30/07/2016

Alexander Yanov - O "Nacionalismo Esclarecido" de Lev Gumilev

por Alexander Yanov



Por que Gumilev?

Lev Gumilev é um nome respeitado na Rússia. Ele é respeitado por "ocidentalistas", dos quais ele não gostava, por assim dizer, bem como por "patriotas". Eis o que o "ocidentalista" Helium Prokhorov escreveu com admiração sobre ele no Literary Newspaper: "Deus deu a ele uma oportunidade de explicar sua teoria por si mesmo. E ela enfeitiçou, levando o país inteiro a pensar". Andrei Pisarev, da publicação "patriótica" Our Contemporary, não era menos reverente em sua conversa com o mestre: "Hoje você representa a maior escola histórica na Rússia".

É possível que o papel que Gumilev desempenhará na consciência pública russa após sua morte será mais significativo que o desempenhado durante sua vida? Sergei Glazyev certamente pensa assim. O assessor do presidente da Federação Russia e chefe não-oficial dos "unificadores" do Império Russo do clube Izborsky proclamou em 2013 que Gumilev era um dos "maiores pensadores russos" e o fundador do que ele chama de "integração" do espaço eurasiano.

Qualquer seja o seu legado, o heroi de nossa história, o filho da grande Anna Akhmatova e do famoso poeta da era de prata Nikolai Gumilev (que foi fuzilado pelos bolcheviques durante a Guerra Civil), o homem que passou muitos anos nos campos de Stálin e que, após sua libertação, conseguiu um Ph.D. em história e geografia e publicou nove livros que desafiavam Max Weber e Arnold Toynbee, oferecendo sua própria explicação dos mistérios da história mundial, foi em sua própria época sem dúvida um dos representantes mais talentosos e eruditos da maioria silenciosa da intelligentsia soviética.

O que nós podemos dizer sobre a camada social da qual Gumilev veio? Essas pessoas não estavam em guerra com o regime, mas elas só eram leais a ele em aparência. "Nem paz, nem guerra", este se tornou seu lema após as negociações de Trotsky em Brest em 1918. No mínimo, isso lhes permitiria manter sua dignidade em um regime pós-totalitário. Ou assim eles pensavam.

Porém, eles pagariam por isso. Enterrados sob os rochedos da censura onipresente, eles foram separados da cultura mundial e forçados a criar seu próprio mundo isolado e silencioso, no qual ideias nasciam, envelheciam e morriam, sem jamais serem realizadas, e onde hipóteses eram proclamadas, mas permaneciam sem serem testadas. Por toda sua vida eles guardaram em si mesmos uma chava tremeluzente de "liberdade secreta", mas eles ficaram tão acostumados com a linguagem de Esopo que ela gradativamente se tornou a sua própria. Como resultado, eles adentraram no mundo da sociedade pós-soviética com cicatrizes permanentes. Lev Gumilev partilhava com eles de todos os paradoxos de sua existência e pensar nas catacumbas.

Ciência Patriótica

Por toda sua vida, Gumilev tentou ficar o mais longe possível da política. Ele não estava procurando se digladiar com a censura, e a cada oportunidade ele jurava fidelidade ao "materialismo dialético". Ademais, não temos a menor razão para duvidar de que sua hipótese monumental explicando a história da humanidade era marxista. Aconteceu até de ele culpar seus adversários de se afastarem do "materialismo histórico". Marx, Gumilev dizia, em suas primeiras obras, havia previsto a emergência de uma ciência fundamentalmente nova do mundo, sintetizando todos os velhos ensinamentos sobre a natureza e o homem. Na década de 80, Gumilev estaca convicto de que a humanidade, através de sua pessoa, estava no limiar dessa nova ciência marxista. Em 1992, ele morreu acreditando ter criado essa ciência.

Paradoxalmente, ao mesmo tempo, ele enfatizava sua proximidade com os eurasianistas, os mais ferozes adversários do marxismo no pensamento político russo do século XX: "Eu tenho sido chamado de eurasianista e eu não rejeito isso. Eu concordo com as principais conclusões dos eurasianistas". E ele não tinha medo da orientação anti-ocidental dos eurasianistas, apesar de isso os afastar de suas raízes nacional-liberais da década de 20 e os levar a degenerarem em uma seita reacionária de emigrados.

A evolução do conceito eurasianista não foi singular, naturalmente: todos os movimentos intelectuais russos anti-ocidentais, mesmo que começassem liberais, sempre tomavam a mesma rota de degradação. Em minha trilogia, eu descrevi o destino trágico dos eslavófilos. A única diferença é que sua "ideia russa" precisou de três gerações para completar essa metamorfose fatídica, enquanto os eurasianistas lidaram com ela por apenas duas décadas. Somos deixados pensando sobre como Gumilev reconciliou em sua mente sua proximidade com os eurasianistas e sua firme lealdade ao marxismo-leninismo.

Não se deve deixar de dizer, porém, que essa fantástica partição, a habilidade de servir (Gumilev considerava sua obra como um serviço público) sob os estandartes de duas escolas de pensamento opostas, o separava radicalmente da maioria silenciosa da qual ele veio e que era profundamente alheia tanto ao marxismo quanto ao conceito eurasianista. Essa não era a única coisa que o separava deles, porém.

Gumilev insistia que sua teoria era rigorosamente científica e tentou justificá-la com tudo que estivesse disponível para ele. Era como se cada página de seus livros estivesse dizendo, "Eu sou um cientista, e a política - oficial ou de oposição, ocidentalizadora ou 'patriótica' - não tem nada a ver com o espírito e propósito de minha obra". Ao mesmo tempo, lidando com os ataques da direita, ele foi compelido mais de uma vez a provar o impecável patriotismo de sua ciência. Novamente, essa é uma estranha dicotomia.

Por exemplo, em relação ao conceito comum na historiografia russa do "jugo mongol" dos séculos XIII ao XV, cuja existência Gumilev negava, ele rapidamente descartou os argumentos dos historiadores liberais: "Quanto aos ocidentalizadores, eu não quero discutir com intelectuais ignorantes que não aprenderam qualquer história ou geografia" (apesar do fato de que entre estes "intelectuais ignorantes" estivessem todos os principais historiadores russos". Ele ficava perturbado com o fato de que historiadores "patrióticos" reconhecessem o conceito de um jugo mongol. Ele pensava nisso como "verdadeiramente bizarro" e imaginava "Eu não consigo entender o porquê de patriotas amarem o mito do 'jugo', que foi inventado por alemães e franceses. Não está clara como que eles ousam dizer que sua interpretação é patriótica".

Parece que o termo "interpretação patriótica" de problemas científicos não era agradável aos ouvidos de cientistas. Se é que há algo como um "nacionalismo esclarecido", este é ele.

As Questões de Gumilev

A nova geração, que à luz da glasnost foi introduzida a batalhas na imprensa, começou desafiando a maioria silenciosa. Em uma invectiva impiedosa, Nicholai Klimontovich escreveu, "Nós somos acometidos pela questão fatídica: havia uma 'liberdade secreta', havia algo a mostrar, essa mina de ouro não se transformaria em pó e cinzas sob a luz do dia?" Como os outros, eu não sei, mas Lev Gumilev pegaria com dignidade a luva jogada ao chão pela geração mais jovem. Ele havia algo para provar ao mundo. Seu ousado assalto aos mistérios do mundo foi seu templo, construído na escuridão reacionária, e como vemos, continuando a atrair os fieis por meio da luz do dia. Os quebra-cabeças que ele tentava montar eram realmente imensos.

Como explicar, por exemplo, por que um pequeno número de selvagens nômades mongois subitamente irromperam no palco da história no século XIII e correram para conquistar o mundo, destruindo no caminho culturas ricas e civilizadas na China, Ásia Central, Oriente Médio e Europa Oriental? E o fato de que após dois séculos eles abandonaram o palco silenciosamente, como se eles nunca tivessem existido? E os outros nômades que emergiram tão subitamente quanto do deserto árabe e se tornaram os mestres de metade do mundo e os árbitros do destino das culturas mais prósperas na história? Sua ascensão surpreendente não terminou do mesmo jeito? E os hunos que vieram do nada e se fragmentaram de volta ao nada?

Por que todos esses meteoros históricos se incendiaram e esgotaram? Incontáveis historiadores e filósofos tentaram por séculos responder a essas perguntas. Mas não há respostas universalmente aceitas ainda. E Gumilev, confiando em sua assombrosa erudição, oferece respostas completamente originais. Não merece respeito a sua audácia, o escopo dessa empreitada, abarcando 22 séculos (começando com o século VIII a.C.)?

Hipótese

Audácia não é suficiente para uma tarefa nessa escala, porém. Como qualquer cientista sabe, para se acreditar em uma hipótese, deve haver um jeito de verificá-la. Ela deve ser falseável em linguagem acadêmica. Ela deve ser logicamente consistente e universal, i.e., explicando todos os fatos na área afetada por ela, não apenas aqueles preferidos pelo autor. E ela deve funcionar sempre, não só quando o autor acredita precisar dela. Com isso em mente, vamos dar uma olhada nas hipóteses de Gumilev.

Ele começa com uma compreensão comum do invólucro da Terra, parte do qual, junto à litosfera, hidrosfera e atmosfera, é a biosfera. Até aqui nenhuma novidade. O termo "biosfera" se refere a um conjunto de organismos vivos que foi introduzida no século XIX pelo geólogo austríaco Eduard Suess. A hipótese de que a biosfera pode afetar processos que se dão no planeta (por exemplo, como sabemos, o aquecimento global) foi proposta pelo acadêmico Vladimir Vernadsky em 1926.

A novidade começou quando Gumilev conectou dois em uma série de fenômenos desconectados, o geoquímico com o civilizacional, o natural com o histórico. Era, na verdade, o que ele queria dizer ao falar sobre a ciência marxista universal. Verdade, mas para isso ele precisava de uma pequena suposição (um crítico antipático a chamaria de distorção): sob a caneta de Gumilev, a hipótese de Varnadsky subitamente se transforma em energia bioquímica. Dessa metamorfose, a inocente biosfera de Suess subitamente vem à vida, se transformado em um enorme gerador de "energia bioquímica redundante", em um tipo de vulcão celestial, de tempos em tempos cuspindo rios de lava com a energia invisível da terra (uma energia que Gumilev chamou de "passionaridade").

