17/11/2010

Paganismo e Filosofia da Vida em Knut Hamsun e D.H. Lawrence

por Robert Steuckers

O filólogo húngaro Akos Doma, formado na Alemanha e nos EUA, acaba de publicar uma obra de exegese literária, na qual faz um paralelismo entre as obras de Hamsun e Lawrence. O ponto em comum é uma "crítica da civilização". Conceito que, obviamente, devemos apreender em seu contexto. Em efeito, a civilização seria um processo positivo desde o ponto de vista dos "progressistas", que entendem a história de forma linear. Em efeito, os partidários da filosofia do Aufklärung [*Iluminismo] e os adeptos incondicionais de uma certa modernidade tendem à simplificação, à geometrização e à "cerebrização". Sem embargo, a civilização mostra-se a nós como um desenvolvimento negativo para todos aqueles que pretendem conservar a fecundidade incomensurável em relação aos venenos culturais, para os que constatam, sem escandalizar-se com isso, que o tempo é plurimorfo; quer dizer, que o tempo para uma cultura não coincide com o da outra, em contraposição aos iluministas quem se afirmam na crença de um tempo monomorfo e aplicável a todos os povos e culturas do planeta. Cada povo tem seu próprio tempo. Se a modernidade rechaça esta pluralidade de formas do tempo, então entramos irremissívelmente no terreno do ilusório.

Desde um certo ponto de vista, explica Akos Doma, Hamsun e Lawrence são herdeiros de Rousseau. Porém, de qual Rousseau? Do que foi estigmatizado pela tradição maurrasiana (Maurras, Lasserre, Muret) ou daquele outro que critica radicalmente o Aufklärung sem que isso comporte defesa alguma do Antigo Regime? Para o Rousseau crítico do Iluminismo, a ideologia moderna é, precisamente, o oposto real do conceito ideal em sua concepção da política: aquele é anti-igualitário e hostil à liberdade, ainda que reivindique a igualidade e a liberdade. Antes da irrupção da modernidade ao longo do século XVIII, para Rousseau e seus seguidores pré-românticos, existiria uma "comunidade sadia", a convivência reinaria entre os homens e as pessoas seriam "boas" porque a natureza é "boa". Mais tarde, entre os românticos que, no terreno político, são conservadores, esta noção de "bondade" seguirá estando presente, ainda que na atualidade tal característica se considere como patrimônio exclusivo dos ativistas ou pensadores revolucionários. A idéia de "bondade" tem estado presente tanto na "direita" como na "esquerda".

Sem embargo, para o poeta romântico inglês Wordsworth, a natureza é "o marco de toda experiência autêntica", na medida em que o homem se enfrenta de uma maneira real e imediatamente com os elementos, o que implicitamente nos conduz mais além do bem e do mal. Wordsworth é, de certa forma, um "perfectibilista": o homem fruto de sua visão poética alcança o excelso, a perfeição; porém dito homem, contrariamente ao que pensavam e impunham os partidários das Luzes, não se aperfeiçoava somente com o desenvolvimento das faculdades do intelecto. A perfeição humana requer acima de tudo passar pela prova do elemento natural. Para Novalis, a natureza é "o espaço da experiência mística, que nos permite ver mais além das contingências da vida urbana e artificial". Para Eichendorff, a natureza é a liberdade e, em certo sentido, uma transcendência, pois permite escapar aos corpetes das convenções e instituições.

Com Wordsworth, Novalis e Eichendorff, as questões do imediato, da experiência vital, do rechaço das contingências surgidas da artificialidade dos convencionalismos, adquirem um importante papel. A partir do romantismo se desenvolve na Europa, acima de tudo na Europa setentrional, um movimento hostil a toda forma moderna de vida social e econômica. Carlyle, por exemplo, cantará o heroísmo e denegrirá a "cash flow society". Aparece a primeira crítica contra o reino do dinheiro. John Ruskin, com seus projetos de arquitetura orgânica junto à concepção de cidades-jardim, tratará de embelezar as cidades e reparar os danos sociais e urbanísticos de um racionalismo que desembocou no puro manchesterismo. Tolstói propõe um naturalismo otimista que não tem como ponto de referência a Dostoiévski, brilhante observador este último dos piores perfis da alma humana. Gauguin transplantará seu ideal da bondade humana à Polinésia, ao Taiti, em plena natureza.

