07/12/2017

Esteban Montenegro - Superar o Populismo

por Esteban Montenegro



Considerações críticas a partir da visita de Alain de Benoist

Na Argentina há visitas intelectuais que, como a de Ortega y Gasset em 1916, despertam não só um grande interesse mas também uma participação ativa na marcha do pensamento. É necessário dizer em primeiro lugar que aos argentinos nos invade um especial entusiasmo quando aterrisa em nossa terra o intelectual estrangeiro ou quando fazemos nós a viagem que nos permitirá conhecê-lo. E isso vai mais além da importância e estatura do personagem em questão, pois temos em realidade a sensação de que a duras penas nos tornamos pensadores sem a aprovação do estrangeiro. Por exemplo, segundo esta perspectiva a filosofia de Carlos Astrada ostenta um plus de valor por sua relação discipular com Martin Heidegger e Max Scheler. Nenhum mérito do próprio Astrada poderia, segundo esta visão, suprir o que lhe foi dado pelo contato pessoal com os mestres alemães. Esta visão fetichista que em boa medida atravessa quase todos os argentinos é um efeito de nossa situação periférica, para superar a qual não basta cantar loas à liberação dos oprimidos. Como diria Nietzsche, ser livre não é um valor em si mesmo. O importante é para quê se quer liberdade e se temos realmente a força para fazê-lo.


Por essa razão, a crítica da colonização do saber europeu não é senão a última moda europeia, que em nossa América se adota acriticamente. Separar-se dessa moralização da história é de suma importância. Seu veneno é duplo: moral do ressentimento para uns, moral da penitência para outros. Sobre isso se sustenta o mesmo sistema que nos mantém subordinados a uns e a outros. A crítica se tornou permanente porque a ordem liberal mundial não pode senão estar em crise e fazer dessa crise sua autoprodução permanente, sua própria mobilização total. Este estado de tensão resolve suas contradições neutralizando potenciais tendências revolucionárias em uma frente comum "civilizada" e "moralmente boa" frente à presença do mal. Para tal fim precisa de um inimigo a sua medida, moralmente reprovável: o fantasma do populismo. Nele projeta o establishment a reminiscência dos velhos totalitarismos, inimigos da sociedade aberta: comunismo e, especialmente, nazifascismo. Seu fundamento dogmático é portanto que, fora da democracia liberal, só habita Auschwitz, o mal absoluto. Mas este é tão absoluto que não é estranho a nós, sempre espreita no interior de cada indivíduo como uma tensão que deve ser observada, vigiada de perto, censurada e reeducada pelas instituições públicas. Como o Deus de Schelling, o sistema se erige sobre um fundamento de existência que é o que, sendo parte dele, não é ele mesmo. O fantasma do populismo ("a extrema direita") é o que, no interior do sistema, o próprio sistema projeta como seu anverso. Esta falsa dialética permite que tudo siga funcionando em crise permanente mediante sempre novas comoções que reavivem o perigo. Este modus operandi do totalitarismo "democrático" é tão impermeável à razão como a existência do mal na teologia cristã. Se sustenta sobre a imposição da fé e seus mandamentos proibitivos. Quem questiona a história oficial e a legitimidade da ordem mundial que inauguraram "os bons" com Hiroshima e Nagasaki comete um latrocínio contra as esperanças da humanidade e merece não só sanção moral como uma efetiva pena de prisão.