Essas erupções arbitrárias e imprevisíveis da biosfera criam, segundo Gumilev, novas nações ("grupos étnicos") e civilizações ("super etnias"). E quando a passionaridade as abandona, elas resfriam, e morrem. Eis uma solução para a ascensão e queda de meteoros históricos. O que acontece aos grupos étnicos entre nascimento e morte? Aproximadamente a mesma coisa que acontece com seres humanos. Eles se erguem ("a consolidação do sistema"), queda na agitação juvenil ("a fase de superaquecimento energético"), crescem, e, é claro, envelhecem ("a fase do colapso"), então eles se aposentam ("a fase inercial"), e finalmente, eles chegam ao momento da morte ("a fase de ofuscação"). Tudo isso Gumilev chama de "etnogênese".

É assim que se passa: pessoas vivem em paz e quietude, sem incomodar ninguém, e então subitamente elas são atingidas por uma "explosão de etnogênese", e elas abandonam a sociedade e se tornam um "fenômeno da natureza". E desse momento em diante, "valores morais não se aplicam a elas, tal como com fenômenos da natureza". E nada mais depende do "grupo étnico". Nos 1200-1500 anos seguintes (porque a etnogênese dura tanto assim, com aproximadamente trezentos anos para cada fase), o grupo é um prisioneiro de sua "passionaridade". A partir de então, quaisquer mudanças pelas quais ele passa só podem estar ligadas a questões etárias.

Considere por exemplo, a Europa no século XVI: ocorre a Reforma, a burguesia nasce, a Idade Moderna tem início. Por que? Muitos tentaram explicá-lo. A perspectiva de Max Weber preponderou, ligando as origens da burguesia ao protestantismo. Não é nada do tipo, diz Gumilev. Essa é uma questão etária. É uma simples questão de que na Europa houve uma mudança da "fase de colapso" à "fase inercial". E o que é a "fase inercial"? Um declínio, uma perda de vitalidade, um perecimento gradual: "A imagem desse declínio é enganosa. Ela traja uma máscara de bem estar, que parece eterna para os seus contemporâneos. Mas este não passa de um engano consolador, como se torna aparente assim que haja uma subsequente e, dessa vez, fatal queda".

Ele está, como o leitor compreende, falando da "super etnia" europeia. Três séculos após entrar na "fase inercial", ela desabou em agonia e depois se transformou em um morto-vivo. A Rússia é outra questão. Ela é muito mais jovem (por cinco séculos, segundo estimativas de Gumilev) do que a Europa; ela ainda tem uma longa vida. Mas ela também é, certamente, prisioneira de sua idade. Isso explica o que ocorre a ela. Outros ficam confusos com a origem, por exemplo, da perestroika. Para Gumilev não há segredo aqui; é uma questão etária: "Nós estamos no fim da 'fase de colapso' (se preferimos, no clímax)."

A tentativa de Arnold Toynbee de oferecer algumas razões históricas gerais para o desaparecimento das civilizações antigas (ele as fornece em seus doze volumes de Ciência da História) parece frívola para Gumilev: "Toynbee só consegue comprometer o frutífero conceito científico com argumentos fracos e a incapacidade de sua aplicação". Bem, considerando que Gumilev zombou de Max Weber, ele zombar de Toynbee não deveria surpreender o leitor.

Porém, cada um desses gigantes deixou uma poderosa escola científica, em contraste a Gumilev. E Gumilev se sentiria humilhado se ele pudesse olhar nos corações de seus estudantes para descobrir que eles nunca nem souberam que ele existia, e ainda não sabem de sua existência. O mundo simplesmente não sabe que Gumilev criou uma ciência marxista universal que não só explica o passado, mas também prevê o futuro, e que o fenômeno que ele descobriu "pode resolver os problemas da etnogênese e da história étnica". Afinal, este foi o drama de sua geração.

História "Patriótica"

A significância da hipótese de Gumilev, como vemos, está em sua explicação de eventos históricos através de fenômenos naturais: como erupções da biosfera. Mas como aprendemos sobre essas perturbações naturais? Ela aparece, pelo estudo da história: "Em todas as fases, a etnogênese é o produto da ciência natural, mas o seu estudo só é possível através do conhecimento da história". Em outras palavras, nós não sabemos nada sobre a atividade biosférica que produz etnias, exceto que ela, na opinião de Gumilev, as produz. Se um novo grupo étnico aparecer sobre o mundo, isso quer dizer que a biosfera entrou em erupção.

Como, porém, podemos aprender que o mundo tem um novo grupo étnico? Parece que a partir da "explosão passionaria". Em outras palavras, da erupção da biosfera? Parece que ao explicar fenômenos naturais através de eventos históricos, nós temos ao mesmo tempo que explicar eventos históricos através de fenômenos naturais. Essa exótica explicação circular, misturando o objeto das ciências exatas com o de ciências humanas, demanda dupla meticulosidade da parte do autor. No mínimo, ele deve explicar para o leitor o que uma nova etnicidade significa: o que a torna nova e sob que critérios objetivos podemos determinar sua novidade? O paradoxo da hipótese de Gumilev é que ela não possui outro critério que o "patriotismo".

É claro que provar uma hipótese baseada em um um critério tão específico não é fácil. E para explicar o acontecimento da "super etnia" grão-russa, que era seu único interesse, Gumilev teve que virar tudo de cabeça para baixo, modificando a história que nos é conhecida desde nossos anos escolares. Ele começou bem longe, com as cruzadas da cavalaria europeia. A visão convencional delas é que ao fim do século XI, os cavaleiros foram libertar a Terra Santa dos "infieis" que a haviam tomado. A aventura, porém, foi atrasada por dois séculos. Primeiro, os cavaleiros conseguiram tomar Jerusalém dos seljúcidas, e até estabeleceram um Estado cristão, mas então os árabes os expulsaram. Então, por algum motivo, o grosso dos combates foi para o seio do Império Bizantino. Os cavaleiros tomaram Constantinopla e formaram o efêmero Império Latino. Eles então foram expulsos dali também. Em resumo, uma história confusa e um tanto ridícula. Mas o que isso tem a ver com a "super etnia" grão-russa?

Está tudo ligado, Gumilex explica, porque, contrariamente aos fatos conhecidos, a Terra Santa, Jerusalém, e Constantinopla eram apenas um ramo marginal do "imperialismo europeu". O foco principal da expansão era a colonização da Rússia. Por que a Rússia? Este é o segredo da história "patriótica". Ademais, os cruzados não apareceram em terra russa. Nós temos que assumir que ao se referir à "Rússia" ele na verdade quer se referir ao Báltico com seus castelos e Riga e Revel (hoje Tallinn) como seus centros comerciais, para onde, sob o pretexto de converter pagãos ao cristianismo, um ramo de cruzados respingou. Ali, ao redor desses castelos, uma pequena Ordem dos Irmãos da Espada se assentou.

Os beligerantes pagãos lituanos, porém, não gostaram de seus vizinhos, e em 1236, na Batalha de Siauliai, eles esmagaram os Irmãos da Espada e os pskovianos ortodoxos que se aliaram a eles. A Liga Hanseática de cidades alemães, não querendo desistir de seus recursos para infieis, convidou centenas de "teutônicos" para ocupar os fortes. É claro para o leitor na Rússia, que nunca ouviu falar na Batalha de Siauliai (mesmo as enciclopedias soviéticas não a mencionam), e educados pelo filme Alexander Nevsky (onde a escaramuça ordinária dos novgorodianos com esses "teutônicos" na qual ambos os lados se safaram quase sem derramar sangue, foi representada como um "massacre"), é difícil imaginar que à época, nos Estados Bálticos, os russos não enfrentaram os alemães, mas os "teutônicos" com os litanos. É claro, em seu tempo livro, "teutônicos" e lituanos não eram avessos a saquear as ricas terras novgorodianas. Seu relacionamento com a Rússia se limitava a isso.

Enfim, a fantasmagoria "patriótica" de Gumilev começa aqui. Essa é sua essência: "Quando a Europa começou a ver a Rússia como objeto de colonização...os mongois pararam cavaleiros e comerciantes". Essa é uma incrível reviravolta. Sob a caneta de Gumilev, a Horda, conquistando a Rússia com fogo e espada, transformando o país em um deserto, e vendendo a flor da juventude nacional para escravidão estrangeira, se tornou subitamente o anjo guardião da independência russa em relação à vilã Europa. Assim ele escreve: "A proteção da independência governamental, ideológica, comum e até mesmo criativa significava guerra com a agressão do Ocidente".

É estranho ouvir sobre "independência" governamental e outros tipos em uma situação na qual a Rússia era uma colônia da Horda. Mas Gumilev tem certeza do papel salutar dos mongois. Na verdade, se não fosse por eles, "a Rússia poderia, realmente, ter se tornado colônia da Europa Ocidental... Nossos ancestrais poderiam ter estado na posição de uma massa étnica oprimida... Podia ter sido assim. Faltava um passo". É uma imagem sombria, no mínimo. Mas é uma fantasia. Poderiam algumas centenas de cavaleiros lutando duro contra os lituanos ameaçar transformar a Rússia em uma grande colônia? Gumilev nos garante, porém, que eles teriam feito exatamente isso se "o gênio apaixonado-por-sacrifício de Alexander Nevsky não tivesse se manifestado aqui. Em troca de ajudar Batu Khan, ele demandou e recebeu ajuda mongol contra os alemães e germanófilos. A agressão católica foi sufocada". (Não nos é dito, porém, quando ou como este ato de agressão começou, nem por que serviços Batu concordou em ajudar Alexander Nevsky a repelir este ato de agressão).

De qualquer maneira, o leitor de Gumilev deve entender sua mensagem principal: nunca houve um jugo mongol. Houve uma troca mútua de serviços, na qual a Rússia "voluntariamente se associou à Horda graças aos esforços de Nevsky, que se tornou filho adotivo de Batu". Uma "simbiose étnica" emergiu dessa associação voluntária. E ela se tornou uma nova super etnia: uma "mistura de eslavos, fino-úgricos, alanos e turcos fundindo-se na nacionalidade grã-russa".

