11/10/2017

Alessio Mulas - Política, Liberalismo e Violência: Walter Benjamin e Carl Schmitt

por Alessio Mulas



Tornou-se célebre a carta que, em 1930, Walter Benjamin escreveu a Carl Schmitt. Omitida por Adorno na primeira edição dos Gesammelte Schriften, mas publicada mais tarde por Jacob Taubes, a carta tinha como objetivo informar ao advogado de que seus estudos, em particular Die Diktatur, lhe haviam sido de grande ajuda. [1] Mais além das relações pessoais, é interessante ver como dois pensadores nas antípodas haviam encontrado involuntariamente pontos de convergência de valor notável, e sobre estes pontos se centrará nossa breve análise. Ainda que a teoria política que se conhece com o nome de comunitarismo seja uma via pouco comentada, o certo é que as diversas formas que ela encarna tem como alvo polêmico comum o liberalismo. Para formular uma crítica comunitária é necessário, portanto, examinar a relação do direito e da política com a violência, tema dissimulado pelo liberalismo, mas que afeta à política em sua essência. É o terreno sobre o qual les extrême se touchent.


A Crítica da Violência

Entre os escritos filosóficos de Walter Benjamin, destaca-se por sua lucidez o ensaio Para uma Crítica da Violência. Gewalt, violência, em alemão também significa força, poder, autoridade; a palavra, como em seguida deixa claro o autor, indica uma causa agente moralmente conotável. Entrelaça-se com o direito e a justiça no ciclo dos fins e dos meios. Para o direito natural não se propõe o problema da utilização de meios violentos para fins justos; a delegação de direitos feia pelos indivíduos para o Estado pressupõe "que o indivíduo enquanto tal, e antes da conclusão desse contrato racional, exerce também de jure todos os poderes que tem de facto", [2] já que spinozianamente "o direito de cada um se estende até onde se estende seu determinado poder" [3]. Em contraste com a teoria jusnaturalista da violência como "fisiológica", natural, o direito positivo considera o poder historicamente dado, julgando somente o uso de seus meios. O direito natural e o direito positivo se distinguem respectivamente como critério dos fins e critérios dos meios, na medida em que se baseiam, um sobre o princípio da justiça e o outro sobre o princípio da legalidade. O único ponto de união das duas escolas é, em palavras de Benjamin, o "dogma fundamental comum: os fins justos podem ser alcançados com meios legítimos, os meios legítimos podem ser empregados para fins justos". [4] Em outras palavras, o jusnaturalismo adapta os meios aos fins justos, enquanto que a teoria positiva do direito garante o bom fim com a legitimidade dos meios, razão pela qual "se o direito positivo é cego para a incondicionalidade dos fins, o direito natural é cego para os condicionamentos dos meios" [5]; as duas perspectivas revelam uma insuficiência crítica.

No caso da violência, a distinção entre legitimidade e ilegitimidade não é evidente por si mesma. O direito natural dissolve o problema da legitimidade dos meios (portanto, também o da violência) em uma casuística infinita, fazendo com que ele dependa da justiça-injustiça dos objetivos, para os quais legítimo é o meio utilizado para fins justos. Ao contrário, o direito positivo estabelece em primeiro lugar uma distinção de princípio inerente à violência reconhecida, sancionada como poder, prescindindo dos casos individuais nos quais ela se aplica:

"Estas relações jurídicas se caracterizam - no que concerne à pessoa singular como sujeito jurídico - pela tendência a não admitir fins naturais das pessoas singulares em todos os casos nos quais estes fins poderiam ser, em ocasiões, coerentemente perseguidos com a violência. Vale dizer que este ordenamento jurídico tende, em todos os campos nos quais os fins das pessoas singulares poderiam ser coerentemente perseguidos com a violência, a estabelecer fins jurídicos que podem ser realizados dessa maneira somente a partir do poder jurídico" [6]

Daqui derivam alguns problemas do direito positivo, que esmaga a perseguição de fins naturais (onde por naturais entendemos fins que carecem de um "reconhecimento histórico universal") a favor dos fins jurídicos (que, por sua vez, possuem tal reconhecimento por parte do Estado). O exemplo proposto por Benjamin se refere às leis que limitam o castigo educativo: o ordenamento limita um bom fim, a educação rigorosa e severa dos jovens, tem-se como meio castigos e penitências considerados como mais ou menos violentos. A discrepância entre os fins naturais e os fins jurídicos se resolve a favor destes últimos.

