01/04/2015

Mark Hackard - Philby e a Traição do Ocidente

por Mark Hackard

Tradução por Carolina Santos



No florescer da arena da espionagem internacional, um nome, mais que outros, evoca uma imagem de uma paciente, magistral traição, a presença insidiosa do inimigo no próprio santuário. Não importa qual país eles sirvam, é esperado que gerações de trainees de inteligência e contra-inteligência conheçam bem o seguinte nome: Philby. Há meio século, Harold Adrian Russell "Kim" Philby (1912-1988) permanece tanto na história da espionagem quanto na literatura popular, o traidor por excelência, o agente de penetração profunda que fez seu próprio caminho ao topo da inteligência britânica para fornecer à Rússia soviética os mais guardados segredos da Coroa.

O choque da traição de Philby reverberou por todo o Establishment britânico, enquanto em retrospectiva, o caso nos fala mais sobre a depravação social, cultural e espiritual de uma elite inteira, mais do que apenas das façanhas sórdidas de um espião.

Uma nova visão acerca da mais notória das verdadeiras histórias de espiões, "A Spy Among Friends: Kim Philby and the Great Betrayal" captura não apenas o trabalho em si de Philby para a M16 e a KGB, mas também examina a trilha de vidas destruídas que ele deixou em seu rastro. Usando entrevistas e materiais arquivados, o jornalista Ben McIntyre realizou um trabalho para saber como e os porquês de um homem britânico de alta classe ter enviado dezenas de agentes ocidentais para o outro lado da Cortina de Ferro até seus relentos, trazido miséria e ruína para suas diversas esposas, e destruído as carreiras de seus colegas e amigos íntimos. Philby era um traidor com uma causa; ele espionava não por dinheiro ou adrenalina, mas sim porque sinceramente acreditava em um futuro radiante prometido pelo comunismo. 

Desde 1934, quando um recém graduado de Cambridge’s Trinity College, foi recrutado pela inteligência soviética, até sua dramática deserção em Beirute em 1963, Philby nutriu uma fé interior inabalável em sua missão, uma convicção mantida até sua morte.

A conversão do jovem Philby ao marxismo dificilmente se consideraria extraordinária – em toda a Europa do entre guerras, a ideologia comunista estava em voga entre intelectuais, e a União Soviética era vista como um experimento promissor na criação de uma nova sociedade. Assim, mais quatro colegas de classe de Philby também seriam leais à Moscou, formando o "Cambridge Five", uma rede de agentes que mesmo hoje é celebrada pela sucessora da KGB, a SVR, como um clássico exemplo de penetração de longo prazo.

A causa imediata para as classes instruídas ocidentais recorrerem ao marxismo pode ser encontrada na severa crise que primeiramente estagnou a Grã Bretanha, América do Norte e o continente europeu no amanhecer da década de 1930, com empobrecimento, instabilidade política e a ascensão do fascismo. Enquanto o privilegiado Philby e seus amigos não eram diretamente afetados pela depressão, a moda intelectual mantinha que o materialismo dialético e o socialismo estatal revolucionário eram a resposta à civilização capitalista que havia falhado.

A liberal democracia já havia se revelado como fraude conforme oligarcas expandiam suas propriedades de forma proporcional à miséria dos trabalhadores comuns.  Dificilmente um sistema de pensamento alienígena nascido na estepe eurasiática, a tentação totalitária nasceu das filosofias de governo do Ocidente moderno. 

Nascido em Lahore e com um nome inspirado no herói de "Great Game’", de Rudyard Kipling, Kim Philby foi uma criança do Império Britânico. E a milhares de quilômetros de Punjab, liderou um empreendimento global fundado sob os princípios lockeanos do liberalismo clássico, do poderio científico-industrial e da tradição de comércio marítimo de Cartago, Atenas e Veneza. O pai ausente de Philby, John Philby, havia feito sua carreira como um conceituado orientalista nos moldes de Lawrence da Arábia e servia como um "conselheiro" ao rei Ibn Saud. O jovem Philby recebeu uma educação clássica, em grande parte dentro das mais prestigiadas escolas públicas. Mesmo "Deus, Rei e Pátria" tendo sido o credo do serviço para a elite administrativa do império, poucos, se é que algum, desses homens acreditavam, de fato, em Deus da mesma forma que seus ancestrais, enquanto "rei" e "pátria" tornaram-se mera máscara retórica para os desígnios das predatórias dinastias bancárias. Como o melhor amigo de Philby e oficial M16 Nicholas Elliot declarou, eles serviam "rei, pátria, classe e clube", dificilmente uma fórmula inspiradora. 

