando, não há indicações sobre o trabalho interior que precede o satori". Porém, ele falou sobre a necessidade de primeiro passar por "um autêntico batismo de fogo". Afinal, a própria instituição dos chamados "Salões de Meditação" (Zendo), onde aqueles que buscavam obter um satori se submetiam a um regime de vida parcialmente análogo ao de algumas ordens religiosas católicas, indica a necessidade de uma preparação preliminar. Essa preparação pode durar vários anos. A essência do Zen parece consistir em um processo de amadurecimento, idêntico àquele no qual quase se alcança um estado de aguda instabilidade existencial. Naquele ponto, o menor empurrão é suficiente para produzir uma mudança de estado, uma descoberta espiritual, a abertura que leva à "visão intuitiva da própria natureza". Os Mestres conhecem o momento no qual a mente do discípulo está madura e apta para se abrir; é então que eles eventualmente dão o empurrão definitivo. Esse empurrão pode às vezes consistir de um simples gesto, uma exclamação, em algo aparentemente irrelevante, ou mesmo ilógico e absurdo. Isso é suficiente para induzir o colapso da falsa noção de individualidade. Assim, o satori substitui essa noção com o "estado normal", e se assume a "face original, que se possuía antes da criação". Não mais se "persegue ecos" e "sombras". Isso sob certs aspectos relembra o tema existencial da "derrota", ou de "naufragar" (das Scheitern, em Kierkegaard e Jaspers). Em verdade, como eu mencionei, a abertura não raro ocorre quando todos os recursos do ser foram exauridos e se tem as costas contra a parede. Isso pode ser visto em relação a alguns métodos práticos de ensino usados pelo Zen. Os métodos mais frequentemente empregados, em um plano intelectual, são o koan e o mondo. O discípulo é confrontado com um ditado ou com perguntas que são paradoxais, absurdas e às vezes até grotescas e "surrealistas". Ele deve labutar com sua mente, se necessário por anos, até que ele tenha alcançado o limite extremo de todas as suas faculdades normais de compreensão. Então, se ele ousar avançar por esse caminho ele pode se deparar com catástrofe, mas se ele puder inverter a situação, ele pode alcançar a metanóia. Esse é o ponto em que o satori é normalmente alcançado. A norma do Zen é a da autonomia absoluta; sem deuses, sem cultos, sem ídolos. Literalmente esvaziar a si mesmo de tudo, inclusive de Deus. "Se encontrares o Buda na estrada, mate-o", enuncia um ditado. É necessário abandonar tudo, sem se apoiar em nada, e então avançar, com a própria essência, até que o ponto de crise seja alcançado. É muito difícil dizer mais sobre o satori, ou compará-lo com as várias formas de experiência mística iniciatória, sejam orientais ou ocidentais. Deve-se passar apenas o período de treinamento em monastérios Zen. Uma vez que o discípulo tenha alcançado o satori, ele retorna ao mundo, escolhendo um modo de vida que se adeque a sua necessidade. Pode-se pensar no satori como uma forma de transcendência que é trazida à imanência, como um estado natural, em cada forma de vida.
O comportamento, que procede da dimensão recém adquirida, que é acrescentada à realidade como consequência do satori, pode ser bem resumida pela expressão de Lao Tsé: "Ser completo na parte". Em relação a isso, é importante perceber a influência que o Zen exerceu sobre o modo de vida extremo oriental. O Zen tem sido chamado de "a filosofia do samurai", e também tem sido dito que "o caminho do Zen é idêntico ao caminho da arquearia", ou ao "caminho da espada". Isso significa que qualquer atividade em sua vida pode ser permeada pelo Zen e assim elevada a um significado superior, a uma "completude", e a uma "atividade impessoal". Esse tipo de atividade é baseada em um senso de irrelevância do indivíduo, que não obstante não paralisa as próprias ações, mas que ao invés confere calma e distanciamento. Esse distanciamento, por sua vez, favorece um empreendimento absoluto e "puro" da vida, que em alguns casos alcança formas extremas e distintas de auto-sacrifício e heroísmo, inconcebíveis para a maioria dos ocidentais (ex.: os kamikaze na Segunda Guerra Mundial).
Assim, o que Jung afirma é simplesmente ridículo, nomeadamente que a psicanálise - mais do que qualquer outra escola de pensamento ocidental, é capaz de compreender o Zen. Segundo Jungo, o satori coincide com o estado de plenitude, desprovido de complexos ou cisões interiores, que o tratamento psicanalítico afirma alcançar sempre que as obstruções do intelecto e seu senso de superioridade são removidos, e sempre que a dimensão consciente da alma é reunido com o inconsciente e com a "Vida". Jung não percebeu que os métodos e pressupostos do Zen são exatamente os opostos dos seus. Não há "subconsciente", como entidade distinta, à qual o consciente deve ser religado; o Zen fala de uma visão supraconsciente (iluminação, bodhi ou "despertar"), que atualiza a "natureza original e luminosa" e que, assim fazendo, destrói o inconsciente. É possível, porém, perceber semelhanças entre a visão de Jung e a do Zen, já que ambos falam sobre o sentimento da própria "totalidade" e da liberdade que se manifesta em cada aspecto da vida.
Porém, é importante explicar o nível em que essas visões parecem coincidir. Uma vez que o Zen encontrou seu caminho até o Ocidente, há uma tendência a "domesticar" e moralizá-lo, minorando suas implicações potencialmente radicais e "antinomicas" (nomeadamente, antitéticas às normas correntes), e enfatizando os ingredientes padronizados que são tão apreciados por pessoas "espirituais", como o amor e serviço ao próximo, mesmo que esses ingredientes tenham sido purificados de forma impessoal e não-sentimental.
Geralmente falando, há muitas dúvidas sobre a "praticidade" do Zen, considerando que a "doutrina do despertar" possui um caráter iniciatório. Assim, ele será capaz apenas de inspirar uma minoria de pessoas, em contraste com as visões do budismo tardio, que assumiram a forma de uma religião aberta para todos, em maior parte um código de mera moralidade. Como o reestabelecimento do espírito do budismo primitivo, o Zen deveria ter sido estritamente uma doutrina esotérica. Ele foi assim como podemos ver ao examinar a lenda de suas origens. Porém, o próprio Suzuki estava inclinado a fornecer um relato diferente; ele enfatizou aqueles aspectos do Mahayana que "democratizam" o budismo (afinal, o termo Mahayana tem sido interpretado como "Grande Veículo", mesmo no sentido de que se estende a audiências mais amplas, e não apenas a alguns eleitos). Se fôssemos concordar completamente com Suzuki, algumas perplexidades sobre a natureza e escopo do satori poderiam surgir. Dever-se-ia perguntar se tal experiência afeta apenas o domínio psicológico, moral ou mental, ou se afeta o domínio ontológico, como é o caso em cada iniciação autêntica. Nesse caso, ele só pode ser o privilégio de um número bastante restrito de pessoas.