29/09/2012

Sobre a Democracia Pós-Moderna

por Alberto Buela



Os ideais da democracia como soberania popular, igualdade e liberdade são tão atraentes que regimes, de fato muito diferentes, sustentam estar de acordo com eles.

Assim temos diferentes tipos para designar a democracia, tais como governo democrático, governo popular, governo livre, república, governo constitucional, governo parlamentar, presidencialista, representativo, de eleições gerais, de sistema de partidos, plebiscitário, etc.

Todas estas denominações, e outras mais, são, por um lado, portadores de valores que o conceito de democracia diz representar: igualdade de oportunidades, direitos humanos, livre expressão, igualdade perante a lei. Porém por outro, mostram às claras que não existe uma teoria unificada da democracia: nomes como Rousseau, Burke, Paine, Hamilton, Tocqueville et alii, são expositores inquestionados e não concordantes entre si.

Esta carência, esta falta de uma teoria da democracia não tem sido até agora, posta suficientemente em destaque. Isso permitiu, como sucedeu com os governos marxistas ou as diferentes ditaduras na Nossa América, que os regimes antidemocráticos se aproveitassem dessa falta de uma teoria da democracia para se apresentarem como tais. Seja como democracias populares no caso do comunismo, seja como democracias fortes no caso de nossos tiranetes.

Este século que se vai nos mostrou dois tipos de democracia: a liberal e a social.

A primeira poderíamos caracterizar, grosso modo, como aquela que sustenta que para que a humanidade seja mais livre, o melhor é que o povo seja soberano e esta soberania popular implica uma igualdade política. Sua equação é indivíduo-partido-representação.

A democracia social podemos apresentar como aquela que sustenta que para que o homem viva melhor, o mais apropriado é que o povo seja soberano e esta soberania popular implica uma igualdade não somente política senão social. Sua equação é pessoa-partido e profissão-representação.

Muito se tem escrito sobre os traços diferenciais dessas duas concepções de democracia e não vale a pena abundar nisso. Porém há algo em que ambas coincidem, mais além do sistema eleitoral: um homem um voto, e é que ambas predicam a realização, a plasmação de valores tais como soberania popular, direitos humanos, igualdade de oportunidades, livre expressão, etc. E estes valores, tem sido causa de grandes lutas políticas em busca de sua implementação.

Pois bem, assistimos nessa última década a uma mudança substancial do conceito de democracia, ela deixou paulatinamente de lado esse núcleo vital de valores a preferir, para se reduzir a uma maquinaria de governo, a uma democracia procedimental. Já não mais predicação de valores, o que supõe preferir o bom e postergar o mau. Para essa nova democracia só vale que o procedimento seja coincidente com o sistema de normas. O recentíssimo Código de Convivência Urbana da cidade de Buenos Aires, que permite o exercício da prostituição na via pública por parte de prostitutas e travestis, é uma prova eloquente do que queremos mostrar. A corrupção que pulula por todas as partes se produz quando o sistema normativo cai em desuso. Nos transformamos em sociedades anômicas. Não interessa já que 9 milhões de argentinos ou 260 milhões de iberoamericanos ou toda a África subsaariana vivam sob a linha de pobreza, o que interessa é que o "procedimento democrático" se cumpra. Isso é a democracia reduzida a maquinaria processual.

A democracia pós-moderna é uma democracia procedimental que carece de todo conteúdo ético à qual não interessa a defesa de nenhum valor, salvo a coerência com as normas do sistema de poder. Agora bem, se essas normas por diferentes causas implica um conteúdo injusto, imoral ou perverso isso não interessa, porque a democracia procedimental não faz, como faziam suas predecessoras, a liberal e a social, predicação de conteúdos éticos. Esta democracia é para a política o que a filosofia analítica é para a filosofia dado que a esta corrente filosófica o que lhe interessa é a consistência dos enunciados e não seu conteúdo de verdade ou falsidade. Não faz predicação de existência.

A história recente da Argentina, que podemos fazer extensiva à Bolívia, Paraguai ou Brasil, nos mostra que para os presidentes da década precedente Alfonsín, Paz Zamora, Rodríguez e Sarney a democracia era considerada, em um excesso de democratismo, como "uma forma de vida". Havia, ainda que errado, um conteúdo ético tentado. Hoje, e desde há dez anos aproximadamente, para os atuais mandatários a democracia se limita a um simples procedimento, é um formalismo que, isso sim, há que cumprir à risca. Como o dogma é que ao poder só se chega ao voto, o como se consiga, não interessa. A conservação do poder se realiza através de uma reeleição perpétua com constituições ad hoc, o como se faça, não se explica.