Diante disso há que destacar sem nenhuma dúvida o esforço dos europeus verdadeiramente dissidentes em relação à cultura hegemônica. Tal é o caso de Alain de Benoist, que recentemente visitou nossa pátria para fazer uma apropriação conceitual do termo "populismo". O uso fantasmático antes comentado não representa, como se terá notado, senão um sinônimo de demagogia e violência. Se subentende neste uso que por meio de apelações retóricas sensacionalistas se usa e se manipula o povo e se usa ele como força de choque contra os que pensam diferente. Nessa visão, o povo não sabe o que quer e é enganado por outros. Mas Benoist considera que existe por trás desse fantasma um fenômeno populista que é verdadeiramente outro em relação ao sistema e não a outra face de sua moeda, fundamento de sua existência. O populismo como fenômeno ostenta um valor de sintoma - na medida em que ressalta um mal-estar popular real - e, ademais, pressupõe a possibilidade de configurar eventualmente um sistema de ideias coerente. Esta constitui a aposta do autor, que tomando distância dos ídolos do Estado e do Mercado propõe fazer descansar um autêntico populismo sobre as comunidades locais, entendendo que as decisões que elas mesmas possam tomar de forma direta não devem ser delegadas. Defende, assim, a liberdade e a igualdade das distintas comunidades, dos de baixo frente às elites supostamente capacitadas para tomar decisões no lugar delas. Disso se seguem as duas características principais de sua proposta. Por um lado é fundamentalmente anticapitalista, pois o império das mercadorias liquida todas as formas de vida comum. Pelo outro, é profundamente anti-elitista, pois prioriza a participação direta do povo na tomada de decisões, abalando a razão de ser das instituições representativas que traindo a vontade popular deixam o poder decisório nas mãos das burocracias do empresariado, das finanças e da política partidocrática.

O verdadeiro populismo que promove Benoist é, pois, algo completamente distinto do fantasma do mal absoluto. Mas como o sistema não pode permitir a emergência de uma diferença autêntica em relação a sua trama ideológica constitutiva, o próprio Benoist não pode ser compreendido pela cultura hegemônica - supostamente crítica - senão cmo um epígono daquele fantasma. Tal é assim que foi batizado desde os anos 70 como fundador da assim chamada "nova direita", como um ideólogo dos movimentos populistas de "extrema direita". O fato de que o establishment globalista dá as costas ao pensador genuinamente nacional, torna impossível situá-lo ao lado dos intelectuais oficiais. Ninguém duvidaria em afirmar que o valor da obra de Borges não precisa de referências especiais ao povo e à nação que o viu nascer. Mas seria difícil dizer o mesmo de Carlos Astrada, ainda que tenha gozado de todas as credenciais acadêmicas de nível internacional. Do mesmo modo, nunca Benoist poderá ser tão abstratamente universal quanto Deleuze pode sê-lo para os afrancesados da Universidade de Buenos Aires. Seu descomunal trabalho intelectual não cai nos radares das revistas culturais dos grandes diários. Assim vemos que as relações de reconhecimento entre distintos espaços organizados em relação a umsó pólo dominante e hegemônico são claramente assimétricas. E, de volta, que a contradição periferia-centro não é tão linear quanto parece. Mas ademais sublinhar aqui que, se existe um espaço cultural dominante no qual só se consagram aqueles pensadores que renegam seu pertencimento a um povo, uma tradição ou uma nação, também existe um espaço de resistência no qual se entrecruzam os pensadores enraizados de todas as latitudes. Este espaço ecumênico é a hermenêutica com a qual o Espírito trama as distintas culturas em si e para si. A universalidade não é um lugar abstrato que ocupam só uns grandes pensadores que não contradizem os valores da modernidade ocidental e que valem como mera literatura para recreação de uma burguesia entediada. Para os que lutamos pelo mundo multipolar a universalidade é sempre uma universalidade concreta. Isso significa que existem valores universais, mas que estes não são distintos de sua encarnação singular em uma cultura. Quer dizer que não existe ideia alguma fora de sua encarnação e que o encarnado não são meras ideias, mas figuras, ideias-força que coincidem com um princípio, com uma vontade que lhes dá vida.