Hamsum e Lawrence, contrariamente a Tolstói ou a Gauguin, desenvolverão uma visão da natureza carente de teologia, sem "bom fim", sem espaços paradisíacos marginais: assimilaram a dupla lição do pessimismo de Dostoiévski e Nietzsche. A natureza nesses não é um espaço idílico propício para excursões tal como sucede com os poetas ingleses do Lake District. A natureza não somente não é um espaço necessariamente perigoso ou violento, mas sim que é considerado aprioristicamente como tal. A natureza humana em Hamsun e Lawrence é, antes de nada, interioridade que conforma os recursos interiores, sua disposição e sua mentalidade (tripas e cérebro inextricavelmente unidos e confundidos). Tanto em Hamsun como em Lawrence, a natureza humana não é nem intelectualidade nem demonismo. É, antes de nada, expressão da realidade, realidade tradução imediata da terra, Gaia; realidade enquanto fonte de vida.

Frente a este manancial, a alienação moderna leva a duas atitudes opostas: 1º necessidade da terra, fonte de vitaldiade, e 2º soçobra na alienação, causa de enfermidades e escleroses. É precisamente nessa bipolaridade em que se deve localizar as duas grandes obras e Hamsun e de Lawrence: 'Benção da Terra', para o norueguês, e 'O Arco-Íris', do inglês.

Em 'Benção da Terra' de Hamsun, a natureza constitui o espaço do trabalho existencial no qual o homem opera com total independência para se alimentar e se perpetuar. Não se trata de uma natureza idílica, como sucede em certos utopistas bucólicos, e ademais o trabalho não foi abolido. A natureza é inabarcável, conforma o destino, e é parte da própria humanidade de tal forma que sua perda comportaria desumanização. O protagonista principal, o camponês Isak, é feio e desalinhado, é tosco e simples, porém inquebrantável, um ser limitado, porém não isento de vontade. O espaço natural, a Wildnis, é esse âmbito que tarde ou cedo há de levar a pegada do homem; não se trata do espaço ou o reino do homem convencional ou, mais exatamente, o delimitado pelos relógios, mas sim o do ritmo das estações, com seus ciclos periódicos. Em dito espaço, em dito tempo, não existem perguntas, se sobrevive para participar do refúgio de um ritmo que nos transborda. Esse destino é duro. Inclusive chega a ser muito duro. Porém em troca oferece independência, autonomia, permite uma relação direta com o trabalho. Outorga sentido, porque tem sentido. Em 'O Arco-Íris', de Lawrence, uma família vive de forma da terra de forma independente, apenas com o lucro de suas colheitas.

Hamsun e Lawrence, nessas duas novelas, nos legam a visão de um homem unido à terra (ein beheimateter Mensch), de um homem ancorado em um território limitado. O beheimateter Mensch ignora o saber livresco, não tem necessidade das prédicas dos meios informativos, sua sabedoria prática lhe é suficiente; graças a ela, seus atos tem sentido, inclusive quando fantasia ou dá rédea solta aos sentimentos. Esse saber imediato, ademais, lhe proporciona unidade com os outros seres.

Desde uma ótica como essa, a alienação, questão fundamental no século XIX, adquire outra perspectiva. Geralmente se aborda o problema da alienação desde três pontos e vista doutrinais:

1º Segundo o ponto de vista marxista e historicista, a alienação se localizaria unicamente na esfera social, enquanto que para Hamsun ou Lawrence, se situa na natureza interior do homem, independentemente de sua posição social ou de sua riqueza material.

2º A alienação abordada a partir da teologia ou da antropologia.

3º A alienação percebida como uma anomalia social.

Em Hegel, e mais tarde em Marx, a alienação dos povos ou das massas é uma etapa necessária no processo de adequação gradual entre a realidade e o absoluto. Em Hamsun e Lawrence, a alienação é um conceito todavia mais categórico; suas causas não residem nas estruturas sócio-econômicas ou políticas, mas sim no distanciamento em respeito às raízes da natureza (que não é, consequentemente, uma "boa" natureza). Não desaparecerá a alienação com a simples instauração de uma nova ordem sócio-econômica. Em Hamsun e Lawrence, assinala Doma, é o problema da desconexão, da interrupção, o que tem um traço essencial. A vida social tornou-se uniforme, desemboca na uniformidade, na automatização, na funcionalização extrema, enquanto que a natureza e o trabalho integrado no ciclo da vida não são uniformes e requerem em todo momento a mobilização de energias vitais. Existe imediatidade, enquanto que na vida urbana, industrial e moderna tudo está mediatizado, filtrado. Hamsun e Lawrence se rebelam contra ditos filtros.

