E
deve ser observado, de passagem, que esta exigência para que o homem
desenvolva apenas uma habilidade não tem nada a ver com o que é
comumente chamado nosso sistema competitivo, mas existiria igualmente
sob qualquer tipo racionalmente concebido de coletivismo. A menos que os
socialistas estejam totalmente preparados para uma queda no padrão de
seus violinos, telescópios e lâmpadas elétricas, eles devem de alguma
forma criar uma demanda moral sobre os indivíduos de maneira que eles
mantenham a atual concentração em tais coisas. Foi apenas porque os
homens se tornaram, em algum grau, especialistas é que surgiram os
telescópios; eles devem ser, em algum grau, especialistas para
continuarem a construí-los. Não é fazendo um homem ser um assalariado
estatal que se possa impedi-lo de pensar principalmente sobre como é
difícil ganhar seu salário. Há apenas uma maneira de preservar no mundo
aquela superior leveza e aquela serena perspectiva contidas na antiga
visão de universalismo. E esta é permitir a existência de uma metade da
humanidade parcialmente protegida; uma metade a que o assédio da demanda
industrial inquieta, mas inquieta apenas indiretamente. Em outras
palavras, há de haver em cada centro da humanidade um ser humano
preocupado com um plano mais amplo; um ser humano que não “dê o seu
melhor”, mas que se dê integralmente.
Nossa
antiga analogia do fogo continua sendo a mais viável. O fogo não
precisa resplandecer como a eletricidade nem se agitar como a água
fervente; a questão é que ele resplandece mais que a água e aquece mais
que a luz. A esposa é como o fogo, ou para colocar as coisas na
perspectiva adequada, o fogo é como a esposa. Como o fogo, espera-se que
a mulher cozinhe; não de forma excelente, mas cozinhe; que cozinhe
melhor que seu marido, que está conseguindo a lenha lecionando botânica
ou quebrando pedras. Como o fogo, espera-se que a mulher conte histórias
para seus filhos, não histórias originais e artísticas, mas histórias –
histórias melhores do que as possivelmente contadas pelos cozinheiros
de primeira classe. Como o fogo, espera-se que a mulher ilumine e
esclareça, não pelas mais espantosas revelações ou as mais selvagens
agitações do pensamento, mas melhor que um homem pode fazer depois de
quebrar pedras ou lecionar. Mas não se pode esperar que ela suporte tal
responsabilidade universal se for suportar também a crueldade do
trabalho competitivo e burocrático. A mulher deve ser uma cozinheira,
mas não uma cozinheira competitiva; uma decoradora, mas não uma
decoradora competitiva, uma costureira, mas não uma costureira
competitiva. Ela não deve ter nenhum negócio, mas vinte hobbies; ela, ao
contrário do homem, deve desenvolver tudo que faz sem se preocupar em
atingir a perfeição. Isto é o que foi sempre buscado a princípio no que é
chamado reclusão, ou mesmo opressão, da mulher. As mulheres não foram
mantidas em casa para que fossem limitadas, foram mantidas em casa para
que fossem amplas. O mundo do lado de fora é uma massa de limitações, um
labirinto de caminhos estreitos, um hospício de monomaníacos. Foi por
esta parcial limitação e proteção da mulher que ela era capaz de
desempenhar-se em cinco ou seis profissões e assim se aproximar tanto de
Deus quanto a criança que brinca de ter cem profissões. Mas as
profissões da mulher, ao contrário das da criança, eram todas verdadeira
e, quase, terrivelmente frutíferas; tão tragicamente reais que nada
exceto sua universalidade e equilíbrio impediam que elas se tornassem
meramente mórbidas. Esta é a substância da alegação que ofereço sobre o
papel histórico da mulher. Não nego que as mulheres foram ofendidas ou
mesmo torturadas; mas duvido que elas tenham sido torturadas tanto
quanto o são agora pela moderna tentativa absurda de fazê-las ao mesmo
tempo rainhas do lar e funcionárias competitivas. Não nego que mesmo sob
a antiga tradição, as mulheres tivessem vidas mais difíceis que a dos
homens; esta é a razão porque tiramos nossos chapéus. Não nego que todas
essas várias funções femininas fossem exasperantes; mas digo que havia
algum objetivo e significado em mantê-las variadas. Não tento nem mesmo
negar que a mulher fosse uma criada; mas pelo menos era a criada
principal.
