Desde que o capitalismo surgiu no final da Idade Média e veio a dominar tanto a produção como a política no final do século XVIII, tem havido um vigoroso debate sobre exatamente qual é a natureza do capitalismo. Central para esses debates tem sido a questão da relação do capitalismo com o Estado, e particularmente a questão de se o capitalismo era um inimigo ou um filho do Estado. Não tem havido falta de grandes nomes nesse debate: Smith, Marx, Mill, Mises e muitas outras grandes mentes contribuíram com pesados tomos sobre o tópico. Porém eu creio que a honra de formular a questão nos termos mais elegantes e sucintos deva ir para Sorin Cucerai em seu breve, mas poderoso ensaio, "O Medo do Capitalismo e Uma de suas Fontes", na edição de maio de Idei in Dialog. O sr. Cucerai é um filósofo libertário na Romênia, e seu artigo é importante porque é o olhar mais cândido dirigido ao capitalismo que eu já vi vindo de um libertário austríaco. Em não mais que algumas poucas páginas, e em algumas poucas poderosas frases, o sr. Cucerai captura a essência do capitalismo e sua relação com o Estado. Os argumentos de Sorin são dirigidos primariamente aos "anarco-libertários" que, como os marxistas, gostariam de um "esvanecimento do Estado". Porém, a realidade histórica é que sob regimes "conservadores" o Estado cresce tão rápido - ou até mais rápido - do que ele o faz quando sob regimes liberais ou social-democratas. De fato, apenas os comunistas puderam fazer o Estado crescer mais rápido que os conservadores, e eles o fizeram crescer até que ele ruiu sob seu próprio peso, um feito que os conservadores na América estão tentando duplicar, e podem até conseguir fazê-lo. Certamente, algo estranho ocorre aqui. Uma realidade histórico tão penetrante e poderosa não pode ser ignorada em nome da ideologia. Porém, deve ser notado que ao "defender" o capitalismo, o sr. Cucerai levanta questões que desafiam sua própria legitimidade. De fato, Marx em seus ataques ao capitalismo nunca disse nada tão negativa sobre aquele sistema quanto o sr. Cucerai em sua "defesa". É importante compreender o argumento do sr. Cucerai em sua elegante simplicidade. Eu o sumarizo como segue:
1 - Os homens naturalmente buscam acesso direito aos meios de subsistência, usualmente na forma de sua própria terra ou ferramentas.
2 - Este acesso torna o homem menos dependente de seus vizinhos e portanto menos dependente dos mercados.
3 - Mas o capitalismo é a condição de dependência do mercado para a própria subsistência. Portanto, "a condição fundamental para a existência de uma ordem capitalista é a ausência de autonomia individual no sentido de dever a fonte da própria comida", e de forçar as pessoas a buscarem uma fonte monetária de subsistência. Essa não é uma condição natural, como o é a de possuir a própria terra, porque "As pessoas não buscam instintivamente por uma fonte de renda monetária". Elas o fazem apenas porque são forçadas a fazê-lo.
4 - "O capitalismo é tornado possível apenas se esse processo natural é interrompido por um instrumento que garanta que ninguém poderá ter acesso a comida e abrigo a não ser que uma renda monetária seja usada como intermediária".
5 - "Portanto, a ordem capitalista não é natural. Tal ordem pode ser mantida apenas se houver um arranjo institucional que impeça o indivíduo de não participar de relações comerciais através da agência de dinheiro".
6 - Este "arranjo institucional" é um governo que demanda que as pessoas paguem impostos e taxas apenas sob a forma de dinheiro. Apenas o Estado pode realizar essa função coercitiva da qual o capitalismo depende. "A fonte de renda adquire proeminência sobre a fonte de comida; as relações comerciais são onipresentes porque, basicamente, é impossível evitá-las".
7 - O Estado é necessário por outra razão, nomeadamente que "a livre competição é tão anti-natural quanto o próprio capitalismo". Na ausência do Estado, o comércio seria uma questão de "busca de renda", um comportamento que apenas a regulamentação governamental pode impedir.
8 - Paradoxalmente, a "liberdade e prosperidade do capitalismo" são possíveis apenas "ao se negar às pessoas o acesso direito a comida e abrigo". De modo a ter essa "liberdade" capitalista, devemos ser alienados de nossa própria natureza. Mas se isso é feito, então "o rompimento criado entre nós e nossa natureza - e entre nós e a natureza em geral - abre um espaço previamente desconhecido para a liberdade humana e é uma forma de civilização".
