18/11/2016

Eugene Montsalvat - Precursores Iranianos da Quarta Teoria Política

por Eugene Montsalvat



Os antepassados intelectuais da Revolução Iraniana, Ahmad Fardid, Jalal Al-e-Ahmad e Ali Shariati, partilham de muitos pontos em comum com a Quarta Teoria Política. Bebendo da herança intelectual comum de Martin Heidegger, eles desenvolveram uma crítica da hegemonia ocidental. Em muitos casos, as ideias expostas por estes pensadores iranianos prefiguram a Quarta Teoria Política, ainda que em uma aplicação especializada ao Irã. O Irã apresenta um exemplo de uma revolta política e intelectual contra a hegemonia liberal ocidental que está fora das categorias da segunda e terceira teorias políticas (comunismo e fascismo), mas ainda assim puxa influências importantes delas e as recontextualiza na estrutura singular da essência histórica iraniana.

Os antepassados intelectuais da Revolução Iraniana fundiriam com sucesso o pensamento mais radical do século XX com a tradição islâmica do Irã para desenvolver uma síntese autenticamente revolucionária. Como na Quarta Teoria Política, Heidegger desempenha um papel fundamental, como o filósofo de um novo começo, que anuncia o retorno a uma essência autêntico. A fundação do pensamento heideggeriano iraniano foi estabelecida por Ahmad Fardid, como Ali Mirsepassi nota em “Islã Político, Irã e o Iluminismo”:

“O pensador cujo trabalho mais contribuiu para estabelecer as bases para um discurso político heideggeriano no contexto iraniano foi Ahmad Fardid (1890=1994). Ele foi a principal autoridade em filosofia alemã e particularmente em Heidegger da década de 50 em diante. Finalmente, ele contribuiu bastante para a evolução dos discursos intelectuais que culminaram na Revolução Iraniana de 1979. Sua obra envolvia revestir o par Oriente-Ocidente em uma linguagem de concepções filosóficas emprestadas de Heidegger. Em uma veia historicista, ele defendia que a ‘verdade’ dominante da era havia sido, desde o século XVIII, a de uma civilização ocidental que roubou todos os ‘países islâmicos’ e ‘nações orientais’ de suas ‘memórias culturais’ e de sua própria ‘confiança histórica’. Essa posição é constituída primeiramente por uma afirmação anti-iluminista de que o crescimento da vazia e externalista civilização ocidental é uma ameaça direta à vitalidade de culturas locais não-ocidentais, e em segundo lugar a afirmação de que essa ameaça deve ser confrontada pela reivindicação do que é uma memória cultural apagado e pela tomada de um passado roubado” (pg. 30-31)

Como na Quarta Teoria Política, Fardid usa Heidegger para desafiar a dominação unipolar da ideologia ocidental clamando por um retorno a um modo “autêntico” de ser. Este grande retorno do Ser no momento em que a história é mais sombria, no momento em que passamos através da escuridão do “niilismo ocidental”, recebe uma interpretação iraniana particular de Fardid. Citando Mirsepassi novamente:

“Em um remodelamento do relato de Heidegger sobre o declínio ocidental e a necessidade de recuperar a experiência grega do ‘ser’, Fardid relocaliza a experiência espiritual original e autêntica da humanidade em um Islã/Oriente nebuloso. Em efeito, as modificações de Fardid transferem o papel da ‘nação espiritual no meio’ da Alemanha ao Irã, dentro da mesma problemática do cerco da Guerra Fria e da modernidade secular ‘universal’. Neste dilema é necessário abandonar Gharb (o Ocidente) tanto enquanto ontologia como enquanto modo de vida. Curiosamente, de modo a fazê-lo, é primeiro necessário descobrir a ‘essência do Ocidente’ como pré-requisito para uma vez mais resgatar a autêntica essência islâmica. Isso, naturalmente, não é diferente da ideia de Heidegger de uma ponte para de volta ao Ser através de uma desconstrução da tradição dominante. Os termos da necessidade de uma obediência espiritual socialmente embasada mudaram, mas a necessidade permanece a ideia determinante”. (pg. 119)

É precisamente este retorno do Ser, chamado Ereignis por Heidegger, que jaz no coração da Quarta Teoria Política, como Dugin afirma:

“Heidegger usou um termo especial Ereignis, o ‘evento’, para descrever este súbito retorno do Ser. Ele ocorre exatamente à meia-noite da noite do mundo, no momento mais sombrio na história. O próprio Heidegger vacilava constantemente sobre se este ponto já havia sido alcançado, ou ‘ainda não’. O eterno ‘ainda não’.

