23/08/2016

Aleksandr Bovdunov - O Grande Manipulador: Magia e Sociedade Moderna

A vida e morte de Ion Culiano



No dia 21 de Maio de 1991, na Universidade de Chicago, um professor de religião comparada apresenta sua palestra final acerca do gnosticismo. Ele era um especialista do mais alto nível ao lidar com esse tema; um dos principais eruditos em gnosticismo, platonismo e neoplatonismo, hermetismo e na história religiosa secreta e pública do Ocidente. Depois de trocar algumas palavras com um estudante acerca de sua tese, o cientista partiu. Foi a última vez que os discípulos o viram com vida. Algumas horas depois o corpo do professor foi encontrado no banheiro masculino do campus da Universidade. Ele havia sido assassinado com um tiro na cabeça em plena luz do dia em uma das maiores universidades dos Estados Unidos. Até hoje o assassino não foi encontrado. O cientista, cujo corpo jazia esparramado de forma repulsiva na latrina, era Ion Culianu. 

Ele era o pupilo mais famoso e compatriota de Mircea Eliade, quem, depois de ter sido confiado como o seu executor literário, merece uma atenção especial. Tendo emigrado da Romênia nos anos 70, ele finalmente decidiu estabelecer-se na Universidade de Chicago, onde trabalhou com o grande Eliade. Culianu dedicou muita atenção à tradição ocidental. Seguindo essa direção, é provável que ele tenha tentado acompanhar o seu professor, trabalhando principalmente com a Ásia e os povos “primitivos”. Eram temas de prioridade para Culianu os experimentos de êxtase e exílio em outros mundos, gnosticismo, dualismo religioso, a dimensão espiritual do problema do poder, algumas filosofias religiosas ocidentais, o lado oculto e obscuro da tradição ocidental, e a gênese do fenômeno social e filosófico que mais tarde recebeu o nome de Modernidade.

Culianu era bem recebido em várias organizações ocultistas do ocidente, como está escrito em “Eros, Magia e o Assassinato do Professor Culianu”, pelo pesquisador de seu trabalho, Ted Anthony.  Ele conduzia, juntamente com estudantes, várias sessões mágicas, aconselhando-os a rejeitar as descrenças em relação aos fenômenos de magia e religião estudados. Ele sinceramente acreditava na sabedoria dos antigos, e buscava utilizar o aparato científico para penetrar no coração do fenômeno religioso e da consciência religiosa. No entanto, aproximar-se ao umbral dos mistérios sempre foi algo perigoso.  

O público liberal apressou-se em colocar a culpa da morte do cientista na extrema direita romena e no serviço de segurança romeno, A Securitate (já inexistente há dois anos), a quem Culianu tratava de maneira bastante descortês. Gradualmente, essa versão mais do que duvidosa e repleta de motivações se tornou a narrativa principal. De fato, no que tange às criticas por serem comunistas e terem sido substituídos no regime de Iliescu, Culianu não se destaca em meio a outros dissidentes romenos. O mesmo pode ser dito acerca de sua postura rigorosamente oposta à “Guarda de Ferro” e em relação às preferências nacionalistas de seu professor, Mircea Eliade. Porque era necessário assassiná-lo? E por acaso os serviços secretos dos países da Europa Ocidental, organizações realmente perigosas, foram assoladas pela pobreza, corrupção, caos e conflitos internos? Poderia ter sido obra de uma organização (Guarda de Ferro) que em 1991 contava apenas com um grupo de idosos morando pacificamente na Espanha e Argentina? 

Culianu pode ter sido morto por motivos políticos, mas de uma política muito diferente. Para entender a quem nós temos interesse relacionar a morte de Culianu precisamos recordar outro evento, essa vez associado com seu professor. Foi no momento em que Mircea Eliade escrevia a sua densa obra “A história das ideias religiosas”, descrevendo o aparecimento do desenvolvimento religioso e da modernidade na Civilização Ocidental do século XVI até os dias atuais. Em 1984, na sua casa em Chicago houve um incêndio que destruiu uma grande parte de fontes e documentos raros desse período. Sem nunca ter se recuperado da perda, Eliade morreu dois anos depois, sem a possibilidade de acabar a última tarefa de sua vida. Depois de cinco anos, a vida de Culianu foi abreviada, quando o estudante estava engajado exatamente nesses problemas. 

Culianu dedicou a sua vida à história secreta das religiões do Ocidente. Não há duvidas de que ele sabia muito, e ao que parece ele sabia demais. Portanto, aqueles que não concordam com a versão liberal dos eventos do assassinato de Culianu buscam recorrer ao seu legado científico. É improvável que venhamos a descobrir logo qual é a resposta mais provável. O cientista simplesmente não é autorizado a dizer isso, mas nós podemos perceber a região perigosa da qual o pesquisador se aproximou. Um exemplo disso é um estudo do seguinte tema:

O Grande Manipulador: Poder e Magia

“De vinculis in genere”

Culianu, em seu livro “Eros e Magia na Renascença”, referindo-se ao trabalho de Giordano Bruno, o famoso cientista e mágico do século XV, revela um dos segredos da formação do tipo de sociedade que o fundador da Internacional Situacionista, um dos ideólogos da primavera de 1968, o inconformista de esquerda Guy Debord, chamou de a “sociedade do espetáculo”. Esse é o conceito do “Grande Manipulador”.