A
forma mais breve de resumir a questão é dizer que a mulher é a
responsável pela idéia da Sanidade; aquele lar intelectual para o qual a
mente retorna depois de cada excursão pela extravagância. A mente que
se dirige a lugares extravagantes é a do poeta; mas a mente que não
retorna é a do lunático. Deve haver em cada máquina uma parte que move e
uma parte imóvel; deve haver em tudo que muda uma parte imutável. E
muitos dos fenômenos que os modernos apressadamente condenam são
realmente partes dessa posição da mulher como centro e pilar da saúde.
Muito do que é chamada sua subserviência, e mesmo sua docilidade, é
meramente a subserviência e docilidade de um remédio universal; ela
varia como um remédio varia, conforme a doença. Ela tem de ser uma
otimista para um marido mórbido, uma pessimista salutar para um marido
excessivamente otimista. Ele tem de impedir que o Quixote seja abusado
pelos outros, e que o valentão abuse dos outros. O Rei da França
escreveu
“Toujours femme varie Bien fol qui s'y fie”
mas
a verdade é que a mulher sempre varia, e esta é a razão de sempre
confiarmos nela. Corrigir cada aventura e extravagância com seu
antídoto, usando o senso comum, não é (como os modernos parecem pensar)
estar na posição de um espião ou de um escravo. É estar na posição de
Aristóteles ou (no nível mais baixo) de Herbert Spencer, ser uma moral
universal, um completo sistema de pensamento. O escravo lisonjeia; o
moralista repreende. É ser, em resumo, um trimmer[1] no verdadeiro
sentido deste honroso termo, que por alguma razão, é sempre usado no
sentido oposto. Parece realmente que consideram um trimmer uma pessoa
covarde que sempre escolhe o lado mais forte. Mas este termo significa
realmente uma pessoa altamente cavalheiresca que sempre escolhe o lado
mais fraco; como aquele que equilibra a carga de um barco sentando-se
onde há poucas pessoas sentadas. A mulher é um trimmer, e isso é uma
função generosa, perigosa e romântica.
Um
fato final que determina isso é de natureza muito simples. Supondo que a
humanidade agiu de forma não artificial dividindo-se em duas metades,
respectivamente tipificando os ideais de talento especial e sanidade
geral (uma vez que eles são genuinamente difíceis de combinar
completamente em uma única mente), não é difícil ver porque a linha de
clivagem seguiu a linha do sexo, ou porque a fêmea tornou-se o emblema
do universal e o macho do especial e superior. Dois fatos gigantes da
natureza demonstraram isso: primeiro, que a mulher que freqüentemente
cumprisse literalmente suas funções não poderia ser especialmente
proeminente no experimento e na aventura; e segundo, que a mesma
operação natural a rodeava de crianças muito jovens, que exigiam não o
ensino de alguma coisa, mas o ensino de todas as coisas. Bebês não
precisam aprender uma profissão, mas precisam que se lhe apresentem um
mundo. Para resumir, a mulher é geralmente encerrada numa casa com um
ser humano numa época em que ele pergunta todas as questões que existem e
algumas que não existem. Seria estranho que ela retivesse qualquer
traço da estreiteza de um especialista. Ora, se alguém diz que essa
tarefa de esclarecimento geral (mesmo quando livre dos horários e das
regras modernas, e exercido espontaneamente por uma pessoa mais
protegida) é em si excessivamente exigente e opressiva, consigo entender
esse ponto de vista. Posso apenas responder que nossa raça considerou
que vale a pena colocar este peso sobre a mulher a fim de manter o senso
comum no mundo. Mas quando as pessoas começam a falar sobre esse
