por Jorge Cuello
Corria o mesmo de agosto de 1945 quando uma das operações militares mais crueis de que se tem memória se concretiza sobre Hiroshima e Nagasaki, cidades do Japão. Ambas foram arrasadas com bombas atômicas, armas espantosas usadas pela primeira vez na história humana.
Os intensos reflexos dos átomos se decompondo, como luzes de um novo amanhecer nos tempos dos homens, anunciavam o nascimento da Era Atômica. E sobre suas cinzas radiativas, assinaram os vencedores as Atas que punham fim à Segunda Guerra Mundial. Com ela chegava também ao fim de seu ciclo histórico a Modernidade. Desde então, a tecnologia e seus sacerdotes tecnotrônicos se encarregariam de substituir os grandes poetas e músicos, estrategistas, estadistas, Papas, filósofos e notáveis artistas de todas as disciplinas que aquela época deu à humanidade. A nova Escola de Frankfurt, transferida aos EUA, se encarregaria de assentar as bases teórico-práticas para a dissolução definitiva daquele mundo e preparar os povos para o novo sistema que sucederia, o Governo Mundial neoliberal e sua ala cultural, o progressismo mundialista neomarxista, gramsciano. Ambos configuram a nova era, a era pós-moderna.
Daquele novo mundo que nascia iluminado pelo fogo atômico, assomavam duas potências formidáveis, impetosos como leões famintos por territórios: Rússia e Estados Unidos da América do Norte, duas superpotências extra-europeias. Uma eurasiática, e outra americana. Com os anos fomos dando conta que, na realidade, começaram neste então a montar algo inimaginável, um espetáculo mundial, nunca visto: dividir artificialmente o Mundo em duas esferas de influência para que, como dois pólos dialéticos, montassem um cenário de um confronto que nunca existiu na cúspide e que, nos níveis inferiores da pirâmide do Poder Mundial o originavam somente para espartilhar as nações que cada um submetia em sua zona exclusiva. Ainda que sendo novos impérios realizavam comércio entre si e se punham de acordo nas cúspides para seguir com a farsa dialética engana-trouxas e dominar caprichosamente o mundo. Assim, diz Perón, "os russos invadiram a Tchecoslováquia com o okay dos ianques e estes invadiram o Panamá com o okay dos russos".
Primeira conclusão: é também evidente que se analisamos sem ideologismos nem preconceitos os fatos aos quais fazemos referência, a derrotada na Segunda Guerra Mundial foi, na verdade, a Europa, toda a Europa. E não só os países centrais e sua vanguarda, a Alemanha.
Este foi realmente um retrocesso ou, se preferirem, um desvio da evolução histórica da humanidade, que até 1939 tinha na Europa sua locomotora universal.
Porque a Europa estava em uma fase de transformação da ordem demoliberal. Novos Estados tradicionalistas que, fundados em tradições milenares de seus povos, na religião que unia seus homens, nas hierarquizações sociais novas, haviam criado uma nova organização naiconal com novas instituições segundo as características de cada um deles. Assim, uma nova ordem europeia, estruturada por Estados fortes, e a novidade, planificadores da economia nacional, estava nascendo pujante e realizadora. Os movimentos, multitudinários, nacionalistas e populares nos quais se baseavam, rechaçavam por igual tanto o liberalismo como o marxismo. Refundar os Estados implica a existência de um Poder fundador interno na nação em questão, independente, soberano, capaz de realizar exitosamente a obra. Este conjunto de poderes nacionais europeus, se tornaram assim perigosos para as potências dominantes, liberais e marxistas. Para meu modesto entendimento, este foi, considerando hoje aqueles fatos, o verdadeiro quid Político daquela questão. Porque a Política é sempre uma luta de Poderes em primeiro termo. Difiro que seja uma luta ideológica. A ideologia está a serviço das estretégias de Poder, não ao contrário.
Tudo isso foi aniquilado pelos vencedores da guerra. Arrasaram povos e culturas, Estados, instituições, classes sociais, etnias e tradições. Aquela Europa de antes da guerra foi literalmente arrasada.