Para Hamsun e, em menor medida, Lawrence as forças interiores contam para a "natureza". Com a chegada da modernidade, os homens estão determinados por fatores exteriores a eles, como são os convencionalismos, a luta política e a opinião pública, que oferecem um tipo de ilusão para a liberdade, quando em realidade conformam o cenário ideal para todo tipo de manipulações. Em um contexto tal, as comunidades acabam por se desvertebrar: cada indivíduo fica reduzido a uma esfera de atividade autônoma e em concorrência com outros indivíduos. Tudo isso acaba por derivar em debilidade, isolamento e hostilidade de todos contra todos.

Os sintomas dessa debilidade são a paixão pelas coisas superficiais, os vestidos refinados (Hamsun), signo de uma fascinação detestável pelo externo; isto é, formas de dependência, signos de vazio interior. O homem quebra por efeito de pressões exteriores. Indícios, por fim, da perda de vitalidade que leva à alienação.

No marco dessa quebra que supõe a vida urbana, o homem não encontra estabilidade, pois a vida nas cidades, nas metrópoles, é hostil a qualquer forma de estabilidade. O homem alienado já não pode retornar a sua comunidade, a suas raízes familiares. Assim Lawrence, com uma linguagem menos áspera porém acaso mais incisiva, escreve: "He was the eternal audience, the chorus, the spectator at the drama; in his own life he would have no drama" ("Ele era a audiência eterna, o coro, o espectador do drama; porém em sua própria vida, não haveria drama algum"); "He scarcely existed except through other people" ("Ele mal existia, salvo através de outras pessoas"); "He had come to a stability of nullification" ("Ele havia chegado a uma estabilidade de nulificação").

Em Hamsun e Lawrence, o Ent-wurzelung e o Unbehaustheit, o desenraizamento e a carência de lar, essa forma de viver sem fogo, constitui a grande tragédia da humanidade de fins do século XIX e princípios do XX. Para Hamsun o lar é vital para o homem. O homem deve ter lar. O lar de usa existência. Não se pode prescindir do lar sem provocar em si mesmo uma profunda mutilação. Mutilação de caráter psíquico, que conduz à histeria, ao nervosismo, ao desequilíbrio. Hamsun é, ao fim e ao cabo, um psicólogo. E nos diz: a consciência de si é não raro um sintoma de alienação. Schiller, em seu ensaio Über naive und sentimentalische Dichtung, assinalava que a concordância entre sentir e pensar era tangível, real e interior no homem natural, ao contrário que no homem cultivado que é ideal e exterior ("A concordância entre sensações e penamente existia outrora, porém na atualidade somente reside no plano ideal. Esta concordância não reside no homem, mas sim que existe exteriormente a ele; trata-se de uma idéia que deve ser realizada, não um fato de sua vida").

Schiller advoga por uma Überwindung (superação) de dita quebra através de uma mobilização total do indivíduo. O romantismo, por sua parte, considerará a reconciliação entre Ser (Sein) e consciência (Bewusstsein) como a forma de combater o reducionismo que trata de encurralar a consciência sob os grilhões do entendimento racional. O romantismo valorará, e inclusive sobrevalorará, ao "outro" em relação à razão (das Andere der Vernunft): percepção sensual, instinto, intuição, experiência mística, infância, sonho, vida bucólica. Wordsworth, romântico inglês, representante "rosa" de dita vontade de reconciliação entre Ser e consciência, defenderá a presença de "um coração que observe e aprove". Dostoiévski não compartilhará dita visão "rosa" e desenvolverá uma concepção "negra", em que o intelecto é sempre causa de mal, e o "possesso" um ser que tenderá a matar ou suicidar-se. No plano filosófico, tanto Klages como Lessing retomarão por sua conta esta visão "negra" do intelecto, aprofundando, não obstante, no veio do romantismo naturalista: para Klages, o espírito é inimigo da alma; para Lessing, o espírito é a contrapartida da vida, que surge da necessidade ("Geist ist das notgeborene Gegenspiel des Lebens").