A filosofia de Heidegger pode se provar como o eixo central ligando tudo ao seu redor, indo da reconcepção da segunda e terceira teorias políticas ao retorno da teologia e da mitologia.

Assim, no coração da Quarta Teoria Política, em seu centro magnético, está a trajetória da aproximação do Ereignis (o ‘Evento’), que incorporará o retorno triunfante do Ser, no exato momento em que a humanidade esquecê-lo, de uma vez por todas, ao ponto em que os seus últimos traços desapareçam”. (“A Quarta Teoria Política”, pg. 29)

Para Fardid, o Ser iraniano, seu controle sobre sua própria narrativa histórica e destino, estava se perdendo sob as influências intelectuais perniciosas do Ocidente, que ele chamaria de “Ocidentoxicação”. Outro grande pensador iraniano, Jalal Al-e-Ahmad, definiria essa “Ocidentoxicação” assim: “o agregado de eventos na vida, cultura, civilização e modo de pensamento de um povo sem apoio em tradição, sem continuidade histórica, e sem gradiente de transformação”. O livro de Al-e-Ahmad “Ocidentoxicação”, se provaria um guia intelectual para a crescente resistência. Ele estava respondendo ao regime modernizante pró-ocidental do Xá, que viu uma cultura iraniana enraizada sendo destruída pelos valores do Ocidente, que se apresentavam como valores universais para toda a humanidade. A “ocidentoxicação” traria a obliteração do passado iraniano e do futuro se não fosse impedido. Como na Quarta Teoria Política, há uma crítica comum da pretensão ocidental a uma civilização global, que seria equivalente à morte do Ser, como Dugin aponta:

“Globalização é equivalente ao fim da história. Ambos caminham juntos. Os dois estão semanticamente ligados. Sociedades diferentes tem histórias diferentes. Isso significa diferentes futuros. Se nós vamos criar um ‘amanhã’ comum a todas as sociedades existentes no planeta, se vamos propor um futuro global, então primeiro precisamos destruir a história daquelas outras sociedades, destruir seus passados, aniquilar o momento contínuo do presente, virtualizando as realidades que são construídas pelo conteúdo do tempo histórico. Um ‘futuro comum’ significa deletar as histórias particulares. Mas isso significa que não haverá quaisquer histórias, nem seus futuros. O futuro comum é futuro nenhum. A globalização é a morte do tempo. A globalização cancela a subjetividade transcendental de Husserl ou o Dasein de Heidegger. Não haveria mais nem tempo, nem ser”. (Quarta Teoria Política, pg. 165)

De modo a desenvolver seu ataque contra a modernidade ocidental, Al-e-Ahmad puxou influências da Revolução Conservadora alemã, particularmente de Ernst Jünger, cuja obra ele traduziu ao persa e de quem ele diria, “Jünger e eu estávamos ambos explorando mais ou menos o mesmo tema, mas de duas perspectivas diferentes. Estávamos abordando a mesma questão, mas em dois idiomas”. Al-e-Ahmad buscou transfigurar a modernidade, reconhecendo a presença inevitável da tecnologia, mesmo que destrutiva, mas utilizando-a a serviço de um Estado xiita revitalizado. Como os conservadores revolucionários alemães, Al-e-Ahmad não recuou à mera reação, ele percebeu que era impossível fugir para um passado pré-tecnológico, ao contrário ele apontou a uma terceira posição entre subjugação pelo poderio técnico do Ocidente e um recuo ao primitivismo, questionando “Devemos permanecer os meros consumidores que somos hoje ou fecharemos nossas portas à máquina e à tecnologia e recuaremos às profundezas de nossos caminhos antigos, ou haverá uma terceira possibilidade?”. A “terceira possibilidade” implicada seria canalizar a modernidade para destruir seus efeitos tóxicos. Al-e-Ahmad afirmou sua vontade de “colocar (na máquina) um arreio como se fosse um animal de carga... e imprimir nela a vontade humana”. A tecnologia deveria estar subordinada, não mais uma força de atomização social e degeneração cultural, mas um instrumento de construção. As forças titânicas da modernidade seriam capturadas para dissolver a modernidade e retornar à essência da civilização iraniana. Neste contexto, Al-e-Ahmad se torna um conservador revolucionário iraniano. Conservadores, que seriam defensores da cultura islâmica no contexto iraniano, liderarão a revolução, ao invés de se opor a ela. O projeto continental da Eurásia assume uma posição conservadora revolucionária similar ao fundir revolução e tradição, como afirma Dugin:

“Eu estou convicto de que a história política bem logo nos forçará a esclarecer nossas posições e polir nossa retórica para torna-la mais precisa. Não temos escolha além do conservadorismo: nós seremos empurrados em sua direção desde fora, bem como de dentro. Mas do que faremos com o espírito da revolução, a vontade, a chama abrasadora de rebelião que secretamente jaz no coração russo e perturba nosso sono, nos convidando a segui-la até terras distantes? Eu penso que devemos investir nossa força continental em um novo projeto conservador. E que seja esta a nova edição de nossa Revolução, a Revolução Conservadora, a Revolução Nacional em nome de um grande sonho...” (“Putin vs. Putin”, pg.157)

Outro grande pensador iraniano que articulou uma visão de revolução fundindo influências do Islã xiita, do Terceiro Mundismo e Heidegger foi Ali Shariati. Shariati adaptou as ideias de “Ocidentoxicação”, afirmando em “Shieh, Yek Hezb-e Tamam” (Xiismo, um Partido Completo), “Eles [o Ocidente (farang)] poluíram nosso mundo com seu capitalismo e nossa religião com suas igrejas! Eles ensinam a nossos modernistas o dandismo [gherti-bazi], danças, coquetéis e meras liberdades sexuais em nome da civilização... Eles lentamente insuflaram as profundezas de nossos corações e mentes e nossa fé racional e religião progressiva, prática e humana. Eles escureceram e arruinaram tudo que previamente considerávamos caro a nós: a alma [ruh], a intercessão [shefaat], a invocação [tavasol], a confiança [velaayat], e o martírio”. Para combater as influências tóxicas do Ocidente, Shariati iria expor um xiismo de libertação, chamado de “Xiismo Vermelho”, assim chamado pelo sangue dos mártires. Assim, Shariati invoca a herança revolucionária dos xiitas que resistiram à ocupação mongol do Irã:

“Este foi o início da explosão, bem simples e rápido! A hoste vai ao povo e chamando as massas xiitas, exclama que o governante mongol está pedindo suas mulheres. Qual é sua resposta? Eles dizem ‘Nós preferimos morrer a sermos assim tão aviltados! Nossas mulheres para nossos inimigos serão nossas espadas’. O resultado é inevitável. As massas se decidiram. Eles matam todo o grupo de uma só vez. Como eles sabem que não há como voltar atrás, como eles sabem que já escolheram a morte, eles param de titubear. A escolha da morte lhes dá tamanha energia que sua pequena aldeia se revolta contra aquele regime sanguinário e vence. Os aldeões tomam a cidade, lutando contra o exército mongol e os decretos dos pseudo-clérigos da religião do Estado. Eles são vitoriosos. Seu grito: ‘Salvação e Justiça!’ e ‘A destruição do poder dos governantes mongóis e da influência dos sacerdotes da religião dos governantes e dos grandes proprietários da classe governante’. As vítimas da ignorância do pseudo-clero e os prisioneiros da opressão dos mongóis continuam se unindo às fileiras dos rebeldes. Sabzevar se torna um centro de poder; como um fogo que se espalha por arbustos secos, os guardas revolucionários xiitas, que desfrutam do apoio de guerreiros rurais e campões das massas, e tem a ideologia do Sheikh Khalifeh a do Sheikh Hassan e de tipos similares de homens missionários justos, bem informados e de saber, engolem todo o Khorasan e o norte do Irã e inflamam até o sul do país. E pela primeira vez, um movimento revolucionário baseado no xiismo alavita, contra a dominação estrangeira, a enganação interna, o poder de senhores feudais e ricos proprietários, teve um levante armado, liderado por camponeses há sete séculos, sob a bandeira da justiça e a cultura do martírio, pela salvação da nação escravizada e das massas despossuídas.

E esta foi a última onda revolucionária do xiismo alavita, o xiismo vermelho, que continuou por sete séculos a ser a chama do espírito da revolução, da busca pela liberdade, e pela justiça, sempre se inclinando para o povo comum e lutando impiedosamente contra a opressão, a ignorância e a pobreza”. (Xiismo Vermelho vs. Xiismo Negro)

Shariati deu uma essência explicitamente religiosa à posição de libertação nacional. Enquanto ele adotou muito da retórica e ideologia da libertação terceiro-mundista da esquerda, Shariati se recusou a ser aprisionado pela dicotomia capitalista/comunista, condenando concepções econômicas da vida como insuficientes, afirmando:

“Ambos estes sistemas sociais, capitalismo e comunismo, apesar de diferirem em configuração exterior, consideram o homem como um animal econômico... a humanidade está a cada dia mais condenada à alienação, mais afogada neste louco vendaval de velocidade compulsiva. Não só não há mais ócio para o cultivo de valores humanos, grandeza moral, e aptidões espirituais (mas isso também) fez com que os valores morais tradicionais declinassem e desaparecessem também”.