A "Controvérsia" de Gumilev

Bem, nós alteramos a história com uma virada "patriótica": redirecionando as Cruzadas da Palestina e de Bizâncio para a Rússia; representando o jugo mongol como "associação voluntária"; fundindo eslavos e turcos para formar uma nova "nacionalidade", quero dizer, super etnia. Mas como tudo isso, pergunto, se relaciona com as erupções da biosfera e com a "explosão de passionaridade" na qual a essência dos ensinamentos de Gumilev se encontra? Ocorre que essa relação vem do fato de que o velho grupo étnico eslavo em decadência, apesar de já ter ingressado em uma "fase de ofuscação", não obstante resistiu aos novos grão-russos; "o egoísmo estreito era o inimigo objetivo de Alexander Nevsky e seus camaradas". Mas ao mesmo tempo, "a mera presença dessa controvérsia mostra que junto ao processo de decadência, uma nova geração heroica, patriótica e sacrificial apareceu". E foi a "semente de um novo grupo étnico...Moscou tomou a iniciativa de unificar a terra russa porque é onde se acumulava um povo enérgico, apaixonado, indomável".

O que isso significa? Significa que a biosfera entrou em erupção em Moscou nos séculos XIII e XIV e que a "explosão de passionaridade" ocorreu ali. Não há outra evidência e não pode haver. Com isso, Gumilev confirmou sua hipótese. Vamos resumir. Primeiro, há pessoas indomáveis e apaixonadas capazes de se sacrificarem em nome da grandeza de sua super-etnia. Então, algum "gênio da paixão" reune ao seu redor essas "pessoas indomáveis e apaixonadas e as leva à vitória". Há uma "controvérsia", o novo grupo entra em conflito com o egoísmo do velho grupo étnico. Mas no fim, a passionaridade vence, e o velho mundo se rende à mercê do vencedor. O novo grupo étnico se ergue de suas ruínas.

Isso é tudo que Gumilev nos ferece como evidência da novidade do grupo étnico grão-russo? Bem como da erupção da biosfera na Rússia? Este é o único resultado de todas as suas fantásticas manipulações que distorceram a conhecida história do mundo de uma maneira "patriótica"? Mas este é apenas um conjunto trivial de traços comuns a qualquer grande mudança política, e pode ser aplicado a todas as revoluções e reformas no mundo. E em todos os outros casos, esses traços não demandaram qualquer manipulação histórica. Para demonstrar isso, vamos fazer um experimento, aplicando o conjunto de traços de Gumilev da erupção da biosfera à Europa dos séculos XVIII e XIX.

Experimento

Não é verdade que os pensadores iluministas derramaram toda sua energia no renascimento e grandeza da Europa; também uma super-etnia, na terminologia de Gumilev? Por que não chamamos Rousseau, Voltaire, Diderot e Lessing de "passionistas"? Não tiveram eles uma "controvérsia" com o antigo "grupo étnico" feudal? E eles não testemunharam a Europa "junto ao processo de colapso, erguer uma nova geração patriótica, heroica e sacrificial?". Em 1789, não levaram todas essas coisas à grande revolução, em cujo curso Napoleão (que Gumilev descreveu, em admiração, como um "gênio da paixão", em todo caso igual a Alexander Nevsky) emergiu no palco da história? Especialmente porque não foi necessário para Napoleão, em contrasto ao abençoado príncipe, fornecer serviços ao Khan bárbaro, suprimindo a rebelião de seu povo desesperado sob um jugo estrangeiro, desculpe, sob uma "associação voluntária"? O "egoísmo estreito" das velhas monarquias não resistiram à nova geração? E ela não se rendeu finalmente à mercê do vencedor?

Como podemos ver, tudo isso bate com a descrição de Gumilev da erupção da biosfera e da "explosão passionaria" (exceto que o "gênio da paixão" europeu o fez sem a ajuda mongol). Então o que nos impede de assumir que a biosfera entrou em erupção nos séculos XVIII e XIX na Europa? Podemos considerar o dia de 4 de julho de 1789 como o nascimento de uma nova super-etnia europeia? (Gumilev declarou o nascimento da super-etnia grã-russa como 8 de setembro de 1381). Ou podemos assumir que essa explosão apaixonada era inválida por razões "patrióticas"? Nós não podemos nos realmente nos permitir crer que a Europa "decadente", que entrava, como descobrimos em dúzias de páginas, em uma "fase de ofuscação", era realmente cinco séculos mais jovem que a Rússia.

Certo, vamos esquecer a Europa; este tema é doloroso demais para Gumilev e seus adeptos "patrióticos" (um adversário diria que ele veio com essa hipótese por hostilidade à Europa). Mas o que impediria que algum "patriota" japonês de declarar, com base nos ensinamentos de Gumilev 1868 como sendo o nascimento de uma nova "etnia" japonesa? Afinal, neste ano o "gênio da paixão" do Imperador Meiji retirou o Japão de séculos de isolamento e atraso; meio século depois, o Japão derrotou a grande potência europeia Rússia e, após mais meio século, desafiou a grande potência transatlântica América. Com que base, eu pergunto, podemos impedir os "patrioticamente afinados japoneses de terem uma maravilhosa erupção da biosfera em seu país no século XIX?

Mas isso representaria desastre para a hipótese de Gumilev! Ele moveu céus e terras por sua hipótese; ele não se esquivou das mais incríveis manipulações históricas para mostrar que a Rússia é a "etnia" mais jovem do mundo. E acontece que ela é mais velha, por séculos, não apenas que a Europa, mas também que o Japão. E isso não é tudo.

Os Caprichos da Biosfera

O leitor certamente fica assustado com o estranho comportamento da biosfera após o século XIV. Por que, eu pergunto, a sua atividade "passionária" cessou imediatamente após dar origem à Rússia? É claro, a biosfera é imprevisível. Mas mesmo assim, mesmo olhando para a tabela que Gumilev preparou para os leitores, é claro que não houve nenhum outro período na história com tão inexcusável inatividade, nem uma única erupção em seis séculos! Ou algo está errado com a biosfera, ou Gumilev fechou a torneira por razões "patrióticas". Porque vai que a erupção ocorra no lugar errado. Na América, por exemplo. Ou na África, a qual, por alguma razão estranha, foi ignorada por vinte e dois séculos.

Mas falando a sério, é difícil encontrar um exemplo no qual a teoria da etnogênese de Gumilev funcione bem. Vamos começar pelo fato de que o Califado Árabe durou apenas dois séculos (do século VII ao século IX), nem chegando perto as cinco "fases" obrigatórias da etnogênese, com trezentos anos cada aproximadamente. E o que aconteceu na China não é explicado pela hipótese de Gumilev: na verdade ela morreu no século XIX, entrou em uma "fase de ofuscação", e subitamente ressuscitou. Mas que ressurreição! Ninguém além da biosfera, segundo Gumilev, poderia dar uma segunda vida, apesar de sua hipótese não dar espaço para algo como isso.

O que podemos tirar disso tudo? O que há nos ensinamentos de Gumilev para "inebriar todo o país" após sua morte em 1992? O que "a única escola histórica séria" deveria ter deixado para trás (apesar de não tê-lo feito)? Uma mistura de megalomania, terminologia cientificista e voluntarismo "patriótico"? Bem, Gumilev pagou um alto preço por sua fatídica dissonância soviética. Neste sentido, ele foi mais uma vítima do isolamento soviético do mundo. Um triste destino. 

29/07/2016

Alain de Benoist - Livre Comércio e Protecionismo

por Alain de Benoist



Quando ela foi criada em 1842, a muito liberal Société d'économie politique cunhou o slogan, "Não é economista quem for protecionista". Isso mostra a medida em qe, nos meios liberais, o livre comércio já era à época considerado como um fator que contribui para o "progresso". Hoje, a situação continua a mesma. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o livre comércio se tornou a doutrina econômica dominante. A criação de zonas de livre comércio como a União Europeia, o NAFTA (na América do Norte), e o Mercosul (na América do Sul) foi uma das consequências da abertura das economias nacionais. A Organização Mundial do Comércio (OMC), que tem estado em operação desde 1 de janeiro de 1995, também é devotada à promoção do livre comércio. Em 1979, as vendas internacionais de bens e serviços representava quase 12% do PIB internacional; hoje elas representam quase 30%.

O livre comércio está fundado na ideia de que regras e regulamentos devem ser os mesmos em todo lugar, para que se possa chegar a uma competição "pura e perfeita" na maior medida possível, que permite à "mão invisível" exercer sua influência em todo mercado. No jargão dos economistas, seu ideal é o "campo de jogo nivelado" livre de tudo que possa representar um obstáculo ao livre jogo do mercado: fronteiras, controles, regulações, tarifas alfandegárias, etc. Desde essa perspectiva, o problema não é o comércio internacional, que está devotado a se estender indefinidamente, mas a "rigidez" de salários e regulações trabalhistas, consideradas como limitadoras da competitividade de países desenvolvidos. Quanto às regras iguais para todos, o objetivo do livre comércio é finalmente a abolição de todas as regulações, de tudo que poderia impedir a expansão planetária da lógica do crédito e do lucro. O livre comércio é, em última análise, nada além da liberdade absoluta do capital e de sua capacidade de controlar o mundo, sem se submeter a qualquer regra.

A ideia geral é a de que o comércio internacional representa a principal força de impulso do crescimento econômico, e que, portanto, nós veremos mais crescimento quanto mais suprimamos completamente tudo que possa atrapalhar o comércio. Isso se traduz na realidade em uma pressa para exportar. Os estudos relativos à correlação entre o grau de abertura econômica e taxas de crescimento, porém, não confirmam essa ideia. Eles mostram, ao contrário, que o livre comércio não resulta necessariamente em uma equalização de preços por todo o tabuleiro; mas ao contrário, que ele beneficia certos países (geralmente os mais ricos), que ele também prejudica seriamente outros, pois ele induz distorções profundamente destrutivas entre países dotados de diferentes sistemas sócio-produtivos, porque o ajuste entre oferta e demanda não acontece na mesma velocidade em todo lugar (o teorema de Mordecai Ezekiel). Além disso, é impreciso depender apenas do PIB (ou do produto nacional bruto [PNB]) para medir a riqueza, pois estes indicadores não são capazes, por definição, de levar em consideração bens e serviços comprados e vendidos em mercado de balcão. "A commodificação de uma economia que inicialmente possui um setor não-mercantil", relembra Jacques Sapir, "se traduz sempre em um aumento do PIB, mesmo quando a riqueza real do país diminui".