Lawrence, fiel em certo sentido à tradição romântica inglesa de Wordsworth, crê em uma nova adequação do Ser e da consciência. Hamsun, mais pessimista, mais dostoievskiano (daí sua acolhida na Rússia e sua influência nos autores chamados ruralistas, como Vasili Belov e Valentín Rasputin), nunca deixará de pensar que desde que há consciência, há alienação. Desde que o homem começa a refletir sobre si mesmo, se desliga da continuidade que confere a natureza e à qual deveria estar sempre sujeito. Nos ensaios de Hamsun, encontramos reflexões sobre a modernidade literária. A vida moderna, escreveu, influencia, transforma, leva o homem a ser arrancado de seu destino, a ser apartado de seu ponto de chegada, de seus instintos, mais além do bem e do mal. A evolução literária do século XIX mostra uma febre, um desequilíbrio, um nervosismo, uma complicação extrema da psicologia humana. "O nervosismo geral (ambiente) se apossou de nosso ser fundamental e se fixou em nossa vida sentimental". O escritor mostra-se a nós assim, ao estilo de um Zola, como um "médico social" encarregado de diagnosticar os males sociais com o objetivo de erradicar o mal. O escritor, o intelectual, se embarca em uma tarefa missionária que trata de chegar a uma "correção política".

Frente a esta visão intelectual do escritor, a reprovação de Hamsun assinala a impossibilidade de definir objetivamente a realidade humana, pois um "homem objetivo" é, em si mesmo, uma monstruosidade (ein Unding), um ser construído como se tratasse de um mecanismo. Não podemos reduzir o homem a um compêndio de características, pois o homem é evolução, ambigüidade. O mesmo critério encontramos em Lawrence: "Now I absolutely flatly deny that I am a soul, or a body, or a mind, or an intelligente, or a brain, or a nervous system, or a bunch of glands, or any of the rest of these bits of me. The whole is greater than the part" ("Agora eu nego em absoluto que eu sou uma alma, ou um corpo, ou uma mente, ou uma inteligência, ou um cérebro, ou um sistema nervoso, ou um monte de glândulas, ou qualquer dos restos desses pedaços de mim. O todo é maior do que a parte"). Hamsun e Lawrence ilustram em suas obras a impossibilidade de teorizar ou absolutizar uma visão diáfana do homem. O homem não pode ser veículo de idéias pré-concebidas. Hamsun e Lawrence confirmam que os progressos na consciência de si mesmo não implicam em processos de emancipação espiritual, mas sim perdas, desperdício da vitaldiade, do tônus vital. Em seus romances, são as figuras firmes (isto é, as que estão enraizadas na terra) as que logram se manter, as que triunfam mais além dos golpes da sorte ou das circunstâncias desgraçadas.

Não se trata, em absoluto, de vidas bucólicas ou idílicas. Os protagonistas das novelas de Hamsun e Lawrence são penetrados ou atraídos pela modernidade, os quais, pese a sua irredutível complexidade, podem sucumbir, sofrem, padecem de um processo de alienação, porém também podem triunfar. E é precisamente aqui onde intervem a ironia de Hamsun ou a idéia da "Fênix" de Lawrence. A ironia de Hamsun perfura os ideais abstratos das ideologias modernas. Em Lawrence, a recorrente idéia da "Fênix" supõe uma certa dose de esperança: haverá ressurreição. É a idéia da Ave Fênix, que renasce de suas próprias cinzas.

O paganismo de Hamsun e Lawrence

Sua dita vontade de retorno a uma ontologia natural é fruto de um rechaço do intelectualismo racionalista, isso implica ao mesmo tempo uma contestação silenciosa à mensagem cristã.

Em Hamsun, vê-se com clareza o rechaço do puritanismo familiar (concretizado na figura de seu tio Han Olsen) e o rechaço ao culto protestante pelos livros sagrados; isto é, o rechaço explícito de um sistema de pensamento religioso que prima pelo saber livresco frente à experiência existencial (particularmente a do camponês autosuficiente, o Odalsbond dos campos noruegueses). O anticristianismo de Hamsun é, fundamentalmente, um a-cristianismo: não se propõe dúvidas religiosas ao estilo de Kierkegaard. Para Hamsun, o moralismo do protestantismo da era vitoriana (da era oscariana, diríamos para a Escandinávia) é simples e completa perda de vitalidade. Hamsun não aposta em experiência mística alguma.