A tese de Benjamin é que o direito positivo limita a violência de que a pessoa pode fazer uso não porque o ordenamento tenha a intenção de garantir a proteção dos fins jurídicos, mas sim para salvaguardar o próprio direito. De fato, o direito monopoliza a violência, a retira das possibilidades dos indivíduos, enquanto teme que ela "quando não está em posse do direito em seu momento existente, representa por isso uma ameaça, não por causa dos fins que persegue, mas por sua mera existência fora da lei". [7] Recht (direito) é Vorrecht (privilégio). Para o direito positivo interessa que a violência seja exercida na legalidade, que nã ose situe fora dos canais do direito, e isso também alberga a contradição exemplificada por Schmitt através de duas respostas de Hans Kelsen, o pai do juspositivismo novecentista:

"Àqueles que lhe perguntaram: 'Quando a democracia é ameaçada pelos mesmos meios da democracia, não se deve defendê-la com a violência?' Kelsen respondeu: 'O problema é vosso. Não se trata de uma questão jurídica, quer dizer, de uma questão que um jurista possa resolver'. Em uma discussão que teve lugar em 1926, o professor vienense Hold von Ferneck apresentou essa pergunta a seu colega: 'Caso a um legislador enlouquecido venha à mente dar a ordem de que a cada domingo sejam fuzilados dez homens por um motivo qualquer, por exemplo porque tem cabelo ruivo, também isso deveria ser considerado direito e lei?'. E Kelsen respondeu com calma: 'Sou um jurista, não um moralista'." [8]

Diálogo contra a Violência: Uma Zona Franca?

A análise de Benjamin não tem o objetivo moralista da crítica das realidades coercitivas, como a polícia, mas aponta para a afirmação, em absoluto banal, de que a violência enquanto meio é poder que põe ou conserva o direito, e renuncia a qualquer validade se rechaça uma dessas duas funções. A questão é, então, se são dadas regulações não violentas aos conflitos. A resposta de Benjamin é afirmativa, e exemplo disso são as relações entre particulares, através dos meios segundo a "cultura do sentimento" (Die Kultur des Herzens). Mas aqui está a anomalia: por puras que possam ser tais relações, elas originam a violência da política. Não pertencem, de fato, às soluções imediatas, mas sempre a soluções mediadas. "Eles [os meios de solução] não se referem nunca, portanto, diretamente à resolução de conflitos entre homem e homem, mas somente através do intermediário das coisas" [9] A conversa (Unterredung), o melhor exemplo civil de acordo, e a linguagem, zona estranha aos espaços do conflito, são em origem exemplos de soluções não violências: não obstante, declarando o engano e a mentira objeto de castigo (quer dizer, vetando-os), o direito "limita o uso de meios inteiramente não violentos, já que, como reação, poderiam engendrar violência" [10]. Como assinalou Emanuele Castrucci, Benjamin partilha com Schmitt a consciência crítica da deformação liberal da linguagem, perspectiva segundo a qual se pode mediar tudo na mesma medida em que se pode falar de tudo.

"A linguagem neutralizaria todo o espaço da violência, da transgressão, das possibilidades do absolutamente outro/absolutamente hostil, usando funcionalmente as próprias categorias práticas: o intercâmbio, a conversação informativa, a discussão não violenta [...] A descritibilidade da essência do totalmente outro reduziria - através da linguagem - a natureza catastrófica da violência ao jogo-conversa, fair play ilimitado e onipotente". [11]

Na realidade, escreve Benjamin, cada contrato e cada compromisso, mesmo quando pacificamente acordados, possuem caráter coercitivo, porque está implícita uma violência manifestável somente em última instância.