trabalho doméstico como não simplesmente difícil, mas trivial e
monótono, eu simplesmente desisto da discussão. Pois, eu não consigo,
com o máximo poder de imaginação, entender a respeito do que estão
falando. Quando a domesticidade, por exemplo, é chamada de lida penosa,
toda a dificuldade surge do duplo sentido da expressão. Se penosa
significar trabalho duro, admito que a mulher labute em casa, como o
homem pode labutar na Catedral de Amiens ou atrás de um canhão em
Trafalgar. Mas se penosa significar que o trabalho duro é mais pesado
porque é insignificante, sem graça e sem importância para a alma, então,
como disse, eu desisto; não sei o que as palavras significam. Ser a
Rainha Elizabete dentro de uma área definida, decidindo salários,
banquetes, tarefas e feriados; ser Whiteley[2] dentro de certa área,
suprindo brinquedos, sapatos, bolos e livros; ser um Aristóteles dentro
de certa área, ensinando moral, boas maneiras, teologia e higiene; posso
entender como isso pode exaurir uma mente, mas não posso imaginar como
pode estreitá-la. Como pode ser uma larga carreira ensinar a Regra de
Três a crianças dos outros, e uma estreita carreira ensinar à sua
própria criança sobre o universo? Como pode ser amplo ensinar a mesma
coisa a todo mundo, e estreito ensinar tudo a alguém? Não; a função de
uma mulher é trabalhosa, mas porque é gigantesca, não porque é
minúscula. Tenho pena da Sra. Jones pela enormidade da sua tarefa, não
pela sua pequenez.
Mas
embora a tarefa essencial da mulher seja a universalidade, isso não a
impede, claro, de ter um ou dois fortes, mas grandemente saudáveis,
preconceitos. Ela tem sido, em geral, mais consciente do que o homem de
que ela é apenas uma das metades da humanidade; mas ela tem expressado
isso (se alguém pode dizer isso de uma senhora) agarrando com unhas e
dentes duas ou três coisas que considera ser suas responsabilidades. Eu
observaria aqui, entre parêntesis, que muito do recente problema oficial
sobre a mulher surgiu do fato de que elas transferem para as coisas da
razão e da dúvida aquela sagrada obstinação apenas apropriada às coisas
primárias que foram confiadas à guarda da mulher. O próprio filho, o
próprio altar, deve ser uma questão de princípio – ou se se preferir,
uma questão de preconceito. Por outro lado, a dúvida sobre quem escreveu
as Cartas de Junius[3] não deve ser uma questão de princípio ou
preconceito, deve ser uma questão de investigação livre e quase
indiferença. Mas tome uma garota moderna e cheia de vida, secretária de
uma associação e dê-lha a função de mostrar que George III escreveu tais
cartas, e em três meses ela acreditará nisso também, por mera lealdade a
seus empregadores. As mulheres modernas defendem seu escritório com
toda a ferocidade da domesticidade. Elas lutam pela mesa e pela máquina
de escrever como pelo lar, e desenvolvem um tipo de selvagem atitude
doméstica para com o chefe invisível da empresa. Esta é a razão de elas
fazerem o trabalho de escritório tão bem feito; e esta é a razão porque
elas não devem fazê-lo.
[1]
Trimmer tem dois significados principais: estivador (aquele que
equilibra a carga das embarcações) e oportunista. Chesterton brinca com
estes dois significados. (N. do T.)
[2][2] Grande loja de departamentos da Londres de Chesterton. (N. do T.)
[3]
Junius era o pseudônimo de um indivíduo, cuja a identidade é
desconhecido, que escreveu uma série de cartas para um jornal londrino,
Public Advertiser, entre 21 de janeiro de 1769 e 21 de janeiro de 1772.
De eminentemente político, tiveram grande repercussão no reinado de
George III. (N. do T.)