O historiador das religiões examina o livro “De vinculis in genere”. Culianu aponta que o valor desse livro obscuro supera muitos trabalhos de teoria social e política bem conhecidos. De acordo com seu cinismo e candura, só pode ser comparado com “O Príncipe” de Maquiavel. Porém, se a figura do “príncipe”, um aventureiro político, soberano, como nota Culianu, no mundo moderno esta à beira da extinção, a figura do mágico colocada no centro da concepção de Bruno é o protótipo dos meios impessoais de comunicação de massa enquanto sistemas e mecanismos de lavagem cerebral, que levam à frente o controle obscuro (oculto) sobre as massas no mundo ocidental. 

O nome do livro de Bruno “De vinculis in genere” é traduzido como “sobre os vínculos em geral”, e se refere à manipulação mágica de indivíduos e das massas, para o estabelecimento do controle a distância de pessoas, independente de estruturas hierárquicas de coerção ou punição advindas de poderes diretos.

O conceito de vínculos “vinculis” não é escolhido por Bruno ao acaso. Culianu destaca que Giordano Bruno é em muitos pontos o sucessor de outro neoplatonista da renascença, Marsílio Ficino, e chega a uma conclusão lógica, porém inesperada, da analogia de Eros e Magia realizada pelo fundador da academia platônica de Florença. Para Ficino, assim como para Bruno, toda magia é baseada no Eros, inclusive o que pode ser chamado de a magia social ou política. E ainda, entre magia e atração erótica há uma similaridade instrumental; o mágico, como um amante, percebe o autor, constrói uma rede ou armadilha em torno do objeto de seu interesse. A arte do amor ou sedução é estruturalmente similar à tarefa do mágico. Ficino usa frequentemente o termo “rete” com respeito à magia e à atividade sexual – rede, da mesma forma que palavras como illex, illecebra, esca, significam armadilha, cilada, ardil. 

A tarefa do mágico é construir uma rede, conectar, para realizar os seus efeitos indiretos. Bruno propõem um modelo que consiste em indivíduos e massas manipulados, e o mágico ou o Grande Manipulador usa ativamente redes, armadilhas e outras ferramentas de “ligação”. O pré-requisito mais importante para a existência de tal sistema é o conhecimento dos desejos humanos. Bruno percebe que a operação de tal plano requer sutileza, já que a tarefa do manipulador não é entorpecer diretamente ou fazer propaganda, mas criar a ilusão da satisfação das necessidades e desejos humanos. Por esta razão, ele precisa saber e antecipar as necessidades, desejos, e expectativas da sociedade. Caso contrário, nenhuma “ligação” pode ser estabelecida entre o indivíduo e o manipulador.  

Petru Culianu afirma que o sistema de magia erótica de Bruno tem como objetivo disponibilizar as ferramentas para o controle de indivíduos isolados e das massas. “O seu pressuposto fundamental é que existe uma grande ferramenta para a manipulação - Eros no sentido amplo do termo: aquilo que amamos.” Giordano Bruno resume todas as paixões humanas, todos os sentimentos, tanto os inferiores quanto os sublimes, ao amor, porque vaidade é o amor pela honra, ganância é o amor pela riqueza, inveja é o amor pelo ego, que não tolera a igualdade e até a superioridade de outro. Ódio, que Bruno particularmente descreve como uma ferramenta de monitoramento, também é amor, mas com um sinal negativo. A manipulação mais bem sucedida, afirma Bruno, é exequível se for capaz de inflamar o amor próprio manipulado, philautia, o egoísmo. No estudo nós encontramos a descrição de amor como “é o relacionamento mais exaltado, o mais comum e o mais importante”. Nas fórmulas mágicas utilizadas no livro de Bruno, o amor é chamado de “o grande daemon” (Daemon Magnus).

Os efeitos mágicos em operação na sociedade, utilizando as paixões humanas, resultando em amor, são realizados através de contato indireto (virtualem seu potentialem), especificamente através de imagens visuais e sons (ferramentas universais ocultas), para estabelecer controle sobre o visível e o audível. Através desses portões secundários, o manipulador pode chegar ao se objetivo primário, chamado porta et praecipuus aditus, o “portão principal”, e vinculum vinculorum, o “vínculo de vínculos” - uma fantasia. É preciso ter em mente que a imaginação da Idade Média era entendida de acordo com os ensinamentos de Aristóteles. A imaginação era pensada como um dispositivo que desempenha a função de um mediador entre o corpo e a alma, os sentidos e o intelecto. Sob o nome de fantasia ou sentido interno, ela transforma o testemunho dos cinco sentidos nos fantasmas, em imagens que só podem ser entendidas pela alma. O dispositivo da imaginação é um intérprete traduzindo a linguagem dos sentidos para a linguagem dos fantasmas e vice-versa. 

