por Augusto Fleck
(2022)
O que é noomaquia?
Em primeiro lugar gostaria de dizer que é muito difícil delinear um tema tão extenso e complexo em um momento tão curto. Por isso, minhas primeiras palavras devem ser em tom de alerta e de convite para que, suscitadas as devidas reflexões a respeito do tema apresentado, cada um se sinta movido na direção de um melhor e maior entendimento das concepções duginianas sobre a noomaquia e sua importância para o mundo multipolar. Muito deste conteúdo pode ser encontrado em todos os escritos do professor Dugin, divulgados e debatidos amplamente pela Nova Resistência, assim como na tradução das aulas introdutórias ao tema da Noomaquia, presentes no acervo do blog Legio Victrix.
Sobre a pergunta acima, sua resposta é complexa, mas tentaremos dar alguns passos iniciais. Nossa questão, é, fundamentalmente, quem somos, e nossa luta é, fundamentalmente, uma luta de ideias, uma luta mental. O século XX foi marcado por essa luta, mas essa luta se deu num campo profundamente desigual, em que a essência de quem somos estava dada, ainda que quase imperceptivelmente, por apenas um dos lados. Isso deixa claro que não nos bastam questões ideológicas que não coadunem com nossa essência. Uma integração cultural, política e econômica dentro de um polo civilizacional pode ser, como vemos no caso da UE, uma integração a favor do imperialismo. Um nacionalismo, como recentemente defendido pelo profeta do fim da história liberal, Francis Fukuyama, pode ser uma manifestação deste mesmo liberalismo. Não nos basta sermos um polo íbero-americano nacionalista, se não compreendermos como sê-lo. A resistência deve ser, portanto, de essência. A noomaquia é a revelação desta batalha, sua manifestação no mundo cultural, cultura entendida aqui como perspectiva, cosmovisão, isto é, a visão existencial do mundo.
A Noomaquia, como obra, é um empreendimento colossal, cujas 24 publicações originais se estendem ao longo de um período de 6 anos, de 2014 a 2020, mas cuja origem certamente remonta a todo o processo de formação intelectual de Alexander Dugin. Grosso modo, a noomaquia se inicia com uma busca por algo até então não tão claro, a resistência a um princípio existencial dominante e escravizador de todos os povos: o liberalismo, em todas as suas dimensões, como cosmovisão, como logocentrismo, isto é, um Logos que organiza o mundo mentalmente e é o único mundo possível. Pensemos mais sobre isso.
Dentro do contexto de um mundo unipolar que a todos subjuga, era preciso fazer um novo esforço filosófico na busca de uma alternativa. Certo. Mas o domínio liberal, Dugin aceita, não se trata meramente de uma imposição política e econômica, mas profundamente filosófica. O argumento é que o mundo passa a ser liberal porque nas entranhas do pensamento é inserido o germe, o vírus liberal, em todos os povos, sem exceção, e estes passam a existir como zumbis desse mundo. É preciso então, retornar ao que nos torna humanos, os princípios formadores da nossa visão de mundo e investigar se é possível, enfim, naquele limite essencial e fundamental, pensar o mundo de forma radicalmente diferente, não no sentido de opiniões formadas sobre uma mesma estrutura, mas se é possível estruturar o próprio mundo de maneira totalmente oposta ao liberalismo, se é possível escapar das garras liberais ou se estamos fadados à inevitável assimilação, se nossas resistências são reais ou se são produtos do próprio liberalismo.
É nessa empreitada que a noomaquia surgirá então como realidade, com a qual Dugin se confronta e expõe. Isso começa, portanto, com uma noologia.
Noologia, a desconstrução da mente
A noologia é a disciplina de estudo ou investigação do intelecto humano, o “nous”, um grau profundo da consciência humana, do intelecto que forma nossa relação existencial. É a qualidade que nos torna efetivamente, humanos. Trata-se, portanto, duma investigação de nós mesmos e nossas possibilidades. A procura pela multiplicidade da mente é a base da multipolaridade porque pressupõe fundamentalmente que no mundo não existe apenas uma forma geral do intelecto humano operar.
que nos torna humanos não é a multiplicidade de intelectos, com o intelecto sendo uma coisa geral, mas a multiplicidade como característica fundamental das manifestações do nous. O nous é o nosso despertar para o mundo, é a consciência de existir. O Logos, a palavra, o verbo, o discurso, como veremos, são as “formas” possíveis desse intelecto se manifestar, a própria estrutura da visão humana operando sobre espaços e tempos específicos.