Os economistas, cegos por sua adesão aos dogmas do liberalismo econômico, na verdade são incapazes de pensar na dimensão coletiva, nas entidades nacionais ou continentais, ou no fenômeno da influência e do poder que sempre entram no caminho da competição "pura e perfeita". Eles também se recusam a admitir que não é o consumo (demanda) que é o objetivo do crescimento econômico (oferta), mas o crescimento econômico que é o fruto do consumo. Ademais, eles não veem que o sistema de oferta e demanda, que supostamente deveria se auto-ajustar espontaneamente, no máximo é capaz de satisfazer a demanda solvente, que diminui rapidamente. Eles imaginam que a liberalização ou desregulação total do comércio permitirá a todos os participantes se beneficiarem igualmente de suas relações comerciais, quando, na verdade, as desigualdades só se tornarão cada vez piores, tanto entre países como dentro deles. O princípio da competição "livre e sem distorções" é uma contradição em termos: toda competição "livre" é necessariamente distorcida, e toda competição sem distorções não é mais "livre".

O ganhador do Nobel Maurice Allais relembrou isso há bastante tempo, afirmando em 1988: "Uma liberalização de todas as trocas e movimentos de capital é possível e desejável apenas dentro do escopo de grupos regionais unindo países economicamente e politicamente relacionados, e com desenvolvimento social e econômico comparável". Em outras palavras, o livre comércio só é possível entre sistemas socioprodutivos dotados de estruturas similares. É por isso que "a liberalização total do comércio a nível internacional, o objetivo declarado da OMC, deve ser considerada simultaneamente irrealizável, danosa e indesejável".

No que concerne o comércio internacional, a ideologia do livre comércio também está baseada na teoria das "vantagens comparativas" enunciada por David Ricardo. Essa teoria, segundo a qual cada país tem um interesse em se especializar na produção daqueles bens nos quais ele é mais competitivo, está baseada na ideia implícita de que as economias são definidas por retornos constantes em escala, o que não corresponde à realidade. Um país extremamente especializado e fortemente focado em exportações, em realidade, logo se encontrará em uma posição na qual ele é incapaz de satisfazer sua demanda doméstica, e se torna dependente de taxas de câmbio flutuante que ele não controla. Abandonando os setores produtivos nos quais ele é considerado menos competitivo, ele também abandona uma competência, um "recurso intangível", o que impedirá o desenvolvimento futuro de toda sua economia.

É claro, esse dogma antiprotecionista também é bastante hipócrita. Os EUA, grandes promotores do livre comércio, jamais hesitou, como todos sabem, em recorrer (pela desvalorização, subsídios diretos ou indiretos, taxas alfandegárias, etc.) ao protecionismo toda vez em que eles consideram ser de seu interesse fazê-lo. Os americanos, particularmente, financiam seu complexo militar-industrial através de compras públicas. E os chineses subsidiam maciçamente suas exportações quando eles manipulam sua moeda para inundar os mercados ocidentais com produtos baratos, etc.

A globalização, que inflamou a espetacular ascensão de países emergentes (China, India, Brasil, etc.), que temos visto desde 2000, combinou três fatores: a redução progressiva de barreiras alfandegárias, a desregulação de mercados financeiros e avanços tecnológicos em comunicação e transporte. A extensão do livre comércio tem andado de mãos dadas com aglobalização, favorecendo a livre circulação de trabalho, bens e capital. Isso facilitou a externalização da indústria para países emergentes com pouca competência tecnológica, mas salários extremamente baixos, bem como exportações maciças de bens baratos originados em países que, como a China, essencialmente baseiam seu crescimento em demanda externa, e apoiam suas exportações mantendo suas moedas desvalorizadas. Tais países tem reservas virtualmente ilimitadas de mão-de-obra a sua disposição, com salários 30 a 80 vezes menores que os de países ocidentais. Estes salários extremamente baixos são, é claro, uma "vantagem comparativa" para países em desenvolvimento, mas constituem competição injusta para aqueles que sofrem com oresultado.

A globalização permitiu que a burguesia e as camadas governantes locais desterritorializassem a produção na esperança de se livrarem das molduras limitadoras de nações e países, transplantando uma parte crescente dessa produção para regiões do planeta que são as menos conscienciosas em coisas como salários, impostos, seguridade social e proteção ambiental. Esse desenvolvimento resulta em custos sociais crescentes. O livre comércio, na verdade, rompe o equilíbrio entre produção e consumo. Ao colocar países de níveis econômicos completamente diferentes e com estruturas sociais diferentes em competição e em pé de igualdade, ele cria condições de dumping e distorções sociais insuportáveis. Ele leva as empresas a considerarem seus assalariados como nada além de um custo e, reduzindo seus salários, os empurra para uma competição brutal e inumana.

Os processos de globalização e desregulação iniciados noas anos 80, que atingiram seu ápice em meados dos anos 90, não só cavaram uma vala ainda mais profunda entre o sistema financeiro e a economia real. Eles fizeram com que a mais-valia da produção fosse cada vez mais alocada aos acionistas e proprietários do capital, enquanto os assalariados recebem cada vez menos. Ao expor as forças de trabalho dos países desenvolvidos a competição com trabalhadores subempregados de economias emergentes, os proprietários do capital conseguir reduzir salários, esquecendo que trabalhadores também são consumidores.

Neste sentido, a globalização de fato marcou o fim do sistema fordista no qual era em interesse do capital aumentar cada vez mais a remuneração dos assalariados de modo a maximizar sua capacidade de consumo. O aumento da produção e do consumo, assim, caminhavam juntos. Esse "círculo virtuoso" foi rompido no momento em que, para satisfazer as demandas do livre comércio, foi necessário reduzir salários com o único objetivo de permanecer "competitivo" em relação a países em que bens similares podem ser produzidos, mas com salários bem menores. Cada vez mais sujeitos à pressão de acionistas (acionistas demandando retornos máximos dos investimentos, o que implica em redundâncias, redução salarial, externalização, etc), os assalariados tem tido que aceitar condições laborais cada vez piores para que possam manter seus empregos. (Em muitos países com estruturas sociais similares às da França, o custo total das doenças laborais já representa quase 3% do PIB). Seu padrão de vida começou a encolher, enquanto o desemprego cresceu. O vácuo entre a renda média e a renda mediana se ampliou. A deflação de salários levou a um empobrecimento relativo dos trabalhadores e da classe média, e assim e um enfraquecimento relativo da demanda doméstica. Enquanto a maioria dos governos engatou "reformas", as pessoas afetadas estão bem conscientes de que essas reformas consistiram essencialmente em fazê-los trabalhar mais e ganhar menos.

Sob essas condições, a capacidade política e sociológica para aumentar a demanda por bens e serviços não parou de cair, apesar da capacidade tecnológica e econômica de oferecer bens e serviços tenha continuado a crescer. Isso é graças em particular a ganhos de produtividade, dos quais uma das consequências é o crescimento do desemprego, esses ganhos permitindo a produção de cada vez mais bens com cada vez menos pessoas, e tornando o trabalho ao mesmo tempo uma commodity rara. (Desde 2005, o Departamento Internacional do Trabalho ressaltou que havia cada vez menos correlação entre crescimento econômico e criação de empregos).

O principal resultado da expansão do livre comércio, além dos benefícios marginais imediatos que possam ter resultado disso (economias de escala, alocação mais eficiente de certos fatores de produção, etc.), tem sido, assim, taxas de crescimento decrescentes associadas a um forte crescimento da desigualdade econômica em todos os países. A única maneira de compensar pelo crescimento decrescente resultante da deflação salarial, da falta de seguridade social e da consequente redução em demanda interna tem sido por meio de empréstimos. Quando salários ficam estagnados e trabalhadores recebem pouco, a demanda só pode crescer por meio de empréstimos e crédito. Ameaçados pelo empobrecimento, os assalariados se endividam cada vez mais para conseguir manter seu padrão de vida, mesmo que suas rendas reais diminuam. Quando eles hajam alcançado um certo patamar, eles se tornam incapazes de pagar suas dívidas, e todo o sistema corre o risco de colapso. É isso que aconteceu no outono de 2008 quando a crise "subprime" americana iniciou a crise internacional atual. A explosão dos mecanismos de crédito resultante da tentativa de manter artificialmente a capacidade de consumo das famílias por meio de crédito, mesmo enquanto as rendas reais estagnavam ou diminuíam, finalmente culminou em uma ampla crise no setor privado (abarcando famílias e empresas).

Essa crise eclodiu nos EUA porque este é um país no qual se consome mais do que se produz, e as poupanças lá são inexistentes. Suas rendas diminuindo, os americanos estavam destinados a se endividarem, e essa situação de dívida atingiu alturas nunca vistas antes. Desde 2007 a dívida das famílias americanas representa 100% do PIB! Depois dos EUA, os países mais afetados tem sido aqueles com as dívidas mais altas, e aqueles inspirados pelo modelo anglossaxão de uma economia bastante aberta e financializada: Inglaterra e Espanha em primeiro lugar, mas também Holanda, Irlanda, Hungria e Coreia do Sul. Vários outros países estão praticamente falidos hoje: Irlanda, Grécia, Islândia, Ucrânia e Romênia.

Emmanuel Todd muito corretamente observa que os efeitos negativos do livre comércio estão vindo da base para o topo da sociedade. Nos anos 80, foram os trabalhadores os mais afetados pelas desigualdades crescentes. Então, nos anos 90, o declínio atingiu a classe média, que começou a sofrer com os efeitos do empobrecimento e a consequente perda de posição social. Hoje, os lucros do livre comércio beneficiam apenas o 1% mais rico, que se torna cada vez mais rico, enquanto as diferenças salariais se apliam e a massa de assalariados se torna cada vez mais pobre. "A adesão das elites ao livre comércio", diz Emmanuel Todd, "a partir de então faz com que a sociedade como um todo sofra".

Os grupos mais ameaçados não são mais os menos qualificados, como no passado, mas aqueles cujos empregos são os mais fáceis de externalizar para outros países. Os campeões do livre comércio não dão a mínima para isso, a externalização sendo justificada a seus olhos simplesmente por aumentar a competitividade, e assim permitir aos proprietários do capital adquirir uma parcela ainda maior da riqueza produzida. (É o mesmo argumento que foi usado para justificar o trabalho infantil no século XIX). "Eu tenho orgulho de ser um chefe que externaliza", declarou recentemente Guillaume Sarkozy, presidente da Union des Industries Textiles e irmão de sabemos-quem.

