por Claudio Mutti
Há algum tempo relia o canto XXVI do Inferno de Dante (o célebre canto de Ulisses). Como provavelmente recordareis, em certo momento o Ulisses dantesco recorda a arenga com a qual convenceu seus companheiros de expedição para atravessarem as Colunas de Hércules: "O frati, dissi, che per cento milia - perigli siete giunti all'occidente (...)" (1). Esforçando-me em vislumbrar algo daquele sentido alegórico que, por declaração expressa de Dante, tenha ficado oculto por trás do sentido literal, aventurei a seguinte conjectura: o Ocidente evocado por Ulisses na sua pequena oração é provável que não esgote seu significado na acepção espacial e geográfica do vocábulo "Ocidente", que designa o lugar do "Sol que morre" (Sol occidens), o lugar onde acaba o cosmos humano e começa o "mondo sanza gente" (2), o reino das trevas e da morte.
É portanto provável que o Ocidente dantesco, tendo em conta a polivalência do símbolo, assinale também uma fase temporal, assim pois um sentido ulterior do discurso de Dante seria que seus companheiros, enquanto "vecchi e tardi", tenham chegado "a l'occidente" de sua existência, isto é à proximidade da morte. (3)
E assim como eles representam à humanidade europeia, como não compreender, simultaneamente, que a Europa devia chegar - e de fato teria chegado precisamente na época de Dante, nos inícios do século XIV - à proximidade dessa fase histórico-cultural que, segundo o que disse René Guénon, "representou na realidade a morte de muitas coisas"?
Porém Ocidente, o lugar das trevas, é também um símbolo disso que Martin Heidegger denominou "o escurecimento do mundo". "Mundo" - explica o próprio Heidegger - "deve entender-se sempre em sentido espiritual", pois, "o escurecimento do mundo implica uma despotencialização do espírito". E a situação da Europa, continua Heidegger, "resulta muito mais fatal e irremediável enquanto a despotencialização do espírito provem dela mesma".
Esta despotencialização do espírito, este escurecimento do mundo, teve, segundo Guénon, seu momento decisivo com o final da grande civilização medieval (a última civilização relativamente normal conhecida pela Europa) e com o início da cultura imanentista e laica do Renascimento. Segundo Heidegger, "ainda que tenha sido preparado desde o passado, este (o escurecimento do mundo) manifestou-se definitivamente partindo das condições espirituais da primeira metade do século XIX", verbigratia: mediante o triunfo do racionalismo contemporâneo, do materialismo, do individualismo liberal.
Em qualquer caso, podemos afirmar que este escurecimento do mundo marchou em paralelo com o que foi recentemente denominado "a ocidentalização do mundo".
O inferno, no fundo do qual acabou esse Ulisses dantesco que abandonou a Europa para adentrar nas trevas ocidentais, é um Ocidente perene (lei da balança!), porque a luz não ilumina ali jamais. Dante escapa dessa eterna treva ocidental e infernal graças à orientação de Virgílio, o poeta do Império, o poeta de um Império que, como diz-se em Paraíso, VI, 4-6, está por sua própria origem vinculada a Europa: "cento e cent'anni e più l'uccel di Dio - ne lo stremo d'Europa si ritenne, - vicino a'monti de' quai prima uscìo". (4)
Em efeito, devemos recordar que, segundo Dante, a Águia imperial ("l'uccel di Dio") teve sua origem "ne lo stremo d'Europa", isto é na atual Anatólia, ali onde alçava-se Tróia. Por outra parte, também Europa, a donzela "dall'amipio volto" que foi amada por Zeus e que deu seu nome a nosso continente, era originária da margem oriental do Mediterrâneo.
Seria interessante parar para considerar que para os gregos e para os romanos, e ainda depois para os homens do medievo, a imagem geográfica de Europa estendia-se para o oriente muito mais que na idade moderna e na contemporânea; porém isto seria outro discurso. (5)
Nós, que estamos aqui para falar do "destino de Europa", devemos ao contrário perguntar: quem assinalará a Europa, nos umbrais do terceiro milênio, o caminho para sair do Ocidente e voltar "a riveder le stelle"?