Assim como temos assistido à despersonalização dos mercados financeiros, em A Bolsa de Julián Martel a fins do século passado, eram os judeus os especuladores e usurários, hoje não se pode, mas além da lei antidifamatória Fabius-Gayssot na França ou a De la Rua na Argentina, afirmar quem são com certeza absoluta devido ao crescente anonimato dos especuladores financeiros. Do mesmo modo assistimos em nossos dias à despersonalização da política. Os políticos são substituídos rapidamente pelos tecnocratas ao estar a política subordinada à economia. E os tecnocratas, isto é, os políticos pós-modernos, não tem rosto. Ao menos o político tradicional tinha que dar a sua clientela política alguma explicação de seus atos, o tecnocrata não dá razões, só benefícios a quem o paga. Os grandes atos de corrupção dessa última década, como o caso Banesto na Espanha ou o caso Banco Nación na Argentina, foram levados a cabo por tecnocratas e não por políticos.

A queda do Muro de Berlim não só arrasou a União Soviética, senão também à democracia liberal e ao político clássico, impondo de forma imperceptível à democracia procedimental e o tecnocrata.

Hoje para todos aqueles que temos proposto e defendido a realização da democracia social o caminho é duplo: Posto que para o neoliberalismo pós-moderno não rege como para o capitalismo liberal de anos atrás a preocupação com o desemprego e a marginalidade. Não lhe preocupa a inclusão das maiorias no mercado de trabalho nem de consumo. Sua lógica é a da exclusão e assim, descarta mão-de-obra e mais consumidores. Não lhe interessa gerar maiores fontes de trabalho - que sempre trazem problemas e custos - senão, concentrar dinheiro em menor número de consumidores, que compensam com suas vultuosas compras o maior número de clientes, antes buscados.

Na democracia procedimental de nossos dias esta lógica da exclusão funciona concentrando o poder político e econômico em pouquíssimas mãos. Assim os funcionários quando renunciam ou são renunciados não se retiram, como antes, a suas casas senão que são realocados em outros postos. A concentração de poder e riqueza destrói rapidamente a classe média criando uma sociedade de duas velocidades: os muito ricos e os muito pobres, cumprindo-se assim o princípio que diz: à maior privatização da riqueza, maior socialização da pobreza.

Na democracia procedimental, o estado, esvaziado de todos os seus aparatos de poder, pela privatização das empresas públicas, pela anulação de suas repartições, deixou de lado os três princípios que o constituíam: a ideai de bem comum como princípio de finalidade; a ideia de solidariedade como princípio de integração e a ideia de subsidiariedade como princípio supletivo. Ficando assim reduzido a simples "regulador dos contratos jurídicos e a repressor dos setores descontentes". Não chega nem mesmo, como no antigo capitalismo liberal, a estado policial que garantia a segurança das pessoas e a propriedade privada. Hoje a segurança é "coisa privada" e a propriedade privada está "socializada nos condomínios", esses castelos modernos sitiados por bairros paupérrimos.

Jean Jacques Rousseau, teórico indiscutido da democracia liberal, escreveu dois suplementos ao Contrato Social referidos à forma de governo que deveriam possuir Polônia e Córsega, onde bota ênfase na importância que se deve outorgar à história, à religião, aos costumes, à economia e à educação de cada povo antes de se estabelecer qualquer maquinaria de governo. Isso não só não foi muito tido em conta pelo liberalismo político senão, o que é mais pernicioso ainda, é absolutamente ignorado pela democracia procedimental pós-moderna.

Esse desenraizamento brutal do regime político por antonomásia de nossos dias provoca contradições tremendas que se manifestam como injustiças flagrantes e permanentes perante a qual aos prejudicados, que são as grandes maiorias, só resta a resignação ou a reação violenta. Existe também uma terceira via, muito mais árida, lenta e esforçada que é trabalhar na formação de quadros políticos munidos de convicções axiológicas. Uma tarefa eminentemente metapolítica.