Seja diretamente ou indiretamente, já percebida ou usada como uma ameaça para culpar acordos trabalhistas e regulações sociais conquistadas por meio da luta no passado, a externalização de empresas afetou primeiro os produtos baratos para consumo de massa. Então, a partir da década de 80, eletrônicos para consumo, eletrodomésticos e carros, e finalmente, desde os anos 90, também os produtos mais sofisticados bem como serviços "intnagíveis" (processamento de informação, interpretação de exames radiológicos, etc.) foram atingidos. A distância entre os locais de produção e de consumo se tornou, portanto, cada vez maior.

Contrariamente à opinião geralmente mantida, as políticas predatórias de países emergentes não só tiveram um efeito devastador sobre as economias de países desenvolvidos, mas também desestabilizaram os países do Terceiro Mundo. Países em desenvolvimento de fato ganharam pouco com as regras da OMC. "Contrariamente ao que muitas vezes se diz", escreve Jacques Sapir, "o livre comércio não tem sido um fator positivo no desenvolvimento dos países mais pobres, e seu efeito na redução da pobreza tem sido muito superestimado, isso quando não tem sido produto de erros de cálculo". O argumento segundo o qual os desequilíbrios que se notam hoje beneficiam, mais ou menos, as populações de países menos desenvolvidos é, assim, contestável, já que as desigualdades entre países continua a aumentar. Na verdade, os ganhos alcançados nos países emergentes serve acima de tudo para enriquecer um pequeno segmento governante da sociedade cujas fortunas literalmente explodiram no curso dos últimos 10 anos.

O risco hoje é de uma espiral deflacionaria surgindo de um aumento dramático no desemprego e uma redução geral da renda, mas também de um forte declínio em produção industrial nos países desenvolvidos. Já em 1999, Maurice Allais, em seu livro La Crise Mondiale d'Aujourd'hui, previu o "colapso geral" de uma "economia internacional baseada inteiramente em uma pirâmide de dívidas". Nós estamos nos aproximando desse ponto.

Desde que a atual crise econômica internacional irrompeu, todos os líderes do planeta declaram que eles estão dispostos a tomar medidas "drásticas" para lidar com a "urgência" e gravidade da situação. Mas ao mesmo tempo eles competem um com o outro declarando (isso foi visto em abril de 2009 durante o encontro do G20 em Londres, e na cúpula italiana mais recente) que o princípio da globalização não deve ser questionado, e que é necessário lutar contra todas as formas de protecionismo. A principal razão para essa atitude é que eles pensam que a crise se resume a desregulação financeira, e que seria suficiente fazer cortes para garantir um retorno à normalidade. Na verdade, porém, ela também é uma consequência da economia real e deriva da própria natureza do sistema econômico hegemônico.

Denunciado pelos líderes de países e governos, o protecionismo também é rejeitado pela direita (e pela extrema-direita) por liberais leais ao dogma do livre comércio, mas também por uma grande parte da esquerda e da extrema-esquerda, particularmente pelos trotskistas, para quem o problema do protecionismo conflita fortemente com suas convicções internacionalistas. (Nas últimas eleições europeias, como Jacques Sapir ressaltou, o partido de Olivier Besancenot foi o único a se recusar a abordar esse problema de qualquer maneira. Quanto ao Partido Socialista, que pensa poder resolver os problemas se limitando a lutar por uma Europa mais "social", ele considera o protecionismo um tema tabu). De um modo mais geral, é toda a Nova Classe, da direita e da esquerda, que nunca cansa de trovejar contra a "ameaça protecionista", as próprias palavras "barreiras", "proteção", "regulação" e por aí vai se tornando para eles sinônimo de isolacionismo, nacionalismo e até mesmo xenofobia. Obviamente, para a ideologia do livre comércio, o protecionismo é o diabo. E isso vai além da simples economia. Desde uma perspectiva simbólica, na verdade, o protecionismo é uma barreira contra a mudança ilimitada, uma medida contra a imoderação, o elemento "térreo" em oposição ao elemento "líquido".

"A recusa em identificar o livre comércio como uma causa da crise atual", escreve Jacques Sapir", demonstra que seus defensores abandonaram o universo da reflexão para adentrar no do pensamento mágico".

Na França, Jacques Sapir é provavelmente aquele que argumenta mais vigorosamente por um retorno ao protecionismo. Ele não é o único. Emmanuel Todd, que já havia denunciado a ideologia do livre comércio em L'Illusion Économique, desenvolve novamente os mesmos argumentos em sua última obra, Après la Démocratie. A ele se unem na defesa do protecionismo Hakim El Karoui e Jean-Luc Gréau. El Karoui, Sapir e Gréau estiveram, aliás, presentes na conferência sobre a crise do livre comércio internacional organizada pela Fundação Res Publica em 27 de abril de 2009 em Paris sob a presidência de Jean-Pierre Chevènement. Alguns economistas de renome internaiconal também estão começando a abraçar a ideia do protecionismo, tal como o fortemente neoclássico Paul Samuelson, que recentemente observou que o caso chinês tornava a velha teoria ricardiana das vantagens comparativas insustentável. Quanto a opinião pública, todos os estudos publicados em anos recentes mostram que o protecionismo é apoiado pela maioria dos europeus, especialmente na França, onde 73% da população acredita que a globalização representa uma ameaça ao emprego. "O humor geral é, ao contrário, favorável ao protecionismo", notou o jornal Les Echos há 12 anos.

"Contrariamente a todo pensamento liberal", observa Laurent Cohen-Tanugi, "a globalização não pode hoje ser separada do retorno vingativo da geopolítica, ou das estratégias de poder, nacionalismos, até impérios históricos... Este retorno está repleto de consequências, primariamente de natureza ideológica: a despolitização de movimentos econômicos, um dogma da globalização liberal desde os anos 80, vai se deparar cada vez mais com a geopolitização do espaço econômico internacional resultante da ascensão econômico de nações continentais legitimamente animadas por ambição estratégica".

Os próprios argumentos antiprotecionistas não são novos. O protecionismo ainda é acusado de encorajar o "isolacionismo", de causar contração do comércio internacional, de criar privilégios injustos ao instituir sistemas de produção artificialmente protegidos dos efeitos positivos da competição, de enfraquecer o poder de compra dos mais pobres através dos preços mais altos dos produtos protegidos, e por aí vai. Mas o grande argumento é histórico: ele consiste em uma evocação enviesada do protecionismo instituído na década de 30, que se diz ter agravado os efeitos da depressão de 29, e, finalmente, teria levado à guerra. Como a crise atual está sendo comparada em todo lugar a 1929, a conclusão pareceria seguir daí automaticamente.

Nos EUA, a adoção do famoso Smoot-Hawley Tariff Act, que foi convertido em lei pelo presidente Herbert Hoover em 17 de junho de 1930, resultou no estabelecimento de tarifas alfandegárias de até 52% sobre mais de 20 mil produtos. Três anos depois, a produção total do país havia caído em 27%, enquanto as importações haviam caído 34% e as exportações 46%. Mais de 60 países então levantaram tarifas alfandegárias ou estabeleceram quotas. O volume global do comércio internacional caiu 40% entre 1929 e 1932. Economistas liberais concluem a partir disso que essas medidas só agravaram a crise: o fechamento de fronteiras diz-se ter provocado a implosão do comércio internacional antes de levar à guerra. Foi por isso que o protecionismo foi tão fortemente estigmatizado durante a conferência de Bretton Woods em julho de 1944, que estabeleceu as bases do livre comercio pós-guerra.

Como falamos, este argumento é enviesado. Isso já foi demonstrado por Paul Bairoch que, em Mythes et Paradoxes de l'Histoire Économique, indicou que o comércio internacional não declinou no mesmo ritmo que a produção dos países em questão, e que o declínio no comércio internacional, portanto, não poderia ter causado a Depressão. A mesma demonstração foi feita recentemente por Jacques Sapir em um texto datado de 8 de janeiro de 2009, chamado "A crise atual levará à guerra? Lições falsas e verdadeiras da década de 30". Nele Sapir relembra que "a parte essencial da contração comercial ocorreu entre janeiro de 1930 e julho de 1932, isto é, antes da instituição de medidas protecionistas, ou autárquicas, em certos países". Ademais, se a fatia de exportações de bens no PIB dos grandes países industrializados de fato passaram de 9.8% a 6.2% entre 1929 e 1938, devemos nos lembrar de que ela era apenas de 12.9% em 1913. Os defensores do livre comércio também se esquecem que, na década de 30, o comércio internacional consistia essencialmente de matéria-prima, que então representava 2/3 desse comércio, enquanto hoje 2/3 do comércio internacional consiste de bens manufaturados. Na verdade, a causa real do colapso do comércio internacional na década de 30 não foi o protecionismo. mas a alta brusca nos custos de transporte e distribuição, a ampla desorganização do sistema financeiro que se seguiu à acumulação de desvalorizações "competitivas" decididas após o erro da Conferência Econômica de Londres em 1933, e a contração da liquidez internacional (que caiu 35.7% em 1930 e 26.7% em 1931), que resultou em uma crise de demanda culminando no que John Maynard Keyners chamou de "balança de subemprego". Quanto ao Smoot-Hawley Tariff Act, ele só fez o nível de protecionismo global subir marginalmente.

Foi sua consideração dessa crise da década de 30 que fez Keynes perceber a importância de alimentar o sistema internacional com liquidez, e o levou, apesar de até então ele ser bem favorável ao livre comércio, a considerar que o livre comércio não tinha mais benefícios a oferecer, e a se declarar cada vez mais favorável ao protecionismo, notavelmente em seu famoso artigo de 1933, "Autossuficiência Nacional". Keynes escreve ali, "O capitalismo internacional decadente, porém individualista, em cujas mãos nos encontramos após a Grande Guerra, não é um sucesso. Ele não é inteligente, não é bonito, não é justo, não é virtuoso; e ele não funciona".