A Deformação Liberal da Linguagem

Sobre esta última instância Carl Schmitt, o "zelote da decisão" (segundo a definição de Taubes), fundou o "político". Este, assinala Schmitt, tem "critérios próprios que atuam [...] em relação com os diversos âmbitos concretos, relativamente independentes, dop ensamento e da ação humana"; estes âmbitos se baseiam em uma distinção de fundo - bem e mal (Gut und Böse) para o plano moral, belo e feio (Schön und Hässlich) para o estético, útil e danoso (Nützlich und Schädlich) para a economia. Por analogia, também o político se rege sobre uma distinção específica, à qual seja possível referir "o atuar político", ou melhor "as ações e os movimentos políticos". [12] Como se sabe, Schmitt propõe como definição conceitual (não exaustiva) e como critério (não com valor conteudístico) o par amigo-inimigo (Freund-Feind). Entre as diversas antíteses não existe uma relação de fundação, nem de identidade. A especificidade da antítese amigo-inimigo é a indicação "do grau extremo de intensidade de uma união ou de uma separação, de uma associação ou de uma dissociação" [13], que subsiste independentemente das distinções morais, estéticas e econômicas. O inimigo não é necessariamente mau, feio ou prejudicial, e nada exclui que com ele se possa fazer bons negócios; mas é seu ser "existencialmente, de forma particularmente intensa, algo outro e estrangeiro", sua alteridade (Anderssein) o que torna real a possibilidade de um conflito no caso extremo (Ernstfall). Tal autonomia do político não significa tanto que a política constitua uma área delimitada, distinta, já que o político indica a intensidade de uma contraposição dada por existente, como sua originalidade, que para Schmitt é acima de tudo "inderivabilidade", presença primigênia e originária; o conceito de "política", de fato, "implica o fim da política 'bem fundada'." [14]

Só na política se pode decidir se tal Anderssein, a alteridade existencial, é a negação do próprio modo de existir, e eventualmente combater o estrangeiro (der Fremde). Na primeira versão do Begriff fala-se da afirmação e negação "ontológica da própria forma de existência". [15] É patente, assinala Schmitt, que "na realidade psicológica" se tende a ver o inimigo como economicamente prejudicial, esteticamente feio e moralmente mau, mas isso não afeta a autonomia do amigo-inimigo em relação às outras contraposições. Ao contrário, para compreender os conceitos de amigo e inimigo não precisamos considerá-los ideais típicos, metáforas, símbolos, nem comprometê-los com conceitos econômicos, morais e estéticos.

Aqui chegamos àquilo que, seguindo Castrucci, chamamos consciência crítica (benjaminiana-schmittiana) da deformação liberal da linguagem. O risco evidenciado por Schmitt é o de cair na armadilha do liberalismo, o qual reduz o inimigo a competir no plano econômico e a adversário de discussões sobre temas espirituais. Está clara a referência ao reacionário Juan Donoso Cortés, que definia à burguesia liberal como uma classe que se subtrai à decisão, uma classe discutidora que "transfere todas as atividades políticas ao discurso, à imprensa e ao Parlamento". [16] O liberalismo se subtrai ao "político", confiando em reconduzir a uma solução privada (através da conversação) o que nos afeta publicamente - à pergunta de se ele era um liberal, Schmitt respondeu, "perguntem a minha esposa", o que indica que liberal é um termo que identifica, precisamente, virtudes privadas. Como bem resume Jean-François Kervégan, "O liberalismo é acima de tudo, segundo as categorias schmittianas, um empreendimento intelectual de crítica e até mesmo negação da política". [17] Não é o diálogo eterno, mas a decisão que importa. À pergunta "Cristo ou Barrabás?" o liberalismo responderia, como ironizava Donoso Cortés, "com o estabelecimento de uma comissão de investigação" [18]. Mas o inimigo não é o competidor vago ou o adversário genérico. A dificuldade que Schmitt encontra na explicação do conceito é dada pela falta, no léxico, de uma distinção clara entre inimigo público e privado, que empurra o jurista a fazer uso dos termos inimicus e ἐχϑρός para inimigo privado, e hostis e πολέμιος para inimigo público, quer dizer de "um conjunto de homens que combatem pelo menos virtualmente, quer dizer, com base em uma possibilidade real". [19]