"O que fazemos?", "para onde vamos?" são as perguntas que relevam e espraiam a pergunta primeira: "quem somos?". O populismo como ideia-força, tal como Benoist propõe, não será julgado por nós no terreno abstrato da mera adequação conceitual, tampouco no moral, que ajuiza a bondade ou maldade das intenções em referência a uma lei universal; o faremos a partir da carne e do sangue que demanda a vontade da própria história. Entendemos neste sentido que Benoist interpela os movimentos que pela esquerda ou pela direita surgem na Europa como resposta ao descrédito dos partidos tradicionais. Não obstante, em essência, os assim chamados populismos europeus que supostamente enfraquecem as instituições da democracia liberal representativa não encarnam nenhum movimento revolucionário, são partidos eleitorais; seus chefes não são caudilhos preparados para o combate, mas gente de bem que usa paletó e gravata; não querem reduzir o inimigo a sua mínima expressão, mas unicamente se sobrepôr a seu adversário político. Acreditaram no fantasma do populismo que o sistema pôs sobre eles e tratam por todos os meios de se livrar dele porque não lutam por uma ideia ou pela honra, mas pelo êxito. Por isso, a disputa dos populismos europeus realmente existentes é por se situarem no centro, por se tornarem uma expressão mais acabada do sistema democrático-liberal e se legitimarem finalmente perante ele. Não tratam em nenhum caso de substituí-lo, nem de empurrar e desfazer-se dos limites traçados pelo politicamente correto. Não tentam mostrar que a verdade do "fantasma" é a realidade mesma da ordem liberal. Em certa medida, Benoist tenta avançar por este lado, mostrando que o sistema não respeita a vontade popular e, portanto, não pode ser considerado democrático. Não obstante, acreditamos que não põe neste ponto ênfase suficiente para poder reverter em algum ponto o rumo atual dos movimentos populistas em uma boa direção. Esta falta de ênfase provém de uma falta de corpo de sua proposta que peca por abstrata e geral. Se um povo vale algo, então esse algo e expressará em uma vanguarda e em um comandante que logre conduzir este povo rumo a sua vitória política. De nada serve articular e responder a demandas insatisfeitas pelo sistema se o povo do caso não tem outro valor que o do consumo. Em tal caso, satisfazer as necessidades artificiais de um povo de consumidores hedonistas não produzirá saldo, só reforçará o sistema. O cliente nem sempre tem razão. Em nossa América um ciclo populista acaba de ser desfeito por essa razão. No resto do mundo começa a mostrar seu fedor com as tímidas traições de Tsipras por aqui e de Trump por lá. O populismo resultou tíbio até para a traição, neutralizando o fervor patriótico e a energia socialista no fogo lento do possibilismo eleitoral. Mas ainda quando a fórmula de Benoist encontrara ouvidos, ela não parece tampouco conceber suficientemente o trânsito pelo negativo, a vontade de se sobrepor ao dado, de fazer uma revolução. É preciso, para isso, muito mais que reivindicar o povo e aumentar sua participação em uma agenda que ainda é digitada pelas elites globalistas. Não se trata, como dissemos, de avaliar as ideias por elas mesmas, mas de atender a sua força pelo simples fato de que nenhum poder se suicida. É, por acaso, uma assembleia popular, um mero referendo, a ideia-força mais potente da nova vontade europeia? Se for assim, a Europa está morta e logo cairá sob a espada do Califado ou do Czar; potências que encarnam um mito e, por isso, disputam com seu poder continentes inteiros, o porvir do próximo século e não as próximas eleições. São potências desse tipo, povos viventes, os que estão à altura de responder a pergunta guia da filosofia política nietzscheana: "quem será o dominador do mundo?". Se a Europa renuncia a um destino próprio por falta de ímpeto, a bravura do pampa e da estepe será chamada a estender seus jinetes por toda a amplitude das grandes massas terrestres para encarnar o legado vivo da cultura europeia. O renascimento do mito virá então de duas latitudes distintas, com o mesmo ímpeto que cantara o filósofo argentino ao saudar a revolução russa, revolução que tendo transbordado o leito soviético sai de novo a partir do oriente, iluminando com a luz da Hagia Sophia de Vladivostok até Lisboa; cruza assim seu caminho com a Cruz do Sul, que desde o fim do mundo se crava qual flecha mortífera no coração do capitalismo, consagrando a América toda ao império da Raça Cósmica. Quando aquilo aconteça o Ocidente não será mais que uma memória sepultada no Oceano Atlântico e o homem novo fenderá a terra com seu passo marcado.