A investigação noológica é operada em diversos níveis ou disciplinas através das quais se desvelam os procedimentos da mente humana e onde os logoi podem transparecer, como num espelho.
Mitologia, religião, filosofia, cultura, ciência, prática diária, economia, linguagem, arte, etc.
Os três logoi, a revelação da mente
A ideia de Logos é um tanto polissêmica e precisa ser esclarecida. Dugin opera a partir da filosofia nietzscheana, que identifica a existência dos logoi apolíneo e dionisíaco como essas estruturas profundas que moldam uma visão e relação com o mundo, cuja dialética fundamenta a tragédia humana. Essa chave seria tardiamente utilizada para a formação de muitos estudos sociológicos e antropológicos que dividem as diferentes manifestações culturais entre, prioritariamente, apolíneas e dionisíacas, a quem interessar, vale ler a própria conceituação nietzscheana a respeitou, ou, por exemplo, as ideias desenvolvidas posteriormente por Ruth Benedict.
O uso do conceito dos logoi e dos deuses gregos não se trata de um conceito absoluto, muito menos uma devoção específica, mas uma categoria analítica, um mecanismo de estudo e compreensão das estruturas a partir de um modelo já conhecido e expandido. Além disso, o uso destes deuses gregos é oportuna porque o mito grego, tão conhecido por nós, possui em si elementos bastante claros dessa guerra entre perspectivas distintas da existência que orientam a vida humana, e porque também, mito e filosofia são duas estruturas distintas através das quais o nous, intelecto, o ponto fundamental da noologia, opera. Por fim, se o Ocidente é reconhecido como uma estrutura logocêntrica, focada nessa categoria, é, portanto, extremamente oportuno contra-atacar desconstruindo a própria filosofia que será combatida, em suas contradições primordiais.
Não obstante, a virada noológica de Alexander Dugin corresponde a uma descoberta posterior ao processo de desconstruir o Logos ocidental e tentar ler o mundo com lentes dionisíacas. Ao tentar investigar a filosofia, a cultura, a metafísica, as ciências, enfim, as diversas dimensões do pensamento humano, Dugin percebe que apesar da multiplicidade de perspectivas sobre o mundo, os dois logoi até então esquadrinhados não dão conta de explicar todos esses fenômenos, ao passo que Dugin percebe o quanto todas elas estão compostas por certos padrões fundamentais que se acomodam em três grandes modelos pré-conscientes ou imaginários (inspirados nos três regimes do imaginário durandianos), os três logoi.
Os três logoi aparecem então como 3 paradigmas fundamentais que estruturam a visão de mundo do ser humano de acordo com suas características, suas estruturas metafísicas. Para tentar deixar isto mais claro, podemos dizer que entre a nossa consciência, nosso intelecto operando diretamente, e o mundo, existem essas estruturas pré-conscientes que ajudam a moldar essa relação espírito-alma-mundo. Elas “moldam” o mundo percebido, através do espaço e tempo, dentro de nós, ao seu modo.
O Logos de Apolo é o Logos solar, diurno, é um domínio de estrutura vertical, voltada para imagens aéreas, a linha reta, a espada, a luz, céu, o transcendente e masculino. Na filosofia, o identificamos com a filosofia platônica, sempre voltado para o alto, para o mundo das ideias, para o plano transcendente.
O Logos de Dionísio é noturno, mas de característica dramática, como em Nietzsche. É o Logos da mobilidade e do equilíbrio, da filosofia Aristotélica dialética, entre o frio e o quente, alto e baixo, entre o raso e o profundo. É o que se pode ver da luz, na escuridão, e a sombra percebida dentro da luz. O Tao chinês é um exemplo de uma perspectiva dionisíaca.
O Logos de Cibele é um Logos noturno místico, ligado ao feminino, é a filosofia materialista de Demócrito, o mundo do ventre terreno, a terra que tudo gera e tudo mata ela mesma. Não há transcendência, porque esta já está dentro do próprio mundo, vida e morte correspondem a um ciclo fechado em si mesmo, é o espaço fechado, o indissociável, a espiral.
Então, cada Logos compõe uma série de elementos “anímicos” que estruturam a nossa forma de ver e existir no mundo de maneiras completamente distintas, inconciliáveis.
A sinfonia noomáquica
A noomaquia é o entendimento fundamental de que estes três logoi estão em conflito, especialmente Apolo e Cibele. A noologia é o estudo que nos mostra a existência deste conflito, enquanto viver a noomaquia é reconhecer-se existencialmente dentro desta guerra noológica, em um polo específico, entendendo que a única via existencial possível é a justa aproximação da sua posição noomáquica, pois ela não é meramente instrumental, ela preenche toda a possibilidade existencial.