A Possibilidade Real da Morte Física

Em qualquer caso, os conceitos de amigo e inimigo adquire significado quando se referem à guerra, a realização extrema da hostilidade; não a guerra genérica, nem a luta simbólica (como é a vida humana, diz Schmitt), mas a "possibilidade real da morte física" (die reale Möglichkeit der physischen Tötung). A essência do político - dê-se atenção - não é a guerra em si, nem toda negociação política se resolve em um confronto militar. O que o pensador alemão quer evidenciar é que o "político" não existe sem a já mencionada possibilidade da morte. Se a violent death, primum malum, em Hobbes caracteriza o estado de natureza (em fugir da morte violenta se chega à cessão de direitos ao soberano), em Schmitt a verdadeira Möglichkeit der physischen Tötung é a condição necessária para que o conceito de inimigo se mantenha em seu sentido primeiro: a possibilidade da guerra é o pressuposto da política. Recuperando a máxima clausewitziana, usualmente mal interpretada, que pensava a guerra como continuação da política por outros meios, ele especifica que o teórico militar prussiano entendia mais precisamente a guerra como um dos muitos instrumentos da política: em termos schmittianos, ela é a ultima ratio do amigo-inimigo, a antítese sobre cuja base os povos se reagrupam desde sempre. Não é, portanto, a guerra derivada da política, mas a política que expõe a natureza "polemológica" do homem.

Reconstruindo a lógica de Schmitt, temos:

* A possibilidade real da guerra constitui o pressuposto do político;
* A presença do inimigo (hostis/πολέμιος) precede logicamente a possibilidade real da guerra;
* O primeiro requisito do político, portanto, é o inimigo público.

Digam o que quiserem os críticos católicos, segundo os quais o Sermão da Montanha contraria qualquer gênero de realismo político, o paradoxo do convite a ser τέλειος (completo, perfeito, maduro), do próprio mandamento de amar aos seus próprios inimigos ("amai a vossos inimigos e orai por vossos perseguidores", Mt. 5:48), está justo ao pressupor a existência do inimigo, mais além do privado e do público. Para repetir com Cacciari, "o simples fato - de que se tem inimigos - é pré-potente em relação ao amor". [20] O amor é solicitado para o inimigo enquanto tal, mas não suprime a existência do inimigo - ele, que nos persegue, que nega nossa forma de existência, é necessário. Sempre há um inimigo ao qual dar a outra face, para o qual deixar o manto se lhe subtraírem a túnica, ou ao qual dirigir o perdão. 

______________________________________

1 - W. Benjamin, Gesammelte Schriften, B. I/3, Suhrkamp, Frankfurt a.M. 1974, p. 887. 
2 - W. Benjamin, Per la critica della violenza, in Angelus Novus. Saggi e frammenti, Einaudi, Turín, 1962, p. 6.
3 - B. Spinoza, Trattato teologico-politico, XVI, a cargo de A. Dini, p. 517. Sobre a relação entre poder e direito em Spinoza, cfr. W. Bartuschat, «Spinozas über Macht und Recht in der Politik», en Teoria 2012/2, pp. 153-166.
4 - W. Benjamin, Per la critica della violenza, cit., p. 6.
5 - Ibid, p. 7.
6 - Ibid, p. 8.
7 - Ibid, p. 9. 
8 - C. Schmitt, Colloquio con Dieter Groh e Klaus Figge, en Un giurista davanti a se stesso. Saggi e interviste, a cargo de G. Agamben, Neri Pozza, Vicenza 2012, pp. 60-61.
9 - W. Benjamin, Per la critica della violenza, cit., p. 18.
10 - Ibid, p. 19. 11 E. Castrucci, La forma e la decisione. Studi critici, Giuffrè, Milán, 1985, p. 68.
12 - C. Schmitt, Il concetto di ‘politico’, in Le categorie del ‘politico’, Il Mulino, Bolonia, 1972, p. 108. 
13 - Ibid, p. 109. 
14 - C. Galli, Genealogia della politica. Carl Schmitt e la crisi del pensiero politico moderno, Il Mulino, Bolonia 2010,  p. 742. 
15 - C. Schmitt, «Der Begriff des Politischen», in Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik, LXVIII, n. 1, settembre 1927, p. 17. 
16 - C. Schmitt, La filosofia dello Stato della controrivoluzione: De Maistre, Bonald, Donoso Cortès, en Donoso Cortès interpretato in una prospettiva paneuropea, Adelphi, Milán 1996, p. 33.
17 - J.-F- Kervégan, Hegel, Carl Schmitt. Le politique entre spéculation et positivité, Presses Universitaires de France, París, 1992, p. 111. 
18 - D. Cortés, Saggio sul cattolicesimo, il liberalismo e il socialismo, Rusconi, Milán, 1972, libro segundo, VIII, pp. 232-233.
19 - C. Schmitt, Il concetto di ‘politico’, cit., p. 111.
20 - M. Cacciari, Dell’Inizio, Adelphi, Milán, 1990, p. 584