25/06/2016

Fernando José Vaquero Oroquieta - Carlismo: O Movimento de um Povo Católico por seu Rei

por Fernando José Vaquero Oroquieta



No último domingo 8 de maio, algumas dezenas de pessoas se reuniram, convocados pelo Partido Carlista, em memória e homenagem das duas vítimas mortais dos acontecimentos de Montejurra do ano de 1976: 40º aniversário, nada menos. Fatos, lembremos, ainda não esclarecidos em sua totalidade e dos quais atores políticos muito diversos obtiveram certos benefícios: desde a aparente superação definitiva de um pleito dinástico centenário, em benefício de Juan Carlos I, então, e Felipe VI hoje, até a captação de quadros e eleitorado por parte de alguns partidos.

Outra vez mais, a ladeira de Montejurra foi testemunha, neste domingo de maio, da presença de boinas vermelhas. Mas, que longe ficava aquele ano de 1974 em que 40 mil pessoas se concentraram ali ao redor de seu porta-bandeira, Carlos Hugo, e suas irmãs!

Apesar de cifras tão díspares, e seu enraizamento social correspondente, Montejurra vem sendo o reflexo débil de um movimento popular extraordinário; fundamental na História da Espanha.

Por isso quisemos refletir sobre o mesmo, assinalando algumas chaves que possam permitir compreender melhor uma História da qual todos os espanhois somos, em alguma medida, tributários.

Para a historiografia dominante (caso, entre outros, de Jordi Canal i Morell, Martin Blinkhorn, etc.) o carlismo foi um movimento contrarrevolucionário orientado para a guerra civil. Mas, com um olhar e conclusões contraditórias com a apresentação ideológica e apriorística anterior, um grupo de historiadores, os quais encontramos em grande medida ao redor da Revista de História Contemporânea Aportes, vem realizando diversas investigações de resultados muito diversos.

Este preconceito ideológico, que etiqueta negativamente o carlismo, também encontramos em outros meios; inclusive no seio da própria Igreja Católica espanhola. Desse modo, por exemplo, se ignora com silêncios ou omissões que foram carlistas muitos dos alunos entusiastas da, à época, nova Doutrina Social católica de Leão XIII; o que se concretizou em sindicatos, cooperativas, editoras, mutualidades e obras sociais de vários tipos e alcance. E tudo isso sem esquecer que um grupo significativo de "mártires" da guerra civil espanhola, beatificados no último ano, eram carlistas.

Dois Testemunhos sobre o Carlismo

Para enquadrar este estudo, reproduziremos dois testemunhos muito interessantes

O navarro Gregorio Monreal, histórico militante nacionalista basco hoje em Geroa Bai, que foi catedrático de História do Direito na Universidade Pública de Navarra e antigo reitor da do País Basco, em uma longa entrevista publicada na revista de extrema-esquerda Hika (número duplo 121/122, abril/maio de 2001, páginas 14 a 18), realizava a seguinte reflexão familiar sobre o carlismo: "...E vou dar-te um exemplo que tiro de meu próprio meio familiar, concretamente de minha mãe, procedente do vale de Yerri, sancta sanctorum do carlismo. Essa família, que não havia tido nunca relação com a cultura liberal, se dividiu quase meio a meio entre UPN e HB".

Por outra parte, o escritor navarro Miguel Sánchez-Ortix, recebedor do prêmio Príncipe de Viana 2001 da Cultura, respondia em 1 de julho de 2001 da seguinte maneira à pergunta: "Por que resgata o carlismo?", ao jornalista do Diário de Navarra: "Fundamentalmente porque está na raiz de nosso presente. Me resulta muito enigmático que o movimento carlista, que sangrou nessas terras durante 150 anos, que está na origem da última Guerra Civil, que todas as sequelas que deixou em Navarra de rupturas familiares, ruínas econômicas, a emigração à América que provocou... Que tudo isso, em uma manhã, a de 9 de maio de 1976 em Montejurra, deixasse o carlismo ferido de morte, é um assunto muito enigmático. Para onde foi toda essa massa de gente que nos anos 60 acuda a Montejurra aos milhares? Há que ver que houve uma transferência, estimo, tanto para o socialismo, como para o Herri Batasuna". E, à seguinte pergunta do jornalista, "E essa transferência foi por medo?", responde: "Não. Não tem nada a ver com medo. Pode ser que fosse uma ideologia que tinha muito pouco futuro em um mundo que mudou tanto. O tecido social de Navarra mudou demais. Não sei se a ideologia carlista, por muito estimável que seja, pode seduzir às pessoas".

Não é nenhuma temeridade afirmar que o denominado "carlismo sociológico" desapareceu quase totalmente. Não obstante, encontramos antigos carlistas, ou filhos de carlistas, em todo o espectro político navarro, tanto em suas bases, como em seus níveis dirigentes. De fato, alguns dos mais qualificados representantes da política navarra nos anos 70 e 80 do século passado podiam ser incluídos nessa categoria. Recordemos, a título simplesmente de exemplo, Federico Tajadura, dirigente da esquerda do PSOE, Jaime Ignacio del Burgo (jurista, escritor e político de longa trajetória na centro-direita navarra), Florencio Aoiz Monreal (de família carlista de Tafalla e porta-voz de Batasuna em sua épocA), Juan Cruz Alli (líder do disolvido partido Convergencia de Democratas de Navarra, ex-presidente do governo de Navarra) e tantos outros.

Podemos nos perguntar, com que critério, desde que impulsos ideológicos ou existenciais, se adscreveram tantos, como antigos carlistas, a umas ou outras forças políticas percebidas como mais "atuais"? Por acaso se pode afirmar que aqueles de convicções navarristas e espanholistas mais acentuadas engrossaram as fileiras da União do Povo Navarro; não em vão, hoje em dia, em algumas zonas do norte de Navarra, a base desse partido é basicamente gente de antiga pertença carlista. Por outro lado, muitos jovens, da etapa final do carlismo "socialista", engrossaram as fileiras do Herri Batasuna e suas sucessivas "marcas". Por sua vez, alguns outros se integraram, o que se pode explicar pelo sentimento social do carlismo, nas fileiras do PSN-PSOE e outros partidos à esquerda.

O Movimento Carlista

Desde tamanha disparidade e dispersão, como podemos definir e caracterizar o carlismo? A resposta é importante, pois a mesma poderia nos proporcionar algumas pistas fundamentais para entender seu aparente e brusco desaparecimento e a complexa situação política e social pela qual passa Navarra.

Para isso, partiremos de uma declaração oficial do próprio carlismo, emitida em um momento especialmente delicado de sua história. Assim, mediante o Real Decreto de 23 de janeiro de 1936, Don Alfonso Carlos estabelecia a Regência com as seguