Entrevista concedida ao jornalista argentino Marcelo Taborda, do jornal La Voz del Interior
Desde a vitória eleitoral de Donald Trump, a Rússia tem sido acusada de ter intervindo nela e em qualquer votação importante que ocorra no planeta: o que há de verdadeiro nisso e o que você pensa a respeito?
Para começar, creio que devemos compreender isto de maneira simbólica. Comparemos o lugar que a Rússia ocupava há 20 anos, quando nada se falava ao seu respeito e seu poder regional era muito limitado – quando seguia o contexto da civilização ocidental, imitando os Estados Unidos, como fez Boris Yeltsin: isso era o fracasso total. O fato de que, hoje, depois de tantos anos, a Rússia é representada como um poder global que pode exercer influência sobre o “Número Um”, seja isso falso ou verdadeiro, que afirmem que ela pode influenciar as eleições americanas, significa que a Rússia retornou. A Rússia está de volta e joga um papel no poder global. Aos olhos dos Estados Unidos e dos Estados que seguem sua a linha globalista e liberal, a Rússia representa o mal absoluto. No entanto, para a maioria da humanidade, representa uma nova potência que ressurge, que reaparece, e que abre a possibilidade de escolha… Eu olho bastante para o Oriente Médio e vejo como o retorno da Rússia à Síria é visto pelos árabes, incluindo os curdos e os sauditas, como algo próximo a um milagre: todos veem que a situação não é unipolar, mas multipolar. É possível fazer alianças ou se unir aos Estados Unidos e seus seguidores, mas também com a Rússia (como poder oposto).
Creio que a ingerência da Rússia nas eleições americanas é exagerada, mas o lugar simbólico está demarcado corretamente. Pessoalmente, propus aos nossos governantes que fossem mais ativos nestas eleições, mas eles escolheram a estratégia tradicional. Os oligarcas russos financiaram a campanha de Hillary Clinton porque a maioria dos analistas pensava que ela venceria. Vladimir Putin tinha simpatia por Donald Trump e eu mesmo o apoiava ativamente, mas isso não é ingerência.
A recente expulsão de funcionários e diplomatas entre Rússia e Estados Unidos não mostra uma boa relação.
Isso acontece porque Trump está exilado, na posição de um sequestrado ou de um refém. E isso porque os mecanismos governamentais, bem como todo o sistema norte-americano, estão nas mãos dos globalistas, os quais sabotam sua linha política. Putin utiliza a expressão deep State, ou Estado Profundo, sendo este Estado Profundo norte-americano uma instituição tradicional. Tal posição wilsoniana (relativa a Woodrow Wilson e a sua atitude na Primeira Guerra) é uma tradição que tem mais de 100 anos. Trump quer regressar, não a [Ronald] Reagan, mas para a época pré-wilsoniana. Trata-se de algo revolucionário e muito relevante, porque conta com o apoio do povo (não é algo marginal). Porém, o Estado Profundo o sabota e quer acusá-lo de ser um agente russo, de trabalhar para Moscou, tudo no sentido de destruir tais relações que começam, apesar de tudo, a se estabelecer.
Eu, que sou considerado um representante do antiamericanismo mais radical da Rússia, posso afirmar que nossa atitude frente aos Estados Unidos está mudando radicalmente depois da eleição de Trump. Nós distinguimos o Estado Profundo norte-americano do povo que está naquele país. Já não se trata de uma geopolítica horizontal, com a posição de um Estado russo versus um Estado norte-americano, mas de uma geopolítica vertical, onde há, de um lado, o “pântano” dos globalistas, ultraliberais, ocidentalistas, presentes em toda parte e, do outro lado, o povo que, quando lhe é possível, luta contra tal elite. A elite globalista acusa o povo de ser populista, mas o povo deve ser populista. Populismo é estar ao lado do povo.
Você retira a carga negativa desta palavra.
Há alguns dias atrás eu participava, em Amsterdam, de uma conferência do Instituto Nexus, com Bernard Henri Lévy. O filósofo francês, representante radical do típico globalismo liberal, unipolar e hegemônico, que pragueja e está muito insatisfeito pela situação nos Estados Unidos e no mundo, disse: “Pode ser que nós (os globalistas) devamos transferir o centro de nosso poder dos Estados Unidos, que traiu a globalização, para a Europa Ocidental”. Creio que Henri Lévy pensava na figura de (Emmanuel) Mácron, que busca se colocar como um líder globalista e ultraliberal, intervencionista e hegemônico, contrário ao Trump populista, amigo de Putin. É simbólico que o Nexus, ambiente onde Lévy é o filósofo típico, um instituto onde residem liberais da América Latina como Mario Vargas Llosa, tenha decidido me convidar. Isto se dá porque a ordem mundial muda e os globalistas também querem fixar os olhos sobre os seus inimigos. Nos convidam porque o liberalismo, hoje, torna-se mais totalitário, e a ideia de Karl Popper da Sociedade Aberta e seus Inimigos – seu livro mais famoso – é atualmente uma agenda estratégica de George Soros. Quando não há mais fascismo, nem comunismo, eis a visão totalitária: “Nós somos liberais ou globalistas e todos os que estão contra nós estão contra e devem ser aniquilados”. É a nova geopolítica, que não é Ocidente contra Oriente, mas, ao invés, algo mais vertical, contra povos e líderes que transgridem os interesses das elites liberais e se colocam ao lado do povo, sendo acusados de populistas.
Falando de uma nova geopolítica, como você enxerga o papel da Rússia na Síria, no Iêmen e no Oriente Médio?