Perón faz referência a essa realidade em "A Hora dos Povos" (1). Nessa obra dizia o General que tanto o comunismo, como o fascismo, como o nacional-socialismo, o nacional-sindicalismo espanhol, os socialismos e comunismos nacionais de diversas cores, eram todas manifestações de uma nova concepção da organização política e consequentemente econômica e social dos Povos que, forçados pelo liberalismo a viver competindo uns contra os outros, todos contra todos buscavam recuperar a felicidade perdida de viver em comunidade, todos com todos e respeitando o pessoal.
O General Perón, que era militar de carreira especializado em Estratégia, viveu pessoalmente, como agregado militar em embaixadas argentinas na Europa, parte dessa rica experiência do Velho Mundo. Evidentemente, ao regressar a nossa Pátria em 1942, o fez decidido a procurar enquadrar a Argentina no mundo que já em 1943 se avizinhava de forma irremediável. Mas, tal como o constata sua atuação posterior, concebeu uma proteção política e institucional que salvaguardasse nossa nação das possíveis tensões e lutas entre a URSS comandada pela Rússia e o mundo demoliberal partidocrático comandado pelos EUA. A Terceira Posição aborda e resolve essa ameaça, colocando ideologicamente a Argentina por sobre o socialismo marxista e o liberalismo capitalista que essas potências impunham como necessários em suas respectivas zonas de influência e ocupação.
Diz o General Perón, "é evidente que nenhuma dessas duas soluções, nem a liberal, nem a marxista, nos levaria à conquista da felicidade que ansiamos para nosso povo. Assim foi que nos decidimos a criar as novas bases de uma Terceira Posição que nos permitiu oferecer a nosso povo outro caminho que não conduzisse à exploração e à miséria. Em uma palavra, uma posição completamente argentina, para os argentinos, o que nos permitiu seguir em corpo e alma a rota da liberdade e da justiça que sempre nos assinalou a bandeira de nossas glórias tradicionais"(2).
Perón desenvolve as concepções sobre as quais se funda a Nova Argentina que, a partir de 1947, ele preside. Aquelas experiências europeias, o conhecimento, compreensão e amor que chegou a ter pela população argentina graças às vivências em sua passagem pelos quarteis da Pátria e a inspiração e guia espiritual da Doutrina de Jesus Cristo, encontram na inteligência de Perón a cristalização cabal de uma nova filosofia política autenticamente argentina, distanciada "dos dois pólos, o liberal e o marxista", e que deverá desembocar irremediavelmente na criação de uma nova organização institucional. Caso contrário, o peronismo nunca poderá concretizar seu ciclo. Isso é vital para o Justicialismo. Mas também, advertimos, para a Quarta Teoria Política de Dugin.
Aleksandr Dugin, filósofo russo de enorme influência nestes momentos sobre dirigentes, pensadores e analistas políticos tanto europeus como eurasiáticos, homem próximo às mais altas esferas de poder da Rússia de Putin, é hoje o mais importante referencial da Quarta Teoria Política que ele deu a conhecer ao mundo inteiro.
Esta Quarta Teoria parte de um "não", como gosta de dizer Dugin: não ao liberalismo e não à modernidade.
E eis aqui que não só o liberalismo é rechaçado enfaticamente, mas fundamentalmente, sua causa e origem: a Modernidade e suas criações,principalmente as nações e seus Estados, o materialismo e o distanciamento de Deus, enfim, o esquecimento da Tradição.
Aqui os americanos temos um problema de fundo, então. Porque a Argentina e as nações da América nasceram para a vida política independente na modernidade, e por tanto como um Estado nacional. E não podem se conceber de outra maneira senão como nação. Se um ser nasceu leão, deve ser concebido e apreciado como leão, por mais que não nos agrade o lugar e o tempo em que nasceu. Por essa razão a nossa Terceira Posição Justicialista se dirige às nações. É propícia para a Argentina e seu espaço continental sulamericano. As nações irmãs do continente podem tornar sua essa Terceira Posição, mas sempre "desde sua nação", para sua grandeza, felicidade e liberdade.
A nação, para Perón, não é só uma consequência da modernidade. É uma etapa na evolução da organização humana que começa com o homem isolado e sua família, o clã, a tribo, a fraternidade, a cidade, o Estado, o Continentalismo e desembocará no universalismo.
E este é um dos principais aspectos que Aleksandr Dugin observa criticamente no Justicialismo.