Lawrence, por sua parte, percebe a ruptura de toda relação com os mistérios cósmicos. O cristianismo viria a reforçar dita ruptura, impediria sua cura, impossibilitaria sua cicatrização. Nesse sentido, a religiosidade européia ainda conservaria um poço de dito culto ao mistério cósmico: o ano litúrgico, o ciclo litúrgico (Páscoa, Pentecostes, Fogueira de São João, Todos os Santos, Natal, Festa dos Reis Magos). Porém inclusive isto foi agrilhoado como consequência de um processo de desencantamento e dessacralização, cujo começo arranca no momento mesm oda chegada da Igreja cristã primitiva e que se reforçará com os puritanismos e os jansenismos segregados pela Reforma. Os primeiros cristãos se apresentaram com o objetivo de separar o homem de seus ciclos cósmicos. A Igreja medieval, ao contrário, quis adequar-se, porém as Igrejas protestantes e conciliares posteriores expressaram com clareza sua vontade de regressar ao anti-cosmicismo do cristianismo primitivo. Nesse sentido, Lawrence escreve: "But now, after almost three thousand years, now that we are almost abstracted entirely from the rhythmic life of the seasons, birth and death and fruition, now we realize that such abstraction is neither bliss nor liberation, but nullity. It brings null inertia" ("Porém hoje, depois de três mil anos, depois de estarmos quase completamente abstraídos da vida rítmica das estações, do nascimento, da morte e da fecundidade, compreendemos ao fim que tal abstração não é nem uma benção nem uma liberação, mas sim puro nada. Não nos aporta outra coisa além de inércia"). Essa ruptura é consubstancial ao cristianismo das civilizações urbanas, onde não há abertura alguma para o cosmos. Cristo não é um Cristo cósmico, mas sim um Cristo reduzido ao papel de assistente social. Mircea Eliade, por sua parte, referiu-se a um "homem cósmico" aberto à imensidão do cosmos, pilar de todas as grandes religiões. Na perspectiva de Eliade, o sagrado é o real, o poder, a fonte de vida e da fertilidade. Eliade nos deixou escrito: "O desejo do homem religioso de viver uma vida no âmbito do sagrado é o desejo de viver na realidade objetiva".

A lição ideológica e política de Hamsun e Lawrence

No plano ideológico e político, no plano da Weltanschauung, as obras de Hamsun e de Lawrence tiveram um impacto bastante considerável. Hamsun foi lido por todos, mais além da polaridade comunismo/fascismo. Lawrence foi etiquetado como "fascista" a título póstumo, entre outros por Bertrand Russel que chegou inclusive a referir-se a sua "madness": "Lawrence was a suitable exponent of the Nazi cult of insanity" ("Lawrence foi um expoente típico do culto nazista à loucura"). Frase tão lapidária como simplista. As obras de Hamsun e de Lawrence, segundo Akos Doma, se inscrevem em um contexto quádruplo: o da filosofia da vida, o dos avatares do individualismo, o da tradição filosófica vitalista, e o do anti-utopismo e do irracionalismo.

1º. A Filosofia da Vida (Lebensphilosophie) é um conceito de luta, que opõe a "vivacidade da vida real" à rigidez dos convencionalismos, aos fogos de artifício inventados pela civilização urbana para tratar de orientar a vida para um mundo desencantado. A filosofia da vida se manifesta sob múltiplas faces no contexto do pensamento europeu e toma realmente corpo a partir das reflexões de Nietzsche sobre a Leiblichkeit (corporeidade).

2 º O Individualismo. A antropologia hamsuniana postula a absoluta unidade de cada indivíduo, de cada pessoa, porém rechaça o isolamento desse indivíduo ou pessoa de todo contexto comunitário, familiar ou carnal: situa à pessoa de uma maneira interativa, em um lugar preciso. A ausência de introspecção especulativa, de consciência e de intelectualismo abstrato tornam incompatível o individualismo hamsuniano com a antropologia segregada pelo Iluminismo. Para Hamsun, sem embargo, não se combate o individualismo iluminista sermoneando sobre um coletivismo de contornos ideológicos. O renascimento do homem autêntico passa por uma reativação dos recursos mais profundos de sua alma e de seu corpo. A soma quantitativa e mecânica é uma insuficiência calamitosa. Em consequência, a acusação de "fascismo" em relação a Lawrence e Hamsun não se sustenta.