A produção americana em 1938 ainda era inferior à de 1929. Foi, como sabemos, o esforço de guerra que fez do relançamento da máquina possível, a custo de uma explosão da dívida pública, que não deixaria mais de crescer. Pode-se perguntar se não foi realmente a recusa obstinada do sistema capitalista em ser limitado que mesmo hoje gera o risco de levar a uma nova guerra (com o Irã, por exemplo). Chega um momento em que o capital, confrontado com o rebaixamento tendencial de suas margens de lucro e com a impossibilidade de encontrar novas válvulas de escape, só pode depender da guerra para encontrar um novo estímulo, primeiro na forma de produção de armamentos, e então na reconstrução após a devastação maciça causada pelo conflito.

Outra tática dos defensores do livre comércio consiste em denunciar o protecionismo a nível nacional. Eles então não tem qualquer dificuldade em demonstrar que o protecionismo hoje seria tão impossível de estabelecer quanto ineficiente. Os Estados nacionais, em termos de fluxos financeiros e troca de bens, não são mais equivalentes à economia internacional. Não foi sempre assim. No passado, o protecionismo era incontestavelmente uma necessidade para países emergentes que quisessem erguer, livres da competição que eles ainda não teriam como enfrentar, indústrias destinadas a confrontar a competição internacional em uma fase posterior. Friedrich List (1789-1846) foi um dos primeiros teóricos desse protecionismo. Para List, que não era antiliberal (suas posições eram claramente distintas das adotadas antes dele por Fichte em O Estado Comercial Fechado), o protecionismo representava um arsenal de medidas transitórias permitindo que se alcance o limitar a partir do qual a competição entre países poderia ser exercida sobre uma base sem distorsões. Ele não estava errado: a ascensão econômica de todos os grandes países industriais, começando por EUA e Japão, se iniciou dentro da moldura de mercados protegidos a partir dos quais estratégias de investimento puderam ser desenvolvidas.

Mas isso não quer dizer que o protecionismo só tenha utilidade temporária, e que ele deveria ser reservado para países que ainda não podem pagar pelo luxo de fazer uso do livre comércio (é sempre indispensável proteger indústrias estrategicamente importantes, por exemplo). Hoje, a questão é sobre estabelecer protecionismo a nível continental europeu. Isso fornece uma resposta ao argumento de que o protecionismo seria então "impossível" porque praticamenten ão há mais produtos estritamente nacionais, por virtude da fragmentação internacional dos processos de produção e da dispersão geográfica da subcontratação, que resulta em uma parte de um carro ou avião ser manufaturada em um país, outra parte em outro país, etc.

Um dique não é uma represa: ele não impede que a água flua, mas permite que seu nível seja regulado. Similarmente, protecionismo não é autarquia. Ele não é o estabelecimento de muros intransponíveis transformando Estados em fortalezas impenetráveis. Em uma Europa primariamente ameaçada por deflação salarial e externalização, o primeiro objetivo do protecionismo seria permitir que a demanda interna se recuperasse. Apenas uma Europa protegida pode reviver a demanda por meio dos salários. Como Jacques Sapir escreve, "aumentar salários sem tocar no livre comércio ou é hipocrisia ou estupidez". Para a Europa, é uma questão de se tornar um espaço de regulação econômica se protegendo dos efeitos mais danosos da globalização econômica e financeira sob a forma de dumping de preços e externalização para países de baixa renda, e de impor uma regra de reciprocidade no comércio internacional.

Apenas um sistema de proteção comercial e de "tarifas compensatórias" podem por um fim à desvalorização e ao subpagamento de trabalho e fazer com que a demanda interna se erga novamente, controlando a troca de bens e serviços de maneira que as economias europeias não sejam mais penalizadas por oportunidades de facto oferecidas a países cujas condições sociais e ambientais de produção diferem radicalmente das nossas. A elevação de salários e a ressurreição da demanda através do consumo só pode ser alcançada pela adoção de medidas de proteção alfandegária, ao mesmo tempo compensando pelas perdas que poderiam eventualmente resultar do fechamento de certos mercados estrangeiros.

Em relação a questões comerciais, pode-se certamente imaginar uma nova tarifa alfandegária comum, mas este sistema corre o risco de se deparar com a dificuldade de fixar o nível exato de tarifas compensatórias no atual sistema de taxas de câmbio flutuantes. As taxas de câmbio entre o dólar, o euro e o yen variam constantemente, e uma tarifa alfandegária sobre produtos importados, portanto, poderia ser rapidamente tornada ineficaz. É por isso que o melhor sistema permanece sendo o recomendado por Maurice Allais, que é o baseado em quotas de importação, as quais poderiam ser possivelmente leiloadas. Do momento em que, por exemplo, manufaturas têxteis chinesas excederem suas quotas de importação, elas teriam que pagar uma certa soma de dinheiro à União Europeia, ou transferir fábricas para a Europa para poder criar empregos aqui. Outra solução poderia ser a de estabelecer um imposto anti-dumping, como já existe para certos produtos (por exemplo, sobre bicicletas importadas da China).

Mas medidas protecionistas não precisam ser reduzidas a tarifas alfandegárias e quotas de importação. Elas também podem incluir leis limitando os investimentos de empresas estrangeiras, subsídios para produtores ou consumidores, desvalorizações, medidas sociais ou fiscais, o estabelecimento de padrões tecnológicos e sanitários, cláusulas de segurança, e por aí vai. Para remediar a heterogeneidade de economias nacionais na Europa, Jacques Sapir também defende um retorno às somas monetárias compensatórias adotadas na década de 60, que permitiriam a criação de um fundo em que necessidades sociais e ecológicas convergiriamno coração da União Europeia.

Finalmente, o protecionismo deve ir além das medidas puramente negativas. Para início de conversa, ajudaria parar com a externalização da produção, já que ter mercados mais perto reduzirá custos e os riscos ambientais que externalizar causa a nível planetário (por exemplo, quase todos os gherkins consumidos na França são hoje produzidos na Índia; morangos chineses são muito mais baratos do que morangos de Périgord, mas 20 vezes mais petróleo é usado para seu transporte!) que pode também permitir um melhor controle de qualidade de produtos. Ele poderia também levar ao estabelecimento de uma autêntica soberania europeia em questões industriais, graças a um reforço de cooperação entre grandes atores industriais, que poderiam concordar com estratégias em comum em questões de produção e conquista de mercados estrangeiros. O protecionismo, em uma palavra, é a adoção de uma preferência pela Comunidade Europeia em todos os campos.

O objetivo sendo o de generalizar o princípio de economias autocentradas e "regular as trocas comerciais imaginando grandes zonas geográficas de tamanho suficientemente importante para evitar a criação de interesses pessoais, o risco do protecionismo, ao mesmo tempo fazendo disso um meio de organizar o mundo", há evidentemente uma forte congruência entre um protecionismo organizado a nível continental e o movimento em direção a um mundo multipolar, em que os diferentes polos também desempenham um papel regulador em relação à globalização em processo. O protecionismo, neste sentido, não é apenas uma arma econômica, mas também uma arma política que permite a imposição de fronteiras em uma esfera de influência ou em um bloco cultural e civilizacional. Como Raphaël Wintrebert escreveu, "'A política comercial' é, acima de tudo, política e, portanto, não pode ser reduzida a questões técnicas reservadas para especialistas".

A adoção dessas medidas dificilmente representa algum problema técnico específico. Mas elas se deparam com a total falta de vontade da parte dos líderes europeus. Os mais determinados defensores do livre comércio são encontrados na Comissão Europeia, no coração de corporações multinacionais, no Banco Mundial e no FMI. À parte sua Política Agrícola Comum, a Europa hoje é "o continente do livre comércio em um mundo protecionista". Essa orientação livre-mercantista tem predominado desde o início, já que o Tratado de Roma de 1957 já previa "a eliminação progressiva de restrições ao comércio internacional". O Tratado de Amsterdã de 1997 foi tão longe quanto revogar o único artigo (44[2]) do Tratado de Roma se referindo a "preferência natural". Hoje, a "preferência comunitária" é considerada como contradizendo as cláusulas dos tratados europeus, bem como dos compromissos assumidos perante a OMC. É por isso que a Europa, em anos recentes, tem sido a melhor pupila do livre-comércio defendido pela OMC: no coração da União Europeia, o total de taxas alfandegárias não representa mais que 2% do valor total de comércio (o que, para citar um único exemplo, levou a um déficit comercial em relação a China de mais de 80%). A doutrina oficial da União Europeia é aceitar o desaparecimento de um certo número de indústrias com uso intensivo de mão-de-obra para se concentrar em indústrias de alto valor agregado, mas que empregam poucas pessoas. Sob essas condições, os empregos criados em setores de inovação claramente não podem compensar pelos empregos perdidos nos setores abandonados. É por isso que a UE jamais foi capaz de distinguir claramente entre atividades mercadológicas e não-mercadológicas, ou determinar se ela deve ou não deve se proteger contra competição que se demonstre destrutiva para seus países. Não é surpreendente, então, que sua indústria desaparece a um ritmo constante e que suas classes médias afundam na pobreza.

Emmanuel Todd não hesita em dizer que o futuro ou será protecionismo ou será caos, ou protecionismo após o caos. De sua parte, Jean-Luc Gréau considera que "O retorno de um novo protecionismo é inevitável". Quanto a Jacques Sapir, ele escreve, "Em vista da crise que está se desenvolvendo hoje , a combinação de protecionismo e um retorno a sistemas de controle sobre capitais, do tipo que estabilizaria a conversibilidade de moedas com base em transações comerciais de bens e serviços parece ser a base para qualquer solução, como foi o caso após a crise da década de 30. Mas, como em 1944, tal posição só pode se deparar com a oposição dos EUA... A defesa da soberania econômica não é compatível com os objetivos da política americana... Não pode haver, portanto, reforma e qualquer caminho para fora da crise exceto com base em um confronto com a política americana".

