por Alberto Buela
O lúcido pensador italiano Marcello Veneziani começa um belo artigo sobre o antiglobalismo com a seguinte observação:
“Se você prestar atenção neles, os anti-G8 são a esquerda em movimento: anarquistas, marxistas, radicais, católicos rebeldes ou progressistas, pacifistas, verdes, revolucionários. Centros sociais, bandeiras vermelhas. Com o complemento iconográfico de Marcos e do Che Guevara.
Logo te dás conta de que nenhum deles põe em discussão o Dogma Global, a interdependência dos povos e das culturas, o caldeirão e a sociedade multirracial, o fim das pátrias. São internacionalistas, humanitários, ecumenistas, globalistas. Mais: quanto mais extremistas e violentos são, mais internacionalistas e antitradicionais resultam”. [1]
Toma-se consciência de que a oposição a partir da esquerda à globalização é só uma postura que se esgota em uma manifestação. Seattle, Gênova, Nova Iorque, Porto Alegre, mas não acontece nada, “o mundo segue girando”, como dizia Discepolín. É que a política do “progressismo”, como observou argutamente o filósofo, também italiano, Massimo Cacciaria, ordena os problemas mas não os resolve. [2]
Do mesmo se percebe o sociólogo marxista mais relevante da América Ibérica, Heinz Dieterich Steffan que em um recente artigo assinala: “Se a tarefa atual de todo indivíduo anticapitalista é, portanto, absolutamente clara: Por que a ‘esquerda’ e seus intelectuais não a encaram? Por que repetem em fórum depois de fórum a mesma litania sobre a maldade do neoliberalismo e se contentam com suas ritualizadas propostas terapêuticas inspiradas em Keynes, Tobin e Stiglitz? Por que não convertem a realidade capitalista em objeto de transformação antissistêmica, ao invés de mantê-la como muro de lamentações?” [3]
O fracasso rotundo da esquerda, hoje rebatizada “progressismo”, é que, ademais de não ter elaborado, deglutido seria o termo exato, a derrota do “socialismo real” com a implosão soviética e a queda do Muro, não reelaborou suas categorias de leitura, e se ficou ancorado ao mundo categorial de Marx, Engels, Lênin, Rosa de Luxemburgo e eventualmente, Trótski, fazendo arqueologia política.
O mais significativo do século XX, a escola neomarxista de Frankfurt, logo dos esforços de Adorno, Apel, Cohen e Marcuse, termina com o publicitado Habermas e sua teoria do consenso (sem se aperceber que o consenso sempre foi dos poderosos entre si) e seus discípulos renomados James Boham e Leo Avritzer com sua teoria da democracia deliberativa, que como um novo nominalismo pretende consertar as injustiças políticas, econômicas e sociais com palavras. Conversando em uma espécie de assembleísmo permanente.
Se a esquerda está liquidada, o que resta da direita? Pode-se esperar algo dela?
Da direita clássica, tanto do nacionalismo orgânico ou integral ao estilo de Charles Maurras, como do fascista de Mussolini ou do católico de Oliveria Salazar não resta nada. Só trabalhos de investigação históricos e pequenos grupos políticos sem peso em suas sociedades respectivas. Isso sim, resta como direito o neoconservadorismo estadounidense e os governos que lhe são afins. E dessa direita liberal, a única que existe com peso político, só se pode esperar que as coisas piorem para a saúde e o bem-estar dos povos.
Se é assim, denunciamos uma vez mais entre as centenas de vezes que tentamos mostrar, que a dicotomia esquerda-direita é estreita, para não dizer falsa, para encarar uma leitura adequada da realidade.
Hoje, situar-se à esquerda ou à direita é não se situar, é se colocar em um não-lugar, principalmente para o pensador (rechaço de imediato o termo ‘intelectual’) que pretende elaborar um pensamento crítico. E o único método que hoje pode criar pensamento crítico é o dissenso. Dissenso não só com o pensamento único e politicamente correto, mas também e acima de tudo, com a ordem constituída, com o status quo vigente.
O dissenso é estruturalmente uma categoria do pensamento popular, na medida em que o consenso, como vimos, é uma apropriação da esquerda progressista para alcançar a democracia deliberativa que tem muito de iluminada, e também, ainda que em outro sentido, propriedade do liberalismo como acordo dos que decidem, dos poderosos (G8, Davos, FMI, Comissão Trilateral, Bilderberg, etc.)
O dissenso que se manifesta como negação tem sentido distinto no pensamento popular que no culto. Neste último, regido pela lógica da afirmação, a negação nega a existência de algo ou alguém, na medida em que no pensamento popular o que se nega não é a existência de algo ou alguém, mas sua vigência. A vigência pode ser entendida como validade, como sentido. O dissenso nega o monopólio da produtividade de sentido aos grupos ou lobbies de poder, para reserva-la ao povo em seu conjunto, mais além da partidocracia política.
A alternativa hoje é situar-se para além da esquerda e da direita. Consiste em pensar a partir de um enraizamento, de nosso genius loci, diria Virgílio. E não um enraizamento qualquer, mas a partir das identidades nacionais, que conformam as ecúmenes culturais ou regiões que constituem hoje o mundo. Com isso vamos além até mesmo da ideia de Estado-Nação, em vias de esgotamento, para submergirmos na ideia política de grande espaço etnocultural.