9 - Por causa dessa alienação fundamental da natureza, "qualquer indivíduo que vive na ordem capitalista é um ser fundamentalmente precário, de uma fragilidade radical. É a precariedade daquele que não possui chão firme sob seus pés".
O que é notável nessa cadeia de pensamento é que ela pode ser lida como um ataque ou como uma defesa do capitalismo. De fato, é difícil discernir, de dentro do próprio argumento, como que ele vai terminar. O sr. Cucerai oferece apenas uma defesa instrumental do capitalismo, nomeadamente que ele resultará em mais bens e salários mais altos. À parte do fato de que esse "consequencialismo" é moralmente suspeito, na melhor das hipóteses, há uma questão sobre se a base de comparação aqui é válida; seria necessário comparar a subsistência e segurança de uma economia baseada no salário com o de uma economia baseada na propriedade, isto é, da economia "anti-natural" do sr. Cucerai com uma mais natural. Nós sabemos que na Inglaterra do século XVI, antes do capitalismo passar a dominar as relações sociais, um trabalhador comum poderia prover sua família por 15 semanas de trabalho, e um trabalhador especializado por 10. Um século depois, após o cercamento das comuns e o confisco dos mosteiros, que instantaneamente converteram a Inglaterra em um país capitalista, esses números se tornaram 40 semanas e 32 semanas, respectivamente. Ademais, em uma economia global, é necessário, pesar os salários dos trabalhadores em fábricas em situação de escravidão antes de formular um juízo sobre essa questão. Ademais, o simples fato da questão é que nações que se alimentaram confortavelmente por milênios antes da vinda dos capitalistas se encontraram esfomeadas sob a "liberdade" do sr. Cucerai.
Mas deixando essa questão de lado, podemos abordar a força dos argumentos do sr. Cucerai. O primeiro ponto é que este é basicamente um argumento aristotélico, mesmo que ele chegue a conclusões opostas a Aristóteles, em sua divisão da economia em trocas "naturais" e "anti-naturais". Para Aristóteles, a troca necessária era aquela para prover o lar, enquanto a troca anti-natural tinha somente o dinheiro como seu objeto. O primeiro tipo de troca era "natural" no sentido de ter um limite natural. Por exemplo, um homem comprando pão para sua família comprará o que é necessário e nada mais. Mas um homem cujo objetivo não é o pão, mas dinheiro, poderá comprar cada fatia de pão e cada grão de trigo de modo a encurralar o mercado e definir o preço para sua própria vantagem. Como não há limite para essas trocas, Aristóteles as definiu como "anti-naturais".
O segundo ponto que podemos notar é quão bem os argumentos estão de acordo com a história efetiva do capitalismo. O simples fato histórico é que o capitalismo e o governo crescem juntos; quanto maiores as entidades empresariais, maior o governo necessário para protegê-las. Esse fato já havia sido notado por Adam Smith em 1776, em A Riqueza das Nações, três-quartos do qual é devotado a documentar a relação incestuosa entre o grande governo e a grande empresa.
O terceiro ponto é que o sr. Cucerai dá ao libertarianismo algo que ele normalmente não possui, nomeadamente uma teoria do governo. Daí a performance do governo pode ser julgada contra aquele padrão de sua função adequada. É possível não concordar com a definição do sr. Cucerai da função do governo, mas pelo menos o padrão é explícito; a questão agora cai sob a intencionalidade humana e pode ser assim controlada, pelo menos em princípio. Para os anarco-libertários especialmente, o governo é detestado em si mesmo e daí toda questão de governo se torna uma questão "ou tudo ou nada". Mas enquadrar a questão dessa forma sempre funciona para a vantagem do "tudo" do Estado, já que em tempos de crises simplesmente não há niilistas suficientes para votar pelo "nada". Assim, o acréscimo de poder estatal é sempre e em todo lugar a consequência não-intencional do libertarianismo.
O quarto ponto é que o sr. Cucerai descreveu corretamente a natureza excessivamente limitada por regras da competição e da troca, e o fato de que regras devem ser externas ao mercado. De fato, competição, adequadamente entendida, só funciona em um esquema mais amplo de cooperação, e essa cooperação é expressada em obediência a regras que são impostas por instituições de consentimento comum. Pense em um jogo de futebol. É certamente uma competição, e uma violenta aliás. Porém, ele não pode ocorrer fora do esquema de cooperação, nomeadamente, que todos os jogadores estarão limitados pelas regras e julgados por árbitros que não são eles mesmos jogadores no jogo. A não ser que o jogo pare quando o árbitro jogue a bandeira amarela, o jogo não pode realmente começar. Sem o árbitro não pode haver jogo, mas apenas guerra, que continuará até que um lado seja completamente derrotado ou até morto, ponto no qual tanto o jogo como a competição terminam.