As mentes unânimes da Nova Classe, não obstante, continuarão a trovejar contra o diabo protecionista, regularmente descrito como a "pior das soluções" (Jean-Marie Colombani) e o "veneno mortal da economia" (Claude Imbert). Observando essa unanimidade, Emmanuel Todd considera fácil mostrar que o verdadeiro obstáculo para o protecionismo se encontra em uma mentalidade ideológica que pode ser descrita como libertária-liberal: narcisismo, individualismo, obsessão com dinheiro, e desprezo gritante pelas pessoas. "Para mim", ele declara", o ultra-individualismo não é uma adesão primordial à economia de mercado, à rejeição de todas as barreiras alfandegárias; é uma adesão à ideia do indivíduo como monarca absoluto, à ideia de que é proibido proibir, àquele fenômeno da narcisificação dos comportamentos analisado por [Christopher] Lasch, algo extremamente maciço e difuso ao mesmo tempo... O grande fator negativo é essa atomização, essa narcisificação dos comportamentos, esse preconceito radical contra a ação coletiva". Mas esse individualismo é, na verdade, um indivíduo-universalismo, e o universalismo também está em consonância com o livre comércio na medida em que é classificado sob a ideia de "um mundo sem fronteiras", onde nações serão inevitavelmente "suplantadas". Todd também nota que, "A nível internacional, o universalismo e o antirracismo estão diretamente relacionados à dominação do livre comércio. A ideia de abertura, de superar todas as diferenças, leva a isso".

Legislação protecionista certamente não passa de um corretivo para a, e uma versão da, economia de mercado, não uma alternativa à economia de mercado. Ela não desafia fundamentalmente todas as prerrogativas do capital, ou as relações de poder nas empresas. O protecionismo é, por essa razão, um reformismo. Nas condições atuais, somos levados a ele por uma preocupação de evitar o pior.

27/07/2016

Brett McKay - A Importância da Força Masculina

por Brett McKay



Esparta, Roma, os cavaleiros medievais, os samurais... Eles veneravam a força, porque força é o que torna todos os outros valores possíveis. – Han, personagem fictício do filme Operação Dragão, estrelado por Bruce Lee

Quando dei inicio a esse blog, eu não acreditava muito que a força física fosse um componente importante da masculinidade. A força de caráter, claro, mas a busca pela força física era algo secundário. Talvez eu pensasse assim devido ao motivo, parcial, porque eu criei esse blog para fugir da overdose de fetichismo em ficar esbelto e definido. Talvez tenha sido porque eu mesmo não estava em forma na época (com frequência construímos nossa definição de masculinidade de acordo com nossa visão, que por sua vez é a forma que melhor nos descreve, e eu infelizmente não estou imune à essa tentação!)

Eu joguei diversos esportes, mas depois de ir para a faculdade, meus treinos se tornaram esporádicos e sem entusiasmo. Isso foi ainda mais verídico durante o período de faculdade - onde eu tentava manter boas notas e manter um blogue incipiente, o exercício físico simplesmente não era uma prioridade.

Ao longo dos últimos anos, no entanto, trabalhar fora e levantar pesos em particular tornou-se uma parte fundamental da minha vida. Eu comecei a fazer exercícios regularmente para ver o efeito que eles teriam sobre meus níveis de testosterona. Quando a experiência terminou, esse habitou se afixou em mim. Eu era alguém que era quase indiferente para os exercícios físicos, mas depois passei a ficar ansioso pelos meus treinos, e encará-los como minha parte favorita do dia. E eu percebi que treinar e cultuar a força mudou a forma como eu me sentia e via como homem.

Ao mesmo tempo, minha pesquisa sobre os 3 p's da masculinidade me deu um entendimento teórico sobre o papel da força no código ancestral e universal da masculinidade. Essa pesquisa me convenceu que a força forma o núcleo da virilidade, visto que ela torna possível todas as outras virtudes masculinas.

A importância da construção de força para a virilidade de um homem adentrou em minha mente. A força pode não parecer necessária na atualidade, onde a maioria dos homens sentam atrás de mesas e trabalham o dia todo. Mas ser forte nunca é uma desvantagem, e é frequentemente benéfico em várias situações.

Além disso, a força constitui a parte mais importante do código da masculinidade, visto que se você desmontar algo ou modificá-lo, haverá certos aspectos que deverão continuar intactos ou serem substituídos para que essa coisa mantenha sua identidade. Sem certas partes, ela se torna outra coisa. 

Sem força, a masculinidade se torna outra coisa, um conceito diferente. Na definição de masculinidade é necessário começar com força física porque força é a raiz donde todas as virtudes masculinas brotam. Força é a realidade física que fundamenta os conceitos mais abstratos, que também definem a masculinidade.

Hoje, eu gostaria de dissertar sobre o porquê.

A força física constitui uma das mais significativas diferenças entre homens e mulheres

Se o papel protetor representa o núcleo da masculinidade, então a força física constitui seu centro. É o fator fundamental que determina se um homem consegue se impor em uma luta, se ele é capaz de empurrar de volta quando empurrado. Então, isso é vital para como os humanos julgam, de forma visceral, a masculinidade de um homem. Você pode chamar isso de estúpido, de bobo ou arcaico, mas tudo volta na forma que avaliamos os homens — eles poderiam manter o perímetro numa crise? 

Apesar de vivermos em um tempo confortável de paz, isso não mudou o fato de que tanto homens quanto mulheres (até mesmo as mais progressivas delas) acham que homens de aparência fisicamente forte e em forma são mais respeitáveis, confiáveis, atrativos — e viris — dos que os que não são. 

Além disso, levantar pesos aumenta sua testosterona, que é o ponto vital da masculinidade. Sendo assim, se você deseja se sentir mais homem, e ser tratado como tal, você deveria trabalhar o seu corpo.

A força física é prática, preparando você para qualquer exigência


Mesmo em nossa sociedade segura e suburbana, a força física ainda é útil.

Eu quero saber que sou forte o suficiente para carregar alguém para fora duma casa em chamas e colocar essa pessoa em segurança (assim como ser capaz de salvar sua própria vida em uma emergência); eu quero a força para levantar sacos pesados de adubo quando estiver trabalhando ao redor de casa; eu quero a força para derrubar um suposto agressor.

De certa forma, a força pode ser classificada com uma redundância antifragilidade em ascensão: na maior parte do tempo, dependemos de nossa tecnologia e de nossas ferramentas para realizar o trabalho por nós, mas nunca se sabe quando você irá precisar sujar as suas mãos e, quando você precisar, ficará feliz por ser capaz de usar sua força física. Quando tudo é tirado de você, o que resta é a mais básica das lutas: músculo versus natureza, e músculo versus músculo.

A força física promove a excelência equilibrada e uma vida de florescimento pleno.


Nós costumamos pensar no fortalecimento como algo para homens fúteis e não-inteligentes. Nós estabelecemos uma falsa dicotomia entre virtude e força, entre inteligência e força.

Ainda assim, muitos dos grandes homens na história, incluindo filósofos, políticos e escritores, rejeitaram essa divisão de araque, e enfatizaram a importância de desenvolver o corpo, a mente e o espirito. Eles entenderam que sem um corpo forte, um homem nunca será capaz de desenvolver suas outras virtudes ao máximo de seu potencial.

Você pode estar familiarizado com a convicção de Theodore Roosevelt desta verdade – sobre como ele transformou uma infância fraca e doentia em uma vida forte e viril. Certa vez, seu pai disse a ele o seguinte: “Theodore, você possui a mente, mas não possui o corpo. E sem a ajuda do corpo, a mente não pode ir tão longe quanto deveria. Você deve moldar o seu corpo”. E então Theodore respondeu: “Eu irei moldar o meu corpo!”, e passou o resto de sua vida fazendo isso. De forma vigorosa, ele fez boxe, luta livre, trilha, caça e natação até a sua morte.

O que você pode não saber, é que Winston Churchill, outro dos homens mais célebres da história, teve uma história quase idêntica. Seu biógrafo, William Manchester, detalha sua transformação:

“De saúde frágil, um fracote descoordenado com uma pronúncia ruim, que gaguejava e tinha as mãos frágeis e pálidas como as de uma garota. Ele esteve a mercê dos valentões. Eles batiam nele, o ridicularizavam, e o atiravam bolas de críquete. Tremendo e humilhado, ele se escondeu em uma floresta das proximidades. Este era, severamente, o tipo de coisa do qual eram feitos os gladiadores. Suas únicas armas eram um vontade inconquistável e um senso incipiente de imortalidade.

Começando aos sete anos de idade, Churchill se propôs, deliberadamente, a mudar sua natureza para provar que a biologia não determina o destino, ele estava, de forma exagerada, forçando a si mesmo a ir contra sua própria natureza interior. Como um vitoriano, ele acreditava que podia dominar o seu destino e que a fé o sustentava, mas tudo o que temos aprendido sobre a motivação humana desde então sobrepõe a imensidão de seu empreendimento.

W.H. Shelldon delineou três físicos dominantes, cada um com seus traços de personalidade concomitantes. Dos três tipos – ectomorfia (magreza), mesomorfia (muscularidade), endomorfia (adiposidade), – Churchill com certeza se enquadrava na terceira categoria. Sua cabeça era grande, os membros eram pequenos, a barriga era protuberante, e seu peito era franzino. Sua pele era tão sensível que ele tinha erupções cutâneas a menos que ele dormisse pelado a noite em lençóis de seda. Durante o dia, ele só podia ter roupas de baixo de seda em contato com sua pele. Endomorfos são, de forma característica, preguiçosos, calculistas, descontraídos e previsíveis. Churchill não era nada disso. Ele alterou sua constituição emocional para a de um atleta, projetando a imagem de um homem valente, indomável.


Ele se desesperou por diversas vezes ao longo do caminho. Em 1893, ele escreveu: ‘Eu estou amaldiçoado com um corpo tão fraco que mal posso suportar a fadiga do dia a dia’. Ainda assim, ele estava determinado a provar ser tão resistente quanto qualquer mesomorfo. 

Durante sua adolescência, ele quase se matou ao pular de uma ponte durante um jogo de pega-pega. Ele caiu quase nove metros e ficou inconsciente por três dias. Ele caiu de novo enquanto praticava hipismo em Aldershot, e uma outra vez quando estava desembarcando em Bombay, onde feriu permanentemente um ombro. Pelo resto de sua vida ativa, ele jogou polo com seu braço rente ao corpo. Quando era criança, pegou pneumonia, e sofreu de doenças no peito pelo resto de sua vida. Ele era alérgico à anestésicos e tinha febres com uma certa periodicidade. Todavia, ele se recusou a se render à fragilidade de sua genética. Em seu mundo interior, não havia espaço para concessões à fraqueza. Ele nunca reclamou da fadiga. 