A partir dessas grandes regiões é que é lícito e eficaz se propor o enfrentamento à globalização ou americanização do mundo. Fazê-lo como pretende o progressismo a partir do humanismo internacional dos direitos humanos, ou a partir do ecumenismo religioso como ingenuamente pretendem alguns cristãos, é fazê-lo a partir de outro universalismo. Com o agravante de que seu conteúdo encerra um aspecto de louvável, mas vazio, inverossímil e ineficaz à hora do enfrentamento político.
Mas este enfrentamento está dando na mesma, apesar da falência dos pensadores em não poder ainda elaborá-lo, através do surgimento dos diferentes populismos, que mais além dos problemas que apresentam para qualquer espírito crítico, estão mudando, como observa Robert de Herte (4) as categorias de leitura. Assim a oposição entre burgueses e proletários da esquerda clássica vai sendo substituída pela de povo vs oligarquias, principalmente financeiras e as de esquerda e direita pela de justiça e segurança.
Assim, enquanto que partindo da esquerda progressista a crítica à globalização fica limitada à não extensão de seus benefícios econômicos à humanidade mas só a uns poucos. Porque a esquerda, por seu caráter internacionalista não pode denunciar o efeito de desenraizamento sobre culturas tradicionais e sobre as identidades dos povos. Sua denúncia se transforma assim, em um reclame formal para que a globalização avance unida aos direitos humanos.
Por outro lado, é a partir dos movimentos populares que se realiza a oposição real às oligarquias transnacionais. É a partir das tradições nacionais dos povos que melhor se apresenta a oposição à sociedade global desenraizada, a esse imperialismo desterritorializado de que falam Hardt e Negri. É a partir da atitude inconformista que se rechaça a imposição de um pensamento único e de uma sociedade uniforme, e se denuncia a globalização como um mal em si mesmo.
É que o pensamento popular, se é tal, pensa a partir de suas próprias raízes, não tem um saber livresco ou ilustrado. Pensa a partir de uma tradição, que é a única forma de pensar genuinamente segundo Alasdair MacIntyre (6), dado que “uma tradição viva é uma discussão historicamente desenvolvida e socialmente encarnada”. Pelo que resulta impossível aos povos e aos homens que os encarnam se situar fora de sua tradição. Quando o fazem se desnaturalizam, deixam de ser o que são. Já são outra coisa.
Notas
1 – O Antiglobalismo de Direita. Marcello Veneziani (1955) jornalista do Giornale e do Menssaggero e colaborador com a RAI, é autor de vários ensaios entre os quais se destacam: La Rivoluzione Conservatrice in Italia (1994), Processo all’Occidente (1990) e L’Antinovecento (1996). Podemos inscrevê-lo dentro da corrente de pensamento inconformista.
2 – Massimo Cacciari (1944). Filósofo, deputado do PC e Prefeito de Veneza até 1993. Autor de vários ensaios: L’Angelo Necesario (1986), Dell’Inicio (1990), Dran: Meridianos de la Decisión en el Pensamiento Contemporáneo (1992), Geo-Filosofia dell’Europa (1995). Pensador dissidente da esquerda europeia.
3 – A Bancarrota da Esquerda e de seus Intelectuais (31-3-04). Heinz Dieterich Steffan, é sociólogo e professor na UNAM de México e colunista do diário El Universal. Orador itinerante em todos os países da América de um novo projeto histórico do marxismo. É autor de três dezenas de livros entre os quais se destacam: El Fin del Capitalismo Global (1999) y La Crisis de los Intelectuales en America Latina (2003).
4 – Robert de Herte é o pseudônimo de Alain de Benoist (1943). Editor das revistas Eléments e Krisis e autor de inúmeros trabalhos entre os quais cabe recordar Vu du Droite (1977), Orientations pour des Années Decisives (1982), L’Empire Intérieur (1995), Au-dela des Droits de l’Homme (2004). É o mais significativo pensador de uma corrente de pensamento inconformista, alternativo e anti-igualitarista onde se destacam, entre outros, Guillaume Faye, Robert Steuckers, Julien Freund, Alessandro Campi, Claude Karnoouh, Tarmo Kunnas, Thomas Molnar, Dominique Venner, Pierre Vial, Javier Esparza, Giorgio Locchi, etc.
5 – Sobre a relação entre pensamento popular e negação pode-se consultar o livro La Negación em el Pensamiento Popular (1975) do filósofo argentino Rodolfo Kusch (1922-1979), assim como nosso trabalho: Papeles de un Seminario sobre G. R. Kusch (2000). Entre os não poucos filósofos originais gerados pela Argentina (Taborda, de Anquín, Guerrero, Cossio, Rougés) Gunther Rodolfo Kusch ocupa lugar destacado. Não só pela originalidade de suas reflexões filosóficas mas também porque os mesmos geraram toda uma corrente de pensamento através da denominada filosofia da libertação em seu ramo popular.
6 – Alasdair MacIntyre (1929) é um filósofo escocês que vive e ensina nos EUA e que se destacou por sua crítica à situação moral, política e social criada pelo liberalismo. Seus trabalhos são a base de todo o pensamento comunitarista norteamericano. Seus livros mais destacados são: After Virtue (1981), Whose Justice? Which Rationality? (1988), Three Rival Versions of Moral Enquiry (1990).