O principal princípio da Noomaquia é o seguinte: três Logoi estão em um conflito insolúvel. Eles lutam entre si pela forma do Nous que deve dominar a cultura. A luta dos três Logoi é a chave para entender a estrutura interna da cultura, civilização e identidade da sociedade. E nos dá a explicação das relações inter-étnicas e interculturais. A NOOMAQUIA explica tudo o que é humano e explica como o homem explica o que não é humano. Esses que descrevemos até agora constituem os princípios fundamentais de NOOMAQUIA como base metafísica do mundo multipolar. (DUGIN, Alexander. Introdução à Noomaquia (Lição I) – Noologia: A Disciplina Filosófica das Estruturas Intelectuais).
Quando o nous desperta e a consciência começa a operar sobre o mundo, os três logoi agem imediata e constantemente pelo seu domínio. A mente possui, em si, as três dimensões dos logoi de forma pré-consciente, mas é a sua guerra e resultado, o momento noomáquico que determinará o horizonte existencial de cada cultura.
O momento noomáquico é um momento decisivo na guerra dos logoi, uma vitória logóica portentosa, que dá origem a um horizonte específico e estabelece o norte civilizacional. Ele não encerra a guerra, mas produz uma orientação que deverá ser fortalecida pela própria cultura e seus sujeitos. A questão fundamental do momento noomáquico é conceder uma harmonia dentro de um espaço pré-consciente que é, na origem, uma guerra. Ele enfrentará novos momentos de conflito, novas fronteiras existenciais serão atravessadas, mas os momentos, ou movimentos, definem o processo. Para exemplificar: digamos que uma cultura se forme através de um momento de ímpeto apolíneo, uma vitória olímpica contra as forças ctônicas que operam em nossa alma. A tendência é que a cultura se desenvolva então mais voltada para esse Logos, mas a guerra não termina, e a continuidade dessa cultura depende fortemente do esforço cultural na manutenção da sua forma, que será atacada de dentro pelos logoi reprimidos.
Vamos dar um exemplo: As sociedades indo-europeias primitivas, inalcançáveis no tempo, são muitas vezes presumidas entre sociedades notoriamente patriarcais (apolíneas, nômades) ou matriarcais (cibelinas e sedentárias), dependendo de diversos contextos e elementos; são momentos noomáquicos distintos, Apolíneo ou Cibelino. Quando essas culturas travam um contato, que é conflituoso pela própria alteridade ontológica entre as visões de mundo, o resultado e a assimilação da cultura derrotada implica também uma assimilação, geralmente, de aspectos do seu Logos. Daí opera-se um novo momento noomáquico, uma reestrutura, que pode ser tanto de manutenção quase total do Logos dominante, como um leve ou radical reequilíbrio.
Assim, o processo cultural da noomaquia é como uma sinfonia. Quando há um momento noomáquico, o mito originário (entendido mítica e filosoficamente) aparece como a escolha do tema, a presença constante do leitmotif, uma figuração recorrente; daí se parte de um horizonte que dá timbre à música e um andamento que é seu historial, composto por movimentos específicos, que acima de uma coerência temporal contínua, possuem significados particulares dentro do tema geral. A continuidade do tema e da mesma sinfonia depende do esforço empreendido pelo povo na manutenção do seu existencial, se não, a noomaquia pode virar e a melodia ir para outro caminho.
Noomaquia é a guerra das mentes, é a única e verdadeira guerra total no mundo. Noomaquia quer dizer que existem inúmeras formas de existir e compreender precisamente “o quê” e “como” é existir. Noomaquia é a base do mundo multipolar, porque entende o imperialismo unipolar do mundo liberal anglo-saxão como a tentativa global de impor a vitória de um Logos sobre todos os outros. Não através da conquista, de um novo momento noomáquico que poderia modificar esse próprio Logos, mas da sujeição por mecanismos diversos. A guerra que estamos lutando está dentro de todos nós, em defesa do vero desejo de existir autenticamente.
A busca pelo Logos Brasileiro
A busca pelo Logos é, como vimos, uma busca existencial. Se, como supunha Heidegger, o ser se vê lançado no mundo que é sempre um aí específico, historial, o ser pressupõe essa particularidade. O que nos leva ao verdadeiro motivo dessa comunicação. Se o Logos está atrelado ao ser dos povos, o que é ser brasileiro, Brasil como aí? Para responder a essa pergunta, é necessário compreender a história, as vitórias, as sucessivas formas de Estado, as derrotas e os erros históricos, uma vez que o horizonte existencial está ligado ao espaço, tempo e ao povo de maneira total.