O assinala como "Moderno", seguindo a divisão clássica dos tempos históricos. E diz isso posto que "a modernidade" é o tempo dos Estados-nações, surgidos após a decadência dos Impérios tradicionais em um processo que toma força decisiva com a Paz de Vestfália de 1648, o Justicialismo também é um fruto da modernidade. Por isso não seria útil para superar o liberalismo e o marxismo.
Mas aceitemos analisar Dugin em si mesmo, como corresponde.
Antes, devemos saudar o filósofo russo. O mundo necessita urgentemente de filósofos desse calibre e os russos parecem estar na ponta.
Dugin lança sua Quarta Teoria Política como a superação da modernidade e de suas excrecências, entre elas, como dizia acima, as nações. Mas também sua teoria se apresenta como uma superação do homem moderno e dos sistemas que se fundam neste homem: a Primeira Teoria Política, ou liberalismo, a Segunda Teoria Política, o marxismo, e a Terceira Teoria Política, o fascismo. O fascismo é derrotado definitivamente na Segunda Guerra Mundial, o marxismo em 1991 com a queda da URSS e só fica vigente como único triunfador o liberalismo. Fortalecido e expandido a nível mundial, está hoje correndo sua nova etapa, chamada neoliberalismo, em consonância à nova era pós-moderna.
Dugin crê que nenhuma dessas teorias políticas pode superar à modernidade, pois são filhas dela mesma e possuem os mesmos fundamentos: o homem-sujeito de Descartes.
Portanto, a Quarta Teoria Política deve desconstruir a modernidade e fundar uma nova era baseada nas tradições, nas sociedades hierárquicas, nas castas, na fé religiosa, nos sãos e milenares costumes comunitários, enfim, voltar à sociedade Tradicional(3). A forma política seria a organização de vastos territórios, não já nacionais, mas civilizatórios. E a Rússia, segundo Dugin, é um espaço geopolítico civilizatório. Outro seria o Islã, outro a Europa, e assim segue.
Suas expressões deixam entrever uma impressão favorávei para os Impérios pré-modernos, posto que estes foram, fundamentalmente, "espaços político-culturais".
Assim, podemos concluir que a Quarta Teoria Política está fundamentalmente orientada para estruturar a reorganização do espaço geopolítico eurasiático e com ele o papel de liderança da Rússia. Acompanhada ou não pela China. Isso veremos. Tenho minhas dúvidas pessoais. Mas seja a Rússia com ou sem a China, deverá necessariamente adotar algo semelhante a uma política imperial centralista ao estilo pré-moderno. O mesmo para a China. E essa futura possível realidade, é definida por duas condições geopolíticas de enorme envergadura: os infinitos espaços geográficos russos e o enorme espaço chinês, povoado por uma demografia excepcional de um bilhão e quatrocentos milhões de seres humanos. Não se pode governar essas situações geopolíticas senão por um Estado centralizado ao estilo imperial pré-moderno. Sempre foi assim. Depois de tudo, o Czar foi substituído não por seu herdeiro dinástico, mas por uma nova estirpe de Czares provenientes do Partido único, dono do Estado russo. No fundo, Dugin viu com absoluta clareza e sem preconceitos ideológicos a realidade concreta das possibilidades geopolíticas russas, isto é, a forma que deve ocupar politicamente o espaço geográfico russo.
A Terceira Posição do Nacional-Justicialismo é fruto de outra realidade. Está orientada essencialmente para a organização política da comunidade nacional argentina e exposta como fonte de inspiração para a América do Sul. Mas sempre partindo das situações integrais nacionais.
Essa Terceira Posição é nacional porque "nacional" é o espaço geopolítico que se ocupa e ordena. E está baseada na soberania política, mãe da independência econômica e da justiça social. Três objetivos estratégicos que o Justicialismo busca concretizar através do Novo Estado e da Comunidade Organizada.
A primeira impressão ao considerar ambas as teorias é positiva. Consiste em que a Quarta Teoria de Dugin é para a Europa e para a Eurásia o mesmo que a Terceira Posição de Perón é para a América Hispânica. Não pode a Quarta Teoria inspirar a América mais que em conceitos aos quais abaixo faço referência, porque a Europa foi outro mundo, que os americanos não vivemos. Dugin pensa como um eurasiático. Do mesmo modo, a Terceira Posição de Perón pode orientar, aportar conceitos, também apenas em aspectos daquela nova teoria. Me refiro às concepções e realizações justicialistas em relação à Justiça Social, à organização interior como Comunidade Organizada e, inclusive, às instituições políticas criadas pelo Justicialismo e expostas no modelo argentino.