A insípida e ego-gratificante ideologia do humanismo liberal iluminista, junto com as cada vez mais consistentes doutrinas empiricistas de Hume, Bentham e Darwin, havia esvaziado instituições sociais – e o Cosmos – de qualquer significado transcendente.  Era de se imaginar que um jovem aristocrata como Philby iria buscar uma nova revelação no marxismo, a narrativa salvífica de um reino terreno tornado perfeito pela revolução proletária. Em seu trabalho secreto para o partido, Kim Philby aplicou as conclusões lógicas dos princípios materialistas que a filosofia liberal havia ultimamente produzido; ele buscou a destruição de uma já então decadente Grã-Bretanha da partir de dentro para o alvorecer de uma nova e transformadora era. Assim como o asceta Ortodoxo Fr. Seraphim Rose tão bem diagnosticou, o jovem radical estava apenas consumando um processo iniciado bem antes dele pelos campeões da "liberdade" e da "razão":

O liberal, o homem mundano, é o homem que perdeu sua fé; e a perda da fé perfeita é o início do fim da ordem erguida sobre essa fé. Aqueles que buscam a preservação do prestígio da verdade sem crer nela oferecem a mais potente arma para todos os seus inimigos; uma mera fé metafórica é suicida. O radical ataca a doutrina liberal a cada ponto, e o véu de retórica não é proteção contra o forte impulso de sua lâmina afiada. O liberal, sob esse ataque persistente, dá ré ponto após ponto, forçado a admitir a verdade das acusações lançadas contra ele sem ser capaz de contrariar essa verdade crítica, negativa, com qualquer verdade positiva própria; até que, após uma transição longa e gradativa, de súbito ele acorda para descobrir que a Velha Ordem, não defendida e aparentemente indefensável, foi derrubada, e que uma nova verdade, mais 'realista' - e mais brutal - tomou o espaço".

A espionagem é o negócio de traição, e até seus camaradas e colegas agentes de Cambridge Guy Burgess e Donald Maclean fugirem para Moscou em 1951, o negócio era bom para Philby. Promovido após a Segunda Guerra Mundial para liderar operações anti-soviéticas e então enviado a Washington como o representante do MI6, o amistoso e produtivo infiltrado conquistou amigos com facilidade. Ele também conseguiu ser nomeado cavaleiro, a Ordem do Império Britânico, dada a ele pela Rainha Elizabeth. Para que não pensemos nessa honraria como uma mera aberração, lembremos o lamento de Edmund Burke:

"A era da cavalaria se foi. A dos sofistas, economistas e calculadores, triunfou; e a glória da Europa está extinta para sempre".

Que Philby e Anthony Blunt, outro dos Cinco de Cambridge e Inspetor das Imagens do Rei, foram condecorados antes de sua traição ter sido exposta pelo MI5 é perdoável, mas eles próprios eram sintomas de uma patologia mais profunda. A cavalaria em nossa era, como cada outra coisa de valor, foi sistematicamente sujeita à lógica de inversão. Como explicar de outra forma títulos nobiliárquicos dados a mestres da usura, promotores da anti-cultura e rock stars dissolutos? E quanto a "Sir" Jimmy Savile, DJ da BBC e famoso confidente da Família Real, que por décadas cometeu estupros contra incontáveis crianças de toda a Grã-Bretanha, ou as várias dúzias de parlamentares e burocratas do governo que só agora foram implicados em organizações de pedofilia e assassinato infantil? Muito mais do que a espionagem, malignidade dessa natureza porta diretamente a estampa do satânico; quisera Deus despertasse Artur e seus cavaleiros para varrer essa imundície da terra verde e agradável da Inglaterra.

Guerreiro frio até o fim, Philby reivindicava seu próprio papel dúplice no confronto bipolar entre capitalismo e comunismo. Só que desconhecido para as fileiras de cada lado, o resultado planejado desse confronto dialético era a tirania universal. Assim como os marxistas apelavam para a inevitabilidade da história, a superclasse plutocrática ocidental - muito abertamente através de teóricos de H.G. Wells e Aldous Huxley a Bertrand Russel e Zbigniew Brzezinski - tem celebrado a supremacia da "ciência" para justificar sua vontade de poder total. O Estado Mundial tecnocrático, um sonho de louco que ameaça se transmutar em nossa realidade, faria com que o projeto soviético parecesse brincadeira de criança. Kim Philby era sem dúvida um traidor; níveis acima dele, criminosos muito mais pomposos tem engendrado a aniquilação da família, da herança nacional e religiosa, e da própria essência da identidade humana. Aí reside a maior das traições.