A Rússia, hoje, luta por um mundo multipolar. Não luta pelo mundo bipolar, nem por uma outra unipolaridade, com a Rússia no centro. Após o fim da União Soviética, a Rússia perdeu muito de sua força e, assim, não pode esperar ser a segunda potência mundial, ou a primeira, sem ajudar outras potências a se libertarem do unipolarismo. A Rússia voltou ao Oriente Médio, à Síria, não só pare defender interesses nacionais lutando contra o Estado Islâmico, mas para demonstrar iniciativa e convidar os Estados regionais a redefinirem suas posições no projeto norte-americano do Grande Oriente Médio. Isso aconteceu para despertar as potências regionais. Despertamos a Turquia, que estava sob o controle da OTAN e dos Estados Unidos, sofrendo com golpes e passando por momentos difíceis, mas se libertando. O Irã, que se fortalece muito com nosso apoio. Apoiamos Bashar al-Assad, apesar das ameaças: ajudamos a conservar a integridade territorial da Síria e, hoje, curdos, cataris, sauditas, os árabes do Iraque, os xiitas iranianos e os turcos veem na Rússia um poder libertador, o que torna muito mais forte sua capacidade de reorganizar o território do Oriente Médio, sem os estadunidenses e fora da unipolaridade. Antes de ir à Amsterdam, estive em Kerbala, no Sul do Iraque, onde testemunhei uma grande reunião de xiitas de todo o Oriente Médio (Líbano, Iêmen, Síria, Irã e Iraque). Estavam juntos para uma peregrinação religiosa, mas também para celebrar a vitória da Rússia e dos sírios sobre o Estado Islâmico.
Você pode nos fornecer uma definição de Putin enquanto estrategista político?
Eu escrevi um livro, Putin versus Putin. Ali mostro um personagem não tão linear, um personagem dialético, e traço a hipótese de que existem dois Putins na mesma pessoa: um solar e um lunar. Dois arquétipos: o arquétipo do Putin solar é ligado à resistência, um herói do mundo multipolar, lutando contra a unipolaridade, e um outro Putin, pragmático e realista, rodeado pela elite. O Putin lunar tem mantém por perto o primeiro ministro da Rússia, Dimitri Medvedev, que é globalista, liberal, ocidentalista (hillaryista, não trumpista). Vejo esse Putin lunar mais internamente e, externamente à Rússia, o Putin solar, que me parece um ser singular. De dentro, a paisagem é muito diferente.
E a América Latina, que lugar tem neste novo tabuleiro?
Representa um polo potencial independente, como a Europa. Não pró-russo, mas, livre da dominação norte-americana. No mundo multipolar, enxergamos a América Latina como um espaço estratégico, mais ou menos unificado e independente de nós, dos norte-americanos e dos europeus, e que deve representar um grande poder regional, deixando para trás as fronteiras colonialistas. O povo latino-americano é muito parecido. As diferenças são de aldeias, mas há muito em comum. Cada cidade do Brasil ou da Argentina é diferente, porém, trata-se da mesma civilização. Há uma civilização no grande espaço da Latinoamérica, católico, ibérico, não protestante ou anglo-saxão, como na América do Norte. Creio que o caso de (Juan Domingos) Perón é simbólico, porque, há muitos anos, enxergava a situação de maneira profética. Falou desta visão de que o peronismo não era apenas uma ideologia nacional que reflete a identidade argentina. Mas tudo isso está ainda por dizer. Cabe aos povos da América Latina escolherem. Penso que essa ideologia da multiplicidade pode ajudar a criar um polo latino-americano.
Como vê a Argentina em seu contexto regional?
Tenho a impressão de que nos tempos de Cristina Kirchner e de Dilma Rousseff, as duas nações mais importantes da América do Sul, países chave da América Latina, como o são Argentina e Brasil, estavam muito mais a favor da multipolaridade. Essa tendência de hoje, com a mudança dos líderes de Argentina e Brasil, pode ser uma reação globalista, como foi o caso da mudança de (Jacques) Chirac e (Gerhard) Schroeder, dois quase antiamericanos e mais próximos de nós em relação a (Nicolas) Sarkozy e (Angela) Merkel, que foram muito mais pró-liberais e menos continentalistas. Aqui, dois liberais como (Michel) Temer e (Maurício) Macri substituíram duas mulheres que estavam mais a favor da multipolaridade.
Como estudioso das religiões, qual é sua opinião sobre Francisco?
O papa Francisco é tido por meus amigos tradicionalistas católicos da Europa de uma maneira negativa, porque pensam que ele é um modernista que deixa passar os princípios da fé católica, os dogmas, tendo-o como um liberal. Mas há uma crítica diferente ao Papa Francisco, que também é generalizada, que é a que o coloca como um peronista, justicialista, a favor dos pobres e daqueles que menos possuem. Essa crítica me faz estar a favor do papa Francisco, porque diz respeito a ele estar ao lado dos trabalhadores, dos pobres, e isso é melhor para mim do que estar ao lado dos ricos, dos capitalistas e dos oligarcas.
Creio que a religião deve ser o fator mais relevante do mundo multipolar, uma vez que diz respeito à identidade. Tenho desenvolvido uma Quarta Teoria Política e seu sentido está numa oposição ao liberalismo que não caia no comunismo ou no nacionalismo/fascismo: ser antiliberal, mas também anticomunista e antifascista. Isso significa se colocar contra a modernidade política, porque essa modernidade política é o totalitarismo. Há quem pretenda qualificar esta posição como cripto-comunismo ou cripto-fascismo e, desta forma, produzem fake news (notícias falsas). Buscam me apresentar como algo que não sou. Eu sou representante da Quarta Teoria Política, seu mentor. E se alguém quer criticá-la, será bem vindo, porque toda teoria científica está aberta à crítica.