Ao invés ele deu precedência a uma força apocalíptica unindo povo, ideologia e Deus em um poder coerente de renascimento espiritual, assim ligando libertação nacional e refundação espiritual. Mirsepassi resume a crítica de Shariati à modernidade, citando suas afinidades com Heidegger:

“A principal crítica da modernidade em sua obra é o ataque ao que ele chamou de ‘cosmo materialista’, onde ‘o homem se torna um objeto’. Em contraste, o Islã mostra ‘um laço fundamental, uma relação existencial (entre o homem e o mundo), ao considerar os dois como surgindo de uma ‘única origem (sublime)’.’ Isso reproduz quase palavra por palavra a filosofia central de Heidegger, que também sentia que um pano-de-fundo religioso onipresente, havia esvanecido e deixado as pessoas atomizadas em relação a seu elo ontológico com sua comunidade. O propósito de Shariati, então, era trazer este elo explicitamente ao quotidiano político das vidas dos iranianos, como uma recuperação da sociedade islâmica ideal e unificada. Ele objetivava superar o desenraizamento cultural na vida quotidiana infligida pela existência moderna. Pensando nessa linha, ele representava a dominação do Irã pelo Ocidente menos em um sentido político ou econômico e mais em termos de uma infestação ocidental na sociedade iraniana. Novamente, então, foi necessário dividir a sociedade contemporânea entre a autêntica e a inautêntica, ou Gharbzadegi”. (“Islã Político, Irã e Iluminismo”, pg. 127)

Ao buscarem um retorno a uma unidade espiritual entre homem e Deus, Shariati partilha de uma afinidade com Tradicionalistas como Evola ou Guénon, mas ele se aproxima deles em um contexto bastante revolucionário, que parece partilhar mais com os proponentes da libertação terceiro-mundista entre a esquerda. A recusa de Shariati em aceitar as barreiras impostas pela dicotomia “esquerda-direita” ocidental pressagia a Quarta Teoria Política. Tal como Shariati fundiu tradição islâmica e revolução, assim o faz a Quarta Teoria Política, que busca “unir direita, a esquerda e as religiões tradicionais em uma luta comum contra o inimigo comum. Justiça social, soberania nacional e valores tradicionais são os três principais princípios da Quarta Teoria Política”. Ao articular uma resposta que toma influências do Islã e do pensamento radical do século XX ao colonialismo e exploração ocidental, conduzidos com a aquiescência de uma elite iraniana cosmopolita, Shariati e outros criaram um precursor da Quarta Teoria Política para o Irã, afirmando a essência espiritual do Irã contra a dominação da ideologia unipolar.

À época da Revolução Iraniana de 1979, apenas Fardid permanecia vivo do trio de Fardid, Al-e-Ahmad e Shariati. Porém, suas ideias exerceram uma influência definitiva sobre a oposição ao Xá Reza Pahlavi, sob o qual um regime modernista e ocidentalizante governava, ajudado pelas forças repressivas da brutal polícia secreta SAVAK. A oposição popular e islâmica mobilizou milhões, culminando na expulsão do Xá. Após sua chegada no Irã, o próprio Khomeini visitou o cemitério em que muitas das vítimas do Xá haviam que haviam caído na revolução foram enterrados para prestar tributo a seus sacrifícios. O “xiismo vermelho” do martírio havia conquistado uma vitória crucial. Após a Revolução, o Irã seria reconstituído, não nas bases das ideologias modernas do comunismo ou do capitalismo, mas segundo sua própria tradição islâmica. Em face das disputas por poder da Guerra Fria, o Irã traçaria um caminho independente, pressagiando a visão multipolar da Quarta Teoria Política. Ademais, o Irã eventualmente desenvolveria um programa nuclear, subjugando o poder da tecnologia à vontade do Estado islâmico, um desenvolvimento que Al-e-Ahmad certamente aprovaria.

Intelectuais como Al-e-Ahmad, Fardid e Shariati plantaram as sementes do poder iraniano, um poder baseado em sua essência histórica, em um mundo multipolar. Sua integração orgânica das antigas tradições de seu país com as ideias mais revolucionárias do século XX fornece um mapa para os partidários da Quarta Teoria Política. A obra de Fardid, Al-e-Ahmad e Shariati é um excelente exemplo do que deve ser feito em todo país que busca construir a base intelectual para sua libertação do globalismo ocidental de modo a garantir seu futuro em um mundo multipolar. Eles mostraram o caminho para a renovação das grandes civilizações tradicionais em uma era de forças culturalmente destrutivas emanando do Ocidente.