Dugin trata do Brasil dentro de um dos volumes específicos da Noomaquia,O Logos de Ariel,sobre a civilização íbero-americana como um todo, dedicando partes deste texto especificamente à singularidade noomáquica brasileira. Neste sentido, somos uma civilização aberta, cujos processos de formação, profundamente influenciados e interrompidos por forças externas, nos colocaram num estágio de sob-formação.
O Brasil é formado por três grandes macro-estruturas culturais:
- Um domínio solar, português, imperial.
- A diáspora africana de um diurno arcaico com tons dionisíacos.
- A civilização tupi, ligada à terra, ao ctônico, à Grande Mãe cibelina.
Essa combinação é essencial para compreender o Logos brasileiro, ainda profundamente aberto, uma obra inacabada. Embora seja bastante claro que o domínio português exerce um poder civilizacional claro sobre os outros dois ao longo da história, a influência de nossa miscigenação é inegável. Isto é, não se trata de pensar exclusivamente em termos como “genocídio” ou “extermínio” dos povos indígenas e africanos, mas antes uma incorporação destes, na formação de nossa “raça cósmica”. Como quer que olhemos para esse processo, devemos nos afastar das colorações moralizantes, porque elas afastam a percepção da gênese fundamental do nosso destino.
O ímpeto imperial português solar se funde com duas dimensões noológicas distintas na direção de outro ímpeto imperial, a Nova Roma, cujos horizonte e tempo existenciais precisam ser lidos com a devida atenção. Dentro disto, podemos enfatizar alguns elementos bastante elucidativos, como na relação pós República do elemento lusitano da saudade, o sebastianismo pós-imperial que será resgatado, por exemplo, na bossa nova. A saudade corresponde a uma perda não da monarquia em seu sentido mais raso, uma vez que a própria instituição começara a ruir. A saudade compõe um elemento de indiferença ou não reconhecimento do processo que se avizinha, um republicanismo universal e ocidentalizante. A saudade não está totalmente atrelada ao passado no sentido de um império que se dissolveu, mas na presença constante de um elemento do devir, da expectativa de um império já presente dentro de nós no horizonte da reversibilidade temporal. As bandeiras, antes disso, combinam pela primeira e mais fundamental vez os elementos da força desbravadora e nomádica apolínea com a força telúrica do estabelecimento, com a formação de povoamentos. Isso serve para mostrar como todos os elementos civilizacionais, da política à cultura popular, integram o processo de formação e fortalecimento do Logos.
Por fim, já que esta exposição já vai demasiada longa, é importante ressaltar aqui que a influência externa, especialmente inglesa e norte-americana, em diferentes etapas do processo de construção do Brasil, nos infundiram com um aspecto nocivo da modernidade de colonização imperialista, nos separando gradativa e em diversos momentos do nosso horizonte existencial. Esse fenômeno ainda existe e é um dos grandes produtores de uma esquizofrenia civilizacional que preenche tanto a direita de falso nacionalismo quanto à esquerda internacionalista que odeia suas raízes. Retomando a noção de uma sinfonia, o imperialismo sempre opera como uma força dissonante que paralisa a composição, um mal-estar cultural alienante, escondendo em seu próprio andamento as próximas notas, nos paralisando em nosso espaço e tempo, nos dissociando.
O fato do Brasil ser um Logos aberto impõe esse desafio de buscá-lo, de cristalizá-lo, mas é muito mais confortável para a maioria buscar as respostas para o nosso desafio civilizatório nesta dissonância, que ao mesmo tempo que paralisa, entoa um cântico de apaziguamento.
Esta foi apenas uma comunicação introdutória ao tema e aos elementos que compõe a noomaquia brasileira e nosso projeto. Digamos — por que não? —, um momento noomáquico. Nosso desafio se compõe então justamente de reconhecer e fortalecer esse processo, em diversas dimensões e direções: Nossa história, nossa arte, nossa filosofia, nossa ciência, nossa linguagem. Todos esses elementos precisam ganhar centralidade, porque não estão findados e neles reside aquele profundo ímpeto genuinamente nosso (o dasein), do nosso Logos. Através da identificação dessas estruturas que nos são mais íntimas e profundas, o caminho estará aberto. Nossa linguagem deixará de ser apenas sintática, passará a ser existencial e nossa melodia ecoará até a fundação de nossa sinfonia final, a Nova Roma Tropical.