O quinto ponto é que o sr. Cucerau identificou corretamente a monetização como fundacional para o capitalismo. Uma confirmação histórica desse ponto vem do "imposto sobre cabana" que os ingleses impunham a suas colônias africanas. O objetivo desse imposto não era receita; de fato, provavelmente custava mais para coletá-lo do que ele gerava em rendimentos. Ao contrário, seu objetivo era forçar os africanos a buscar algo que eles nunca precisaram antes: um emprego. O clima suportava a população em relativo conforto com níveis relativamente reduzidos de trabalho, e os africanos, deixados a seu próprio alvedrio, estavam felizes com esse arranjo. Mas um imposto monetário os forçava a buscar emprego nas minas, plantações e fábricas inglesas. O objetivo do imposto sobre cabana não era receita, mas trabalho. Finalmente, podemos notar que o sr. Cucerai certamente nos deu uma descrição acertada do capitalismo, e todas as discussões de qualquer sistema devem começar com uma descrição precisa. Porém, é uma descrição que deixa de fora um elemento crucial, um elemento que flui da descrição mas que o sr. Cucerai não aborda. Eu retornarei a este ponto um pouco depois. Tudo isso estando dito, nós ainda não podemos determinar se o capitalismo sob essa descrição é uma coisa boa ou ruim. De fato, nós realmente queremos um sistema que aliena o homem de sua própria natureza e resulta em uma "fragilidade radical", um arranjo social em que nós "não temos chão firme sob nossos pés"? Há um caráter sombrio, orwelliano à descrição do sr. Cucerai em que "liberdade é escravidão", em que o homem tem que ser um escravo assalariado para ser livre; em que lhe tem que ser negado o acesso ao fundamento de sua liberdade (isto é, a propriedade) para que ele participe em mercados "livres". Mas seria essa uma definição adequada da liberdade? É até mesmo uma definição adequada de economia? Eu creio que o autor cometeu dois erros fundamentais: um, ele reduziu todos os mercados a mercados monetários, e; dois, ele confundiu "livre mercado" e "capitalismo" como se eles fossem o mesmo, quando em verdade mais normalmente eles são coisas opostas uma à outra. Um mercado de trocas puramente "monetário" é problemático de diversas maneiras. A primeira tem a ver com a natureza do dinheiro, que deveria ser meramente a unidade de medida para todos os bens em circulação em uma dada economia. Porém, o dinheiro pode muito facilmente ser manipulado à parte do mercado para bens reais e serviços. Os americanos provara, além de qualquer dúvida, que trilhões de dólares em riqueza financeira podem ser criados sem ter qualquer relação com riqueza real. Homens que contribuíram não tanto quanto um grão de trigo para a comunidade recebem bilhões da bolsa comum em recompensa por sua falha. E isso foi feito por homens operando em mercados basicamente desregulados. O dinheiro, como unidade de contabilidade, é uma abstração, e quanto mais abstrata uma economia se torna, isto é, quanto mais monetizada, mais facilmente ela pode ser manipulada pelos que possuem conhecimento privilegiado sobre as mecânicas de abstração, e uma economia completamente monetizada é a mais fácil de manipular. A verdade é que o homem opera em diversos mercados simultaneamente, a maioria dos quais não são monetizados, e todos os quais servem como cheques sobre os outros. Quando todos os mercados são monetizados, todos os mercados falem, e falem decisivamente, sem qualquer esperança de recuperação.