Mas não devemos perder de vista que o fundamental no que estamos tratando, é que a questão do conflito político em nosso continente passa pela consolidação das nações herdeiras do Império Espanhol.
Hoje em nossos dias, nos inícios do mundo pentapolar (segundo meu entender) e de modificações profundas nas geopolíticas das potências mundiais, é de valer, portanto, para a América a conformação de blocos defensivo-produtivos entre nações-irmãs soberanas. Oxalá possamos criar as formas institucionais para organizar o espaço comum civilizatório, como o chama Dugin e o assinala nosso Alberto Buela: a América Hispana e seus vice-reinados(4). Mas para isso se torna fundamental e decisivo, e até urgente, a reorganização institucional interna das nações americanas com o objetivo de superar o demoliberalismo partidocrático, econômico e institucional, e o marxismo gramsciano progressista, plataforma cultural na qual se assenta o neoliberalismo mundialista, enquistados hoje em nossas sociedades. A tão cacarejada "integração" e suas formas e instituições, desde que caiu em mãos dos organismos transnacionais do mundialismo e operado pelas corporações multinacionais, passou a ser uma farsa. Uma trágica farsa. Um disfarce mais para seguir explorando os povos e roubando suas riquezas.
Há outra diferença originada na história e composição das sociedades eurasiáticas e americanas. As teorias eurasiáticas, no fundo, necessitam de uma lúcida e responsável aristocracia nobre, valente e prudente, sadia, de uma honestidade religiosa profunda, de grande temperamento e inteligência, capazes de governar e conduzir desde um Estado centralista, espaços com populações que superam os bilhões de seres humanoas e vastos e intermináveis territórios de milhões e milhões de quilômetros quadrados. Essa é sua tradição milenar.
A Terceira Posição Justicialista e o Modelo Argentina, por sua vez, estão concebidos para organizar os Povos dessas latitudes americanas, em instituições virtuosas que frutifiquem necessariamente na Comunidade Organizada e tornem realidade a Soberania Nacional, a Independência Econômica e a Justiça Social, único caminho que vemos na América para alcançar a felicidade e grandeza de nossos povos. Creio que a Terceira Posição de Perón e a Quarta Teoria Política de Dugin não se exluem, ao contrário, convergem na criação de sistemas político-culturais que superem de forma definitiva tanto o marxismo em todas as suas variantes, incluído o pérfido progressismo, como o liberalismo em todas as suas manifestações.
(1) Diz Perón: "O século XX se inicia com o signo das grandes lutas e como tal impulsiona o desenvolvimento frenético da ciência e da evolução. Por isso, a primeira metade desse século com suas duas grandes guerras e as revoluções do comunismo, do fascismo e do nacional-socialismo, iniciaram tanto a era atômica como impulsionaram a 'hora dos Povos'." - Juan D. Perón, La Hora de los Pueblos, Ed. Norte, Buenos Aires, 1968
(2) Juan D. Perón, Mensagem à IV Conferência de Países Não-Alinhados, setembro de 1973, em Diego Mazzieri, Nem Ianques, Nem Marxistas, Peronistas!, Ed. del Oeste, Buenos Aires, 2003
(3) Aleksandr Dugin, entrevistado por Anatoly Kizichef para Tsargrad TV, Moscou, 22 de janeiro de 2017
"Se rechaçamos as leis da modernidade tais como o progresso, o desenvolvimento, a igualdade, a justiça, a liberdade, o nacionalismo e todo este legado de três séculos de filosofia e história política, então há uma escolha. .... Esta é a sociedade tradicional. Um dos movimentos mais simples em direção à Quarta Teoria Política é a reabilitação global da Tradição, do sagrado, do religioso, o relacionado com a casta, se se prefere, do hierárquico e não da igualdade, da justiça ou da liberdade. Rechaçamos tudo isso junto com a modernidade e reelaboraremos tudo isso completamente..."
Deixo claro que não se nega a justiça, a liberdade, etc., mas sim que se propõe reelaborar estes conceitos a partir da Tradição.
(4) Alsina Calvés, José, La Razón Histórica, nº27, Murcia, 2014.