Em seu septuagésimo ano, ele foi até conselhos de guerra no exterior esparramado em um colchão de carrapatos durante o início dos bombardeiros da Segunda Guerra Mundial. Ele será lembrado como o campeão da liberdade em sua hora mais escura, mas será valorizado como homem”.

Ambos entenderam que, se eles quisessem desenvolver suas mentes ao máximo de sua excelência, e fazer algo significante no cenário mundial, eles não poderiam passar suas vidas somente lendo. Ao invés disso, eles precisariam de energia para viajar ao redor do mundo e expandir não apenas seus horizontes mentais, mas os físicos também – para testar suas convicções morais e competências cognitivas na dura realidade que é a liderança. Um corpo forte os levaria onde eles precisassem, e os ajudaria a agir nobremente no campo. Sem força física, eles nunca teriam alcançado o que conseguiram, ou se tornado tudo que representam.

Por isso, se você está interessado em se desenvolver ao máximo de seu potencial, seria bom você seguir os passos desses grandes homens, e procurar o que os romanos enalteceram como: mens sana in corpore sano (uma mente sã em um corpo são)

Trabalhar a força física ensina lições de vida


Além de, literalmente, nos oferecer energia para enfrentar nossos objetivos, trabalhar a força física também nos ensina muitas lições metafóricas. A dor e dedicação necessárias para treinar com frequência ensinam a você sobre disciplina, resiliência e humildade, dentre outros. No ensaio de leitura obrigatória, O Ferro, Henrry Collins resume o poder que o levantamento de pesos pode ter na formação do caráter de um homem:

Eu levei anos para apreciar de forma completa o valor das lições que aprendi com o Ferro. Eu costumava pensar que ele era meu adversário… que eu estava tentando levantar algo que não queria ser levantado. Eu estava errado. Na verdade, não se levantar é a melhor coisa que ele pode fazer por você. Se ele se levantasse facilmente, sem exigir esforço, ele não te ensinaria nada. É assim que o ferro se comunica com você. Ele diz que o material com o qual você treina a favor, é com o qual você irá se tornar semelhante. Que aquilo que você tenta ir contra, sempre estará contra você.Aprendi que, ao me exercitar, eu estava me dando um grande presente. Eu aprendi que nada de bom vem sem esforço e uma certa quantidade de dor. Quando eu termino uma sessão de treino que me deixa até tremendo, eu passo a conhecer mais sobre mim mesmo. Quando alguma coisa fica ruim, eu sei que essa coisa não pode ser tão ruim quanto o treino.

Eu costumava lutar contra a dor, mas, recentemente, uma coisa se tornou clara para mim: a dor não é minha inimiga, ela é o meu chamado para a grandeza. Mas, ao lidar com pesos, devemos tomar cuidado para não interpretar a dor de forma errada. A maioria dos ferimentos envolvendo pesos vem do ego. Certa vez, tentei levantar uma quantidade de pesos que meu corpo não estava preparado para suportar, e então passei algum tempo sem poder levantar nada.Tente levantar aquilo que você não está preparado, e o ferro irá lhe ensinar uma lição sobre limitação e autocontrole.

Eu nunca conheci uma pessoa verdadeiramente forte que não tivesse auto-respeito. Acho que o menosprezo direcionado, tanto de forma interna quanto externa, nos passa uma ideia de respeito próprio: a ideia de se levantar apoiando-se em alguém, ao invés de fazer isso por conta própria. Quando eu vejo homens treinando por razões estéticas, eu vejo a vaidade os expondo da pior maneira como se estivessem estampando desequilíbrio e insegurança. A força física se revela por meio do caráter.

A força física age como base para as nossas virtudes

A construção de força não desenvolve somente o caráter e virtude, ela fornece a base necessária sobre o qual construímos nossos valores morais. O manto da virtude fica muito estranho em um homem se não houver fogo e luta. Ele escorrega e cai quando usado em uma estrutura que carece de força e firmeza. Todos nós conhecemos homens amáveis que são extremamente magros, ou que estão muito acima do peso; homens que parecem que iriam se desfalecer caso um valentão os peitasse, e que ficariam sem fôlego só de subir um lance de escadas. Esses homens flácidos preconizam ser bons homens, perfeitos cavalheiros, mas nós não os respeitamos como homens, ou como cavalheiros. Eles são bons homens, mas não são bons em ser homens.

A força física assegura nossa virtude pra nós

A razão pela qual talvez você pode gostar dum bom homem fraco, mas não considerá-lo viril, é que sua pretensão de virtude é fraca, e que talvez ele não tenha coragem e força para nos apoiar num suposto desafio. O quão bom são as realizações intelectuais e os princípios morais se aqueles que os detêm e os cultivam são subjugados por aqueles não se importam com esses valores mais elevados? É importante ter princípios, mas você está preparado para lutar por eles? Do mesmo modo, você poderia mesmo dizer que você é um “bom homem” se fosse dominado pela força de um bandido tentando por suas mãos em sua família? Como diria Theodore Roosevelt:

“Eu admiro o homem, que sente quando alguém faz algo de errado para a comunidade, quando há uma exibição de corrupção, traição, demagogia, violência ou brutalidade. Eu não quero que esse homem se sinta chocado e horrorizado e queira ir para casa, mas sim que ele sinta a determinação para derrubar o culpado, que o faça saber que o homem decente não é superior a ele somente na decência, mas também na força física”.

Cultivar a força homenageia seus ancestrais



Antes da modernidade, um homem tinha que ser fisicamente forte para sobreviver e reproduzir. Seja lutando contra os elementos ou contra outros, os nossos ancestrais tinham que contar com sua astúcia e força para saírem vitoriosos. Os homens que tentavam provar seu valor em batalhas ou caças, que ousavam a fazer grandes coisas e tinham a força para superar qualquer obstáculo, eram aqueles capazes de serem pais, e de passar adiante os seus genes. Os que não aceitavam o desafio, ou não tinham a força e a valentia de seus companheiros, morriam sem ter filhos, e infelizmente seus genes morriam com eles.

Isso significa que todos nós descendemos dos homens mais fortes, rápidos, inteligentes e corajosos do passado, os “machos alfa” do mundo.

Não é exagero concluir que o sangue de grandeza corre em nossas veias.

Então, o que você está fazendo com sua herança genética?

Jogando videogames?

Trabalhando o dia inteiro num escritório?

Assistindo televisão e comendo “junk food” no seu tempo livre?

Jack Donovan argumenta que envergonhamos nossos antepassados viris por desperdiçar o legado da força física que eles deixaram em nossos genes. "Imagine o desgosto e desprezo que eles teriam de nós todos...”

Quando treinamos para ser fisicamente fortes, nós honramos e reverenciamos os homens que vieram antes de nós, que tiveram que ser fortes para que nós pudéssemos existir e aproveitar os confortos que temos hoje. Levantar um peso muito pesado é como acender uma vela em homenagem aos nossos ancestrais viris.

Trabalhar a força física faz você se sentir ótimo, e incrivelmente viril

Por fim, além dos benefícios práticos e de formação do caráter que podem ser obtidos por aqueles que são fisicamente fortes, pode-se dizer que é incrível saber que você é capaz de levantar uma grande quantidade de peso do chão. A primeira vez que eu levantei cerca de 100 quilos e vi no espelho a barra entortando, eu me senti como um animal. Soltei um grito primitivo de realização e carreguei aquele sentimento comigo.

Fazer o que o seu corpo foi feito para fazer, o que foi evoluído para fazer, é uma sensação incrível, e passar toda a sua vida sem vivenciar o máximo dessa sensação é um grande desperdício (uma vergonha). Esta é uma verdade que até mesmo Sócrates pregou há muito tempo na Grécia antiga. 

Quando o filósofo viu um jovem em péssimas condições físicas, ele o reprimiu dizendo: “Nenhum cidadão tem o direito de ser um amador em matéria de treinamento físico. Que desgraça é para o homem envelhecer sem nunca ver a beleza e a força do que o seu corpo é capaz”.

O que significa ser forte?


Nem todo homem tem a composição fisiológica para se tornar fisiculturista. Mas todo homem pode ficar mais forte do que é agora. Não importa quais sejam seus outros interesses, ou qual seja sua estrutura. Se você quer se sentir viril, você precisa se familiarizar com os pesos.

O ideal de força é algo muito debatido, e tem mudado com o passar do tempo. Nossos antepassados eram fortes devido ao trabalho braçal, mas não tinham um físico esbelto. Hoje em dia, alguns homens se concentram no tamanho e procuram ter um físico estruturado e definido, enquanto outros não se importam em ficarem grandes, e se concentram na “força funcional”.

Para mim, não importa muito quais são os seus objetivos, contanto que você esteja fazendo algo. O importante é encontrar um estilo de treinar que você goste, que o inspire a continuar treinando e desenvolvendo seus músculos, e que você permaneça com ele. Mesmo que sua paixão seja qualquer outro exercício, e você queira fazer isso por um longo tempo, seria bom você fazer exercícios de fortalecimento e torna-los uma parte essencial da sua rotina.

Eu não acho que você deva ficar tão grande a ponto de prejudicar a sua mobilidade, seu sistema cardiovascular, e de não ser capaz de correr mais de um quilômetro sem se cansar. Você também não deve negligenciar a parte da força que constitui a força funcional. Assim, se algum dia você precisar levantar algo muito pesado, você irá sentir muito o peso, e será algo que você será capaz de levantar apenas uma vez.

Mas entre esses extremos, há diversas opções. Eu mudo meus treinos o tempo todo. Ás vezes eu apenas quero levantar o maior número de peso, para me sentir forte. Parece idiota, mas é estranhamente satisfatório. Ás vezes, quero fazer treinamentos que nossos antepassados faziam. Variar os meus treinos os mantém desafiadores e me mantém interessado.

Conclusão

A força é um atributo que define a masculinidade. É, literalmente, o poder que permitiu que gerações de homens protegessem e cuidassem de suas famílias, e que construiu nossos arranha-céus, rodovias e pontes. Mesmo que nosso ambiente atual não exija que nós sejamos fortes, ainda se faz necessário buscar o desenvolvimento da força física, pois nela reside a base para a formação de um homem completo.

Lute para se tornar mais forte sempre. Eu prometo que se fizer isso, você verá uma transformação não apenas em seu corpo, mas também em sua mente e seu espírito.

Vires et honestas. Força e honra