As fantasias e a imaginação possuem a vantagem de pertencerem ao mundo dos fenômenos e sentimentos visíveis da mesma forma que a alma possui vantagem sobre o corpo. Curiosamente, Gilbert Durand, o sociólogo francês do século 20, chegou à mesma conclusão. Ele elaborou uma teoria sociológica substancial, na qual afirma que tipos e modos específicos da imaginação, as suas estruturas simbólicas e arquétipos, pré-definem todos os elementos importantes da esfera social.

Partindo do entendimento de que há uma conexão entre o pneuma universal, a matéria particular que forma o aparato imaginativo, e o uso local do poder de Eros, que é uma força conectando essa substância, é possível controlar a consciência individual através de uma reação particular frente a imagens e fantasmas até o ponto em que na maioria dos casos, não é o homem que governa sua imaginação, mas sua imaginação que o governa.

A conclusão do tratado de Giordano Bruno é de que tudo é manipulável, e que o amor, como a força que permeia o mundo, é a única ferramenta de manipulação mágica possível, enquanto a imaginação, e em realidade o controle sobre a imaginação através de imagens audiovisuais, é uma forma de poder. O manipulador cria redes de conexões baseadas no efeito entre ele e outras pessoas, e desse modo faz com que elas ajam de acordo com sua vontade. Assim, ele é como uma aranha no centro de uma rede de conexões e interações. É particularmente importante que, de acordo com Bruno, o manipulador deve ser absolutamente indiferente a qualquer influência externa, e, portanto a qualquer forma de amor, incluindo amor pela bondade, verdade e até pelo mal. 

O Grande Manipulador e a Modernidade

O esquema platônico tradicional e clássico de organização do estado e da sociedade, característico dos estados antigos e medievais, assemelha-se a uma pirâmide. O poder é organizado de acordo com os méritos do ponto extremo da hierarquia, de cima para baixo, e é realizado em um estilo “comandar-obedecer”. Foi contra essa ditadura autoritária de ideias que a Modernidade se rebelou em nome dos ideais da liberdade, igualdade, e fraternidade. 

Construído ao redor do Grande Manipulador, o mundo social é diferente uma vez que é organizado de acordo com o princípio das redes de conexões cercando o mágico anônimo que exerce não um controle direto, mas indireto, e o faz subordinando a imaginação. Ele não sustenta uma simples propaganda, mas em realidade ao criar a ilusão de encontrar os sentimentos e expectativas humanas, exerce um controle hábil sobre os subordinados ao dominar a zona da fantasia. Para que o Grande Manipulador exerça o seu poder, é crucial que as pessoas permaneçam suscetíveis às suas paixões e que a sociedade seja constituída por pessoas não envolvidas em uma causa comum, mas dissolvidas em grupos e panelinhas centrados em si mesmos, de maneira desordenada e egoísta. Ao invés de hierarquia, não há nada além de uma rede; ao invés de submissão direta, há controle; e ao invés de uma causa comum, há egoísmo e ausência da busca pelo divino, substituída por sensualidade nua ou indiferença. 

Será o mundo moderno realmente secular? Se compararmos o conceito de Culianu do estado organizado pelo mágico com o modelo do Grande Manipulador de Bruno e a sociedade em nossa volta, nós podemos ver semelhanças gritantes. O poder é exercido através do controle da imaginação, e a sociedade é meramente uma rede. Não é um acidente que na atualidade o conceito da sociedade conectada tenha surgido e se tornado quase de uso comum não apenas na comunidade científica específica, mas ainda, surpreendentemente, que a sociologia moderna utilize a mesma linguagem do tratado mágico de Bruno.  

No mundo moderno, o controle sobre a imaginação é exercido através da mídia audiovisual, televisão, cinema, internet e jogos de computadores de realidade virtual, propagandas sedutoras e onipresentes, e o emprego de milhões de imagens. A sociedade moderna é uma sociedade na qual o culto do egoísmo e da gratificação sensual reinam. E, é claro, a energia sexual é estimulada, sublimada e manipulada dessa maneira na sociedade que é permeada por sensualidade e sexualidade, uma sociedade que grita sobre si mesma e estabelece o egoísmo como norma social. Essa é uma sociedade de frenesi inexplicável, o triunfo da corrupção do espírito e da carne – a completa mudança de foco para o mero lado carnal da vida que é racionalizado e logicamente explicado na conceituação de Giordano Bruno. 

Portanto, por boas razões a sociedade moderna pode ser chamada de sociedade mágica, ou a sociedade do Grande Manipulador, se nós conectarmos a posição e as conclusões de Giordano Bruno, os dados da sociologia moderna, e uma simples observação da realidade social à nossa volta. Isso é uma coincidência? Talvez haja uma ligação direta entre a situação atual e o trabalho de Giordano Bruno. Talvez o trabalho de Bruno seja um sintoma claro da trajetória geral que percorre o espírito ocidental. Permanece o fato de que essa figura, como filósofo e mágico, tem tradicionalmente atraído a atenção de todas as organizações ocultistas do Ocidente, que, por sua vez, reivindicando o mais alto conhecimento, também reivindicam poder.