A primeira tarefa consiste em efetuar um esclarecimento. Devemos portanto reestabelecer os verdadeiros termos da relação que se estabelece entre Europa e Ocidente, relação de natural oposição e de antagonismo; devemos refutar uma escandalosa sinonimia que, imposta pelos vencedores ocidentais da Segunda Guerra Mundial, foi aceita pelos europeus da forma mais acrítica e ignorante.
O conceito Ocidente é relativamente novo e resulta sinônimo quase de modernidade; por conseguinte, como visão do mundo, Ocidente é essencialmente outro em relação ao espírito que preside as manifestações da civilização europeia tanto na Antiguidade como no Medievo.
É certo que a civilização ocidental trata costumeiramente de identificar suas próprias raízes com alguma das fases histórico-culturais através das quais configurou-se a Europa, quer dizer, a antiga Grécia, o mundo romano, ou a cristandade latino-germânica.
Não obstante, é preciso objetar que, se a modernidade é "desencanto do mundo", resulta quando menos aventureiro apresentar como antecedente da civilização ociental à cultura grega, isto é uma cultura que não produz somente antecipações do pensamento moderno como o racionalismo sofístico e o mecanicismo atomista, mas que expressa-se também (e sem dúvida em maior medida e com maior intensidade) nos Mistérios órficos e eleusinos, na teologia da história de Heródoto, na metafísica dos pré-socráticos, de Platão, e de Aristóteles, na poesia religiosa de Ésquilo e Píndaro, na teurgia e na mística dos platônicos.
E nem ao menos está claro em função de que lógica o Ocidente teria direito a remeter-se à civilização romana, que em realidade funda-se precisamente sobre aquilo que é mais escandaloso desde o ponto de vista da modernidade, a saber: sobre a identificação do âmbito religioso com o jurídico e político. Uma identificação que posteriormente voltou a dar-se acaso sob o Islã, mas de nenhum modo na civilização ocidental.
Por outro lado, o Império de Roma, como posteriormente também o Império Bizantino, e o Império dos Otomanos, não foi um império ocidental, senão uma grande síntese mediterrânea e, em certa medida, eurasiática. Inclusive o Sacro Império Romano pareceu recuperar uma dimensão deste gênero, quando, com Frederido da Suábia, a corte imperial transferiu-se a Palertmo e o Imperador estendeu sua autoridade sobre Jerusalém e outras partes da Palestina. A própria Alemanha, que enquanto imagem histórica do Império medieval seguiu sendo até 1945 das Reich, o Império, buscou sempre seu próprio espaço não na direção do ocidente, mas na direção do oriente.
Voltando a Ulisses, recordo ter lido em alguma publicação que o Odisseu homérico, "foi o viajante da modernidade". Uma vulgaridade deste tipo, que revela a necessidade da modernidade de inventar-se uma galeria de antepassados, é possível precisamente porque a essência do Odisseu homérico, protótipo do homo europaeus, foi tergiversada pela própria modernidade.
De fato, para a percepção moderna Odisseu não é o que era para os gregos, a saber: o anèr polytropos que, alentado pela nostalgia das Origens e auxiliado por Athena, quer dizer pelo Intelecto divino, luta contra as forças inferiores e, após um longo cativeiro na ilha ocidental de Eea, retorna a uma pátria "central", a uma "terra do meio", que simboliza essencialmente a perfeição primordial do estado humano.
A modernidade desfigurou o Odisseu homérico convertendo-o em um herói cultural a sua própria imagem e semelhança; assim, colocado diante de um espalho deformador, o homo europaeus devolve-nos a imagem falaciosa do homo occidentalis.
Existe logo uma variente "filosófica" para chamá-la de algum modo, da mesma vulgaridade: o Odisseu que descreve a Penélope o leito matrimonial talhado com a madeira da oliveira (o leito de Odisseu é em realidade o símbolo homérico do Axis Mundi) segundo Horkheimer e Adorno seria, vejam só, o "protótipo do burguês (que) tem, em sua esperteza um hobby", aquilo de "faça você mesmo". Os autores da Dialética do Iluminismo completamente ignorantes do autêntico significado do herói homérico, acreditaram poder identificar, por trás da máscara de Odisseu, o rosto do burguês ocidental que dá início ao desenvolvimento racionalista liberando-se da superstição e exercitando seu domínio sobre a natureza e sobre os homens.
O Odisseu dos rabinos da Escola de Frankfurt converte-se desse modo na metáfora desse poder racional de domínio que organiza-se como saber sistemático e tem como sujeito ao burguês ocidental, "nas formas sucessivas - assim escrevem eles - do escravista, do livre empreendedor, do administrador". Não obstante, tal metáfora baseia-se em uma típica redução do superior ao inferior, posto que Adorno e Horkheimer identificam indevidamente o intelecto (princípio de ordem universal) com a razão (faculdade especificamente humana, limitada, relativa, e individual). Agora bem, Odisseu, protótipo do homo europaeus, é concretamente um símbolo do intelecto, quer dizer, do princípio espiritual que transcende a individualidade e com ela o conjunto de elementos psíquicos e corporais, representados no poema homérico pelos companheiros do herói.
O périplo da Escola de Frankfurt, nascido pela iniciativa de um grupo de judeus liberais, conclui seu ciclo desembocando finalmente em uma explícita adesão ao judaísmo. Pouco antes de morrer, Horkheimer recomendu "o retorno a Jeová" e a "eterna espera" de um Messias que, dito pelo próprio Horkheimer, não virá nunca. Esta posição será retormada e desenvolvida pelos chamados nouveaux philosophes André Glucksmann e Bernard Henri-Lévy.
Agora, no que concerne à irredutibilidade do Odisseu homérico, protótipo do homo europaeus, à visão judaica e à visão moderna, remetemo-nos às palavras de um autorizado representante do pensamento judaico-cristão, Sérgio Quinzio, o qual em Radici Ebraiche del Moderno afirma que não somente a concepção grega do tempo, senão também a concepção grega do espaço é circular, dado que o espaço odisíaco transcorre de Ítaca a Ítaca. O tempo e o espaço dos gregos - escreve Quinzio - "são o tempo e o espaço do eterno retorno, nos quais nada realmente novo pode suceder. Vice-versa, como o tempo judaico é linear, assim também o espaço judaico é linear, vai desde a terra da escravidão à terra prometida".
Pelo demais, já Emmanuel Levinas havia contraposto em termos de antítese irredutível o retorno odisíaco e o êxodo bíblico, assim como as figuras de Odisseu e de Abraão: o Abraão da representação bíblica, naturalmente, porque bem distinta resulta a figura do Profeta Ibrahim tal como é traçada no Corão; o qual rechaça de plano (ad. es. III, 60) (6) a caracterização judaica e cristã do Patriarca de Ur, fazendo deste último um representante da Tradição Primordial. "Ao mito de Ulisses que retorna a Ítaca - escreve Levinas em La Traccia dell'Altro - gostaríamos de contrapôr a história de Abraão que deixa para sempre sua pátria por uma terra ainda desconhecida e que proíbe a seu criado voltar a levar seu filho até àquele ponto de partida".
Evocando a este Abraão bíblico e antiodisíaco, protótipo dos "pais peregrinos" que abandonaram a Europa para estabelecer-se no continente ocidental, Levinas deu forma ao contramito do desenraizado: uma espécie de "contramito fundador" da Civilização ocidental, na qual tem um peso relevante o que René Guénon chama o "aspecto 'maléfico' e desviado do nomadismo". Em qualquer caso, Levinas teve o mérito de contrapôr explícitamente ao protótipo mítico do homo europaeus o protótipo contramítico e antitradicional do homo occidentalis.
Assim com toda justiça, foi dito que a Odisséia, junto à Ilíada, constitui o que qualificou-se como a Bíblia dos Gregos, do mesmo modo que a Eneida será a Bíblia dos Romanos. Se queremos usar uma linguagem consequente com esta metáfora, devemos afirmar que Homero foi o primeiro profeta da Europa, e que seus poemas constituíram a mais antiga revelação religiosa manifesta aos europeus.
Em uma página repleta de pathos nietzscheano, o grande filólogo clássico e historiador das religiões Walter Otto descreve a visão homérica contrapondo-a implícitamente à judaico-cristão, nos seguintes termos: "Homero converte-se na Bíblia dos Helenos (...) Também sua revelação teve um grande eco, porém muito mais viril, mais fiel à vida, mais respeitosa com a realidade que a mensagem de espíritos transtornados, em contenda consigo mesmo e com a vida. A religião na qual o povo devia ser instruído havia sido primeiramente relevada ao coração dos mais nobres e dos mais gentis. (...) A religião de Homero era religião revelada segundo a opinião certa e humana de que todo grande pensamento é filho da divindade" (W. Otto, Spirito classico e mondo cristiano, La Nuova Italia, Firenze, 1973, p.25).
Em um escrito de 1931 que, investigando as origens do espírito europeu, identifica na herança homérica a prefiguração de nossa identidade de europeus, Walter Otto volta a falar de Homero: "Ele não é portanto somente o mestre que criou na Europa a primeira grande poesia, dando por escrito a lei vivente da arte poética europeia. Não é tampouco somente o destinado a elevar-se a expressão do ser grego de modo tão grande e profundo que sua obra converte-se em gênio formativo de toda a nação. Ele é também para nós, ainda hoje, não obstante os avatares históricos, aquele que proclama admiravelmente a vida e o mundo. (...) De fato, através dele o espírito grego, e com ele o europeu, encontrou sua primeira expressão, que permanece válida até a data. E se compreendessemos de modo correto sua palavra, quiçá também o significado da ciência e da filosofia gregas mostraria-nos seu mais profundo significado". (W. Otto, Lo Spirito Europeu e la Saggezza dell'Oriente, SEB, Milano, 1997, p.11).
Junto a Homero, o outro grande mestre da antiguidade européia é Platão. Não por casualidade outro filósofo judeu e liberal, Karl Popper, assignou a Platão o papel de pai espiritual da corrente de "inimigos da sociedade aberta", uma corrente que partindo do pensamento platônico chega aos totalitarismos do século XX.
Popper à parte, a República de Platão resulta fundamental com relação ao reconhecimento da originária Weltanschauung européia, porque em dita obra encontramos exposta de forma transparente e orgânica essa doutrina da trifuncionalidade que, segundo Georges Dumézil, constituiu a característica própria de todas e cada uma das sociedades indo-europeias, tanto da Europa como da Ásia.
Como é sabido, os estudos realizados por Dumézil no domínio da história das religiões e da linguística demonstraram que os povos indo-europeus mais além do parentesco idiomático, possuem uma estrutura mental específica e uma concepção pecular do fato religioso, da sociedade, da soberania, das relações entre o homem e a Divindade. Em definitiva, Dumézil sacou à luz uma comum Weltanschauung indo-europeia, uma visão do mundo plena de implicações teológicas e político-sociais, segundo a qual a comunidade pode viver e prosperar graças somente à colaboração e à solidariedade das três funções de soberania, força, e fecundidade. A primeira função (a soberania) corresponde ao sagrado, ao poder, e ao direito; a segunda (a força) corresponde à atividade guerreira; a terceira (a fecundidade) corresponde à produção e à distribuição dos bens materiais.
Agora, se na estrutura religiosa e social ilustrada por Dumézil manifesta-se uma exigência fundamental da mais profunda mentalidade indo-européia; se a denominada "ideologia trifuncional" é uma característica inerente à mentalidade do europeu; se ela é uma dessas estruturas latentes que resultam indissociáveis da cultura e do espírito de um povo e se conservam de algum modo através das gerações, tão é assim que ainda na Idade Média a composição da sociedade era estabelecida pelas três categorias dos oratores, bellatores, e laboratores e que tal tripartição sobreviveu de alguma forma até a Revolução Francesa - então seria lícito fazer a seguinte pergunta: Em que medida a concepção trifuncional pode encarnar uma via para voltar a pensar o mundo e a vida em termos adequados a nossa qualidade de europeus?
Sobre esta interrogação não seria supérfluo refletir seriamente. De momento, bastaria fazer notar que a organização liberal-capitalista da sociedade é típica não da civilização europeia, mas da civilização ocidental. O lema de tal organização poderia ser a frase proverbial que circula nos EUA: Whatever is good for General Motors is also good for the USA. (7)
De fato, o liberal-capitalismo, surgido da Revolução Francesa com a rebelião da terceira função, o Terceiro Estado, contra as outras duas, representa por uma parte o poder efetivo do elemento econômico sobre o político e sobre o militar, enquanto que por outro lado transporta uma penetração da mentalidade mercantil nas camadas da sociedade. Uma sociedade normal, ao contrário, é aquela na qual governa a função soberana; uma sociedade é aquela na qual o política prevalece sobre o econômico.
O próprio conceito de Europa deve ser contemplado à luz da ideologia trifuncional. Mais além das simples relações comerciais (terceira função), mais além dos problemas próprios da defesa comum (segunda função), a Europa deve afrontar a questão principal, que é a de sua soberania (primeira função).
Este projeto somente pode extrair seu sustento de uma única fonte: nossa tradição mais autêntica. Em 1935 Martin Heidegger dizia dos alemães de então o que hoje poderia dizer dos europeus em geral: "Este povo poderá forjar para si um destino somente se é capaz de provocar em si mesmo uma ressonância (...) e se souber captar sua tradição de forma criadora. (...) E se a grande decisão concernente a Europa não deve realizar-se no sentido de uma aniquilação, somente realizar-se-á mediante o desdobramento, a partir deste centro, de novas forças históricas espirituais".
Em outros termos: se Europa tem todavia um futuro e se nós queremos encontrar uma solução europeia para seu futuro, devemos voltar-nos para nossas origens, interrogar aos mestres mais antigos de nossa cultura e - acreditamos poder acrescentar - colocar em marcha aquelas idéias que constituem a herança espiritual especificamente europeia.
Alguém poderia objetar que o ponto de vista do supracitado Walter Otto, resumível em uma fórmula do tipo "A Weltanschauung homérica ou seja europeia", deve ser atualizado e substituído por aquele que encontramos sintetizado no célebre título de Novalis, A Cristandade ou seja Europa. Em todo caso, o corolário de tais fórmulas, que reivindicam ambas a Europa, poderia ser "A modernidade ou seja Ocidente". Em realidade, como recorda Franco Cardini em "Nós e o Islã" (8), "o conceito Ocidente é relativamente novo e parece de per si inseparável do de modernidade".
Se enquanto visão do mundo Ocidente é sinônimo de modernidade e é por isso essencialmente outro em relação ao espírito que regeu as manifestações da civilização europeia na antiguidade e na idade média, também como elemento do simbolismo geográfico Ocidente opõe-se à Europa de forma radical.
Aqui convém colocar em evidência uma realidade elemental, que a cultura convertida em hegemônica tentou escurecer a todo custo. Basta dar uma olhada em qualquer atlas geográfico para dar-se conta de que o Ocidente do mapamundi terrestre coincide com o continente americano e com as águas oceânicas que o rodeiam. Europa não é Ocidente, poruqe encontra-se no hemisfério oriental e é parte integrante dessa unidade continental chamada Eurásia. Assim, se Europa tem uma relação de continuidade ou de contrato natural com outras partes do mundo, estas não são América, senão Ásia e África. Tudo isso, ainda sem dizê-lo, o próprio Cardini nos induz a pensar quando abre uma interrogação desse tipo: Porém o equador é realmente uma linha divisória também em termos culturais ou econômicos - e de poder- mais nítida do meridiano atlântico que separa o continente europeu do americano?
A tese da localização ocidental de nosso continente é por outra parte desmentida pela configuração geográfica das construções imperiais que unificaram zonas mais ou menos amplas do espaço europeu. Os impérios de Alexandre, de Roma, de Bizâncio, dos Otomanos, foram grandes sínteses eurasiáticas e mediterrâneas. Inclusive o Sacro Império Romano pareceu recuperar uma dimensão desse gênero, quando com Frederico II da Suábia, a corte imperial trasladou-se a Palermo e o próprio Imperador estendeu sua autoridade sobre Jerusalém e outras zonas da Palestina. A própria Alemanha, que enquanto imagem histórica do Império medieval seguiu sendo até 1945 das Reich, o Império, buscou sempre seu próprio espaço não na direção do ocidente, mas do oriente.
Mais além da extensão no espaço que alcançaram realmente e da incidência temporal dos efeitos dela derivados, todas as ações políticas que trataram de unificar o continente contribuíram a consolidar o tecido eurasiático, mais além das divisões políticas, das diferenças étnicas, e das contraposições culturais.
Se é certo que os mitos implicam uma série de significados sobrepostos ao literal, não seria de todo ilegítimo buscar nesse difundido arquétipo que fala-nos do desmembramento de um deus (Prajapati, Osírios, Zagreus, etc.) e da posterior origem do cosmos a partir de seus membros dispersos, um significado relacionado com a origem da geografia terrestre. O que são em realidade o conjunto das terras emersas, senão um corpo, dividido nessas quatro ou cinco partes que convimos em chamar continentes?
Tratemos primeiramente de estabelecer o número destes últimos, porque é possível enumerar quatro (Eurásia, África, Oceania, América) ou quiçá cinco (Eurasia, África, Oceania, América setentrional, América meridional). A partir de seu número, poderemos aplicar à geografia de nosso planeta uma analogia ou outra. De fato, para um esquema quaternário valerá o simbolismo dos quatro elementos constitutivos do cosmos (ar, água, fogo, terra), enquanto que o eixo central corresponderá ao elemento invisível e central, a quintessência, o éter.
Para um esquema quinário, vice-versa, será possível aplicar o simbolismo do corpo humano. Em tal caso, se imaginamos aos cinco continentes como partes de um corpo análogo ao do ser humano, poderíamos dizer que Eurásia constitui a parte central e essencial, a que contem a cabeça e o tronco, alojando dentro de si pois o coração, o cérebro e todos os demais órgãos vitais, enquanto que os outros quatro continentes (África, Oceania, e as duas Américas) representam as quatro extremidades do corpo.
Efetivamente, todas as regiões mais importantes desde o ponto de vista da economia espiritual encontram-se concentradas na Eurásia. A partir de centros eurasiáticos irradiaram-se as influências tradicionais que alcançaram posteriormente o resto do planeta: desde o xamanismo siberiano mais arcaico, que através de migrações pré-históricas estendeu-se pelas duas Américas, até a revelação corânica que selou o ciclo tradicional da atual humanidade e difundiu-se igualmente mais além dos limites da Eurásia. E isto para citar somente duas, a mais antiga e a mais recente, entre as formas tradicionais que manifestaram-se originariamente no solo eurasiático.
Porém quisera concluir apresentando para vossa reflexão outro mito, do qual desprende-se toda a futilidade do conceito de Ocidente entendido como realidade em si mesma, enquanto que resulta a posteriori afirmada a conformidade da idéia do Império no espaço eurasiático.
Trata-se do mito de Alexandre e particularmente da caracterização que dele foi realizada desde a tradição islâmica, a qual na Sura da Caverna do Corão assigna ao "Bicorne" uma função não somente imperial, senão também escatológica (9). Segundo o simbolismo posto em relevo desde este específico contexto tradicional, a marcha empreendida por Alexandre Magno ao longo da linha oeste-leste traduz no plano geográfico essa modalidade "expansivva" que a doutrina islâmica denomina "amplitude". Agora bem, "amplitude" e "exaltação" são dois termos que correspondem às duas fases da Viagem Noturna do Profeta Maomé, paradigma do caminho iniciático que alcança a realização suprema.
De fato, Fadlallah al-Hindi afirmou: "Seja a exaltação seja a amplitude alcançaram sua perfeição no Profeta, que Deus o bendiga e dê-lhe a Paz". Porém aqui é preciso acrescentar que, segundo um dito tradicional do próprio Profeta, Alexandre foi entre todos os homens o mais semelhante a ele. E isto não somente porque Alexandre cruza a terra em sua extensão horizontal, de oeste a leste, senão também porque, segundo outro dito atribuído ao Mensageiro de Deus, depois da fundação de Alexandria do Egito, o Macedônio foi levado ao céu por um anjo. Por outra parte, as histórias relativas a descida de Alexandre ao fundo do mar e a sua ascensão celestial até a esfera do fogo tiveram ampla difusão quer seja no Oriente como na Europa medieval.
Desse modo, a figura de Alexandre pode remeter-se, pelos significados que transporte, a uma doutrina íntegra do Sacro Império, pois ele, tendo desenvolvido todas as suas possibilidades segundo os dois sentidos horizontal e vertical, é ao mesmo tempo possuidor da realeza e do sacerdócio, é simultaneamente rex e pontifex. E sua figura coloca-se no fundo do espaço eurasiático, que constitui não somente o cenário histórico, senão a projeção espacial mesma correspondente à idéia do Império.
NOTAS
(1)NdelT.- "OH hermanos –dije-, que tras cien mil / peligros a occidente habéis llegado(...)"(XXVI, 112-13). Divina Comedia. Seguiremos siempre la traducción y edición de Giorgio Petrocchi y Luis Martínez de Merlo, Cátedra, Madrid, 1998;
(2)NdelT.- "... el mundo inhabitado" (XXVI, 117);
(3)NdelT.- "Viejos y tardos ya nos encontrábamos/ al arribar a aquella boca estrecha/ donde Hércules plantara sus columnas (...)" (XXVI, 106,108)
(4)NdelT.- "más de cien y cien años se detuvo /en el confín de Europa aquel divino/ pájaro, junto al monte en que naciera(...)"
(5)NdelT.- Resulta curioso que actualmente, en la estela de cierto discurso de Estado francés, algunos pájaros no precisamente divinos, graznen contra la supuesta "europeidad" geográfica y –sobre todo- política de Turquía, confundiendo sus propios prejuicios étnico-religiosos euro-sionistas con los orígenes sagrados indo-arios de la civilización europea;
(6)NdelT.- Debe tratarse de un error tipográfico. En realidad, las aleyas dedicadas a Ibrahim/Abraham comienzan en III, 65 y ss. Por ejemplo: "Abraham no fue judío ni cristiano, sino que fue hanif [monoteísta primordial], sometido a Dios, no asociador." (III, 67) Alcorán, edición y traducción de Julio Cortés y Jacques Jomier, Herder, Barcelona, 1986)
(7)NdelT.- Lo que es bueno para la General Motors es bueno para los Estados Unidos.
(8)NdelT.- Existe traducción española: Franco Cardini. "Nosotros y el Islam. Historia de un malentendido", Crítica, Barcelona, 2002;
(9)NdelT.- Alcorán, XVIII, 83-98;
(1)NdelT.- "OH hermanos –dije-, que tras cien mil / peligros a occidente habéis llegado(...)"(XXVI, 112-13). Divina Comedia. Seguiremos siempre la traducción y edición de Giorgio Petrocchi y Luis Martínez de Merlo, Cátedra, Madrid, 1998;
(2)NdelT.- "... el mundo inhabitado" (XXVI, 117);
(3)NdelT.- "Viejos y tardos ya nos encontrábamos/ al arribar a aquella boca estrecha/ donde Hércules plantara sus columnas (...)" (XXVI, 106,108)
(4)NdelT.- "más de cien y cien años se detuvo /en el confín de Europa aquel divino/ pájaro, junto al monte en que naciera(...)"
(5)NdelT.- Resulta curioso que actualmente, en la estela de cierto discurso de Estado francés, algunos pájaros no precisamente divinos, graznen contra la supuesta "europeidad" geográfica y –sobre todo- política de Turquía, confundiendo sus propios prejuicios étnico-religiosos euro-sionistas con los orígenes sagrados indo-arios de la civilización europea;
(6)NdelT.- Debe tratarse de un error tipográfico. En realidad, las aleyas dedicadas a Ibrahim/Abraham comienzan en III, 65 y ss. Por ejemplo: "Abraham no fue judío ni cristiano, sino que fue hanif [monoteísta primordial], sometido a Dios, no asociador." (III, 67) Alcorán, edición y traducción de Julio Cortés y Jacques Jomier, Herder, Barcelona, 1986)
(7)NdelT.- Lo que es bueno para la General Motors es bueno para los Estados Unidos.
(8)NdelT.- Existe traducción española: Franco Cardini. "Nosotros y el Islam. Historia de un malentendido", Crítica, Barcelona, 2002;
(9)NdelT.- Alcorán, XVIII, 83-98;