3º O Vitalismo tem em conta todos os acontecimentos da vida e exclui qualquer hierarquização de base racial, social, etc. As oposições próprias do vitalismo são: afirmação da vida/negação da vida; sadio/enfermo; orgânico/mecânico. Daí, que não possam ser reconduzidas a categorias sociais, a categorias políticas convencionais, etc. A vida é uma categoria fundamental apolítica, pois todos os homens sem distinção estão submetidos a ela.

4º O "irracionalismo" lançado sobre Hamsun e Lawrence, assim como seu anti-utopismo, tem sua base em uma revolta contra a "viabilidade" (feasibility; Machbarkeit), contra a idéia de perfectibilidade infinita (que encontramos também sob uma forma "orgânica" nos românticos ingleses da primeira geração). A idéia de viabilidade choca diretamente com a essência biológica da natureza. De fato, a idéia de viabilidade é a essência do niilismo, como apontou o filósofo italiano Emanuele Severino. Para Severino, a viabilidade deriva de uma vontade de completar o mundo apreendendo-o como um devir (porém não como um devir orgânico incontrolável). Uma vez o processo de "acabamento" tendo concluído, o devir detem bruscamente seu curso. Uma estabilidade geral se impõe na Terra e esta estabilidade forçada é descrita como um "bem absoluto". Desde a literatura, Hamsun e Lawrence, precederam assim a filósofos contemporâneos como o citado Emanuele Severino, Robert Spaemann (com sua crítica do funcionalismo), Ernst Behler (com sua crítica da "perfectibilidade infinita") ou Peter Koslowski. Estes filósofos, fora da Alemanha ou Itália, são muito pouco conhecidos pelo grande público. Sua crítica profunda dos fundamentos das ideologias dominantes, provoca inevitavelmente o rechaço da solapada inquisição que exerce seu domínio em Paris.

Nietzche, Hamsun, e Lawrence, os filósofos vitalistas ou, se preferível, "antiviabilistas", ao insistir sobre o caráter ontológico da biologia humana, se opuseram à idéia ocidental e niilista da viabilidade absoluta de qualquer coisa; isto é, da inexistência ontológica de todas as coisas, de qualquer realidade. Bom número deles - Hamsun e Lawrence incluídos - nos chamam a atenção sobre o presente eterno de nossos corpos, sobre nossa própria corporeidade (Leiblichkeit), pois nós não podemos conformar nossos corpos, em contraposição a essas vozes que nos querem convencer das bondades da ciência-ficção.

A viabilidade é, pois, o "hybris" que chegou a seu ápice e que conduz à febre, à vacuidade, à pressa, ao solipsismo, e ao isolamento. De Heidegger a Severino, a filosofia européia se ocupou sobre a catástrofe causada pela dessacralização do Ser e pelo desencantamento do mundo. Se os recursos profundos e misteriosos da Terra ou do homem são considerados como imperfeições indignas do interesse do teólogo ou do filósofo, se tudo aquilo que foi pensado de maneira abstrata ou fabricado mais além dos recursos (ontológicos) se encontra sobrevalorizado, então, efetivamente, não pode nos estranhar que o mundo perca toda sacralidade, todo valor. Hamsun e Lawrence foram os escritores que nos fizeram viver com intensidade essa constante, acima até mesmo de alguns filósofos que também deploraram a falsa rota empreendida pelo pensamento ocidental há séculos. Heidegger e Severiano no marco da filosofia, Hamsun e Lawrence no da criação literária, trataram de restituir a sacralidade no mundo e revalorizar as forças que se esconem no interior do homem: desde esse ponto de vista, estamos diante de pensadores ecológicos na mais profunda acepção do termo. O oikos nos abre as portas do sagrado, das forças misteriosas e incontroláveis, sem fatalismos e sem falsa humildade. Hamsun e Lawrence, em definitivo, anunciaram a dimensão geofilosófica do pensamento que nos ocupou durante toda essa universidade de verão. Uma aproximação sucinta a suas obras se fazia absolutamente necessária no temário de 1996.


Tradução por Raphael Machado