O primeiro mercado em que operamos é a economia de presentes da família e da comunidade. Nós somos primeiro chamados à existência pela já pronta comunidade da família, e dessa comunidade recebemos uma variedade de presentes. Nosso ser, certamente, mas também o presente de nosso nome, nossa família, nossa linguagem, nossas primeiras percepções morais, nossas primeiras experiências de amor e pertencimento, e daí em diante. Essa economia de graça (presentes) é a economia primária, e toda outra atividade econômica e social deve ser julgada desde o ponto de vista do quão bem ela serve à família. Sem esse cheque, realmente não há jeito de saber se a economia "funciona" em qualquer sentido concreto. Uma economia completamente monetizada erode essa economia de presentes da família sobre a qual toda a ordem social depende. Para além dessa economia familiar, há economias de serviço comunitário, economias de atividade política (em que votos são o meio de troca), economias religiosas, e daí em diante. Todas essas dependem da economia de produção e troca (note ambos termos), e daí são postas em cheque por esta economia, ainda enquanto elas fornecem cheques para as economias de troca e produção. O sr. Cucerai afirma que o capitalismo "abre um espaço previamente desconhecido para a liberdade humana". Mas o que ele não menciona é que isso deve ser um espaço bem pequeno, um ocupado pelo possuidor de terra e capital apenas. É por isso que chamamos a isto de "capitalismo". De fato, o próprio fato de negar acesso aos meios de subsistência à maioria dos homens significa que uns poucos acabarão em posse da vasta maioria desses meios. Esse ponto flui naturalmente da própria descrição do capitalismo pelo sr. Cucerai, mas é o ponto crucial que ele deixou de lado, e sem o qual sua descrição não pode ser considerada completa.
Não apenas é essa concentração de capital uma moral ruim, é economia ruim e teoria social ruim. É economia ruim porque toda teoria de mercado se baseia na hipótese do "vasto número de firmas", que afirma que a produção está espalhada por um número tão vasto de firmas que nenhuma firma, ou nenhuma possível combinação de firmas, pode ter qualquer influência sobre preços de mercado; isto é, elas são todas tomadoras de preço ao invés de fazedoras de preço. Quando você tem consolidação em qualquer indústria, toda a base do livre mercado rui, e monopólio e oligopólio são os resultados. Mas essa é apenas uma parte do problema. Eu vou passar por cima da afirmação absurda do sr. Cucerai de que você pode ter, simultaneamente, um aumento nos preços de produção e uma queda nos preços de consumo, como se estes não fossem dependentes dos primeiros, para notar que salários em ascensão não são a norma no capitalismo. De fato, nos EUA desde 1973 o salário médio permaneceu estável, ainda enquanto a produtividade para todas as classes de trabalho aumentou dramaticamente mo mesmo período. Isso significa que os trabalhadores estão produzindo mais bens, mas devem comprá-los com as mesmas recompensas. Como isso não é possível, a economia recorreu a três paliativos para manter o consumo. O primeiro é colocar mais membros da família para trabalhar, e trabalhar por mais horas. O segundo é aumentar o papel e tamanho do governo para absorver mais da produção. E o terceiro é a simples usura (crédito ao consumidor); ter a classe que é sobre-compensada - isto é, a possuidora de capital - simplesmente emprestar o excesso a consumidores para absorver os bens excedentes. Mas todos os três métodos alcançaram seus limites lógicos. A família está trabalhando tão duro quanto pode (para o detrimento da vida familiar que a economia deveria servir), o governo não pode expandir muito além sem descobrir aqueles limites de expansão que os soviéticos descobriram, e o sistema de crédito entrou em colapso. Não há mais para onde possamos ir sem desafiar o sistema. O sr. Cucerai assume aumentar salários em um livre-mercado. Defensores capitalistas assumem que o "contrato livre" é suficiente para garantir esses salários ascendentes. Mas Adam Smith notou os problemas dessa teoria:
"Não é, porém, difícil prever qual dos dois partidos deve, sobre todas as ocasiões ordinárias, ter a vantagem na disputa, e forçar o outro a uma concordância com seus termos. Os mestres, sendo menos em número, podem se combinar mais facilmente... Um senhorio, um fazendeiro, um mestre de manufatura, ou comerciante, ainda que eles não empregassem um único trabalhador, podiam geralmente viver um ano em cima do estoque que eles já haviam adquirido. Muitos trabalhadores não poderiam subsistir uma semana, poucos poderiam subsistir um mês e quase nenhum um ano sem emprego".
Assim Smith identifica os salários reais como o resultado de uma relação de poder entre mestres e trabalhadores e não como resultado de forças puramente "econômicas"; é poder, não produtividade, que é arbitrada em um contrato salarial. Um CEO americano recebe 500 vezes o que o trabalhador de linha recebe não porque ele é 500 vezes mais produtivo, mas porque ele é 500 vezes mais poderoso. A costureira em uma fábrica recebe uma ninharia não porque sua produtividade é baixa, mas porque seu poder é medíocre. O poder de negociar um salário vem apenas com o poder de dizer "não" aos termos oferecidos, e esse poder vem apenas da posse de uma alternativa ao salário. E apenas a propriedade confere esse poder. Onde os trabalhadores tem sua própria propriedade e podem fazer seu próprio caminho no mundo, qualquer contrato salarial que eles aceitem provavelmente será justo, um que recompense equitativamente sua produtividade. Mas na ausência de uma alternativa real, não há negociação real; você não pode negociar se você não pode dizer "não". O que um livre mercado realmente requer é homens livres, e o que os homens precisam para serem livres é acesso a seus próprios meios de subsistência, que é precisamente o que o capitalismo lhes nega. O fundamento adequado da liberdade é o seu próprio chão, o próprio chão que o sr. Cucerai quer cortar dos trabalhadores. O que é negado à massa de homens deve recair sobre uma minoria de homens, homens que serão então os mestres da sociedade e os verdadeiros donos do governo, cooptando-o para seus próprios fins. Foi isso que aconteceu. Quanto maiores as pilhas de capital reunidas em umas poucas mãos, mais grossos os muros do governo necessários para proteger esse capital, e capital e governo se combinam para limitar a liberdade, para restringir a propriedade. O capitalismo, portanto, não deve ser confundido com livre mercado, mas ser identificado como seu inimigo mortal, e confundir um com o outro é deixar de compreender a realidade da vida econômica, social e política modernas. O sr. Cucerai deve ser elogiado por seu olhar quase impávido sobre o capitalismo, mas ele deve ser criticado porque, no último minuto, ele exitou, ele se afastou das consequências lógicas de sua própria descrição para pular o ponto crucial sobre o qual a discussão como um todo deve se voltar. Ele foi até à beira e deu as costas há tão apenas um fio de cabelo de distância da verdade. Mas não podemos dar as costas, pois apenas se tivermos a coragem de olhar para as coisas como elas são podemos esperar ter a força de torná-las o que elas devem ser.
O primeiro mercado em que operamos é a economia de presentes da família e da comunidade. Nós somos primeiro chamados à existência pela já pronta comunidade da família, e dessa comunidade recebemos uma variedade de presentes. Nosso ser, certamente, mas também o presente de nosso nome, nossa família, nossa linguagem, nossas primeiras percepções morais, nossas primeiras experiências de amor e pertencimento, e daí em diante. Essa economia de graça (presentes) é a economia primária, e toda outra atividade econômica e social deve ser julgada desde o ponto de vista do quão bem ela serve à família. Sem esse cheque, realmente não há jeito de saber se a economia "funciona" em qualquer sentido concreto. Uma economia completamente monetizada erode essa economia de presentes da família sobre a qual toda a ordem social depende. Para além dessa economia familiar, há economias de serviço comunitário, economias de atividade política (em que votos são o meio de troca), economias religiosas, e daí em diante. Todas essas dependem da economia de produção e troca (note ambos termos), e daí são postas em cheque por esta economia, ainda enquanto elas fornecem cheques para as economias de troca e produção. O sr. Cucerai afirma que o capitalismo "abre um espaço previamente desconhecido para a liberdade humana". Mas o que ele não menciona é que isso deve ser um espaço bem pequeno, um ocupado pelo possuidor de terra e capital apenas. É por isso que chamamos a isto de "capitalismo". De fato, o próprio fato de negar acesso aos meios de subsistência à maioria dos homens significa que uns poucos acabarão em posse da vasta maioria desses meios. Esse ponto flui naturalmente da própria descrição do capitalismo pelo sr. Cucerai, mas é o ponto crucial que ele deixou de lado, e sem o qual sua descrição não pode ser considerada completa.
Não apenas é essa concentração de capital uma moral ruim, é economia ruim e teoria social ruim. É economia ruim porque toda teoria de mercado se baseia na hipótese do "vasto número de firmas", que afirma que a produção está espalhada por um número tão vasto de firmas que nenhuma firma, ou nenhuma possível combinação de firmas, pode ter qualquer influência sobre preços de mercado; isto é, elas são todas tomadoras de preço ao invés de fazedoras de preço. Quando você tem consolidação em qualquer indústria, toda a base do livre mercado rui, e monopólio e oligopólio são os resultados. Mas essa é apenas uma parte do problema. Eu vou passar por cima da afirmação absurda do sr. Cucerai de que você pode ter, simultaneamente, um aumento nos preços de produção e uma queda nos preços de consumo, como se estes não fossem dependentes dos primeiros, para notar que salários em ascensão não são a norma no capitalismo. De fato, nos EUA desde 1973 o salário médio permaneceu estável, ainda enquanto a produtividade para todas as classes de trabalho aumentou dramaticamente mo mesmo período. Isso significa que os trabalhadores estão produzindo mais bens, mas devem comprá-los com as mesmas recompensas. Como isso não é possível, a economia recorreu a três paliativos para manter o consumo. O primeiro é colocar mais membros da família para trabalhar, e trabalhar por mais horas. O segundo é aumentar o papel e tamanho do governo para absorver mais da produção. E o terceiro é a simples usura (crédito ao consumidor); ter a classe que é sobre-compensada - isto é, a possuidora de capital - simplesmente emprestar o excesso a consumidores para absorver os bens excedentes. Mas todos os três métodos alcançaram seus limites lógicos. A família está trabalhando tão duro quanto pode (para o detrimento da vida familiar que a economia deveria servir), o governo não pode expandir muito além sem descobrir aqueles limites de expansão que os soviéticos descobriram, e o sistema de crédito entrou em colapso. Não há mais para onde possamos ir sem desafiar o sistema. O sr. Cucerai assume aumentar salários em um livre-mercado. Defensores capitalistas assumem que o "contrato livre" é suficiente para garantir esses salários ascendentes. Mas Adam Smith notou os problemas dessa teoria:
"Não é, porém, difícil prever qual dos dois partidos deve, sobre todas as ocasiões ordinárias, ter a vantagem na disputa, e forçar o outro a uma concordância com seus termos. Os mestres, sendo menos em número, podem se combinar mais facilmente... Um senhorio, um fazendeiro, um mestre de manufatura, ou comerciante, ainda que eles não empregassem um único trabalhador, podiam geralmente viver um ano em cima do estoque que eles já haviam adquirido. Muitos trabalhadores não poderiam subsistir uma semana, poucos poderiam subsistir um mês e quase nenhum um ano sem emprego".
Assim Smith identifica os salários reais como o resultado de uma relação de poder entre mestres e trabalhadores e não como resultado de forças puramente "econômicas"; é poder, não produtividade, que é arbitrada em um contrato salarial. Um CEO americano recebe 500 vezes o que o trabalhador de linha recebe não porque ele é 500 vezes mais produtivo, mas porque ele é 500 vezes mais poderoso. A costureira em uma fábrica recebe uma ninharia não porque sua produtividade é baixa, mas porque seu poder é medíocre. O poder de negociar um salário vem apenas com o poder de dizer "não" aos termos oferecidos, e esse poder vem apenas da posse de uma alternativa ao salário. E apenas a propriedade confere esse poder. Onde os trabalhadores tem sua própria propriedade e podem fazer seu próprio caminho no mundo, qualquer contrato salarial que eles aceitem provavelmente será justo, um que recompense equitativamente sua produtividade. Mas na ausência de uma alternativa real, não há negociação real; você não pode negociar se você não pode dizer "não". O que um livre mercado realmente requer é homens livres, e o que os homens precisam para serem livres é acesso a seus próprios meios de subsistência, que é precisamente o que o capitalismo lhes nega. O fundamento adequado da liberdade é o seu próprio chão, o próprio chão que o sr. Cucerai quer cortar dos trabalhadores. O que é negado à massa de homens deve recair sobre uma minoria de homens, homens que serão então os mestres da sociedade e os verdadeiros donos do governo, cooptando-o para seus próprios fins. Foi isso que aconteceu. Quanto maiores as pilhas de capital reunidas em umas poucas mãos, mais grossos os muros do governo necessários para proteger esse capital, e capital e governo se combinam para limitar a liberdade, para restringir a propriedade. O capitalismo, portanto, não deve ser confundido com livre mercado, mas ser identificado como seu inimigo mortal, e confundir um com o outro é deixar de compreender a realidade da vida econômica, social e política modernas. O sr. Cucerai deve ser elogiado por seu olhar quase impávido sobre o capitalismo, mas ele deve ser criticado porque, no último minuto, ele exitou, ele se afastou das consequências lógicas de sua própria descrição para pular o ponto crucial sobre o qual a discussão como um todo deve se voltar. Ele foi até à beira e deu as costas há tão apenas um fio de cabelo de distância da verdade. Mas não podemos dar as costas, pois apenas se tivermos a coragem de olhar para as coisas como elas são podemos esperar ter a força de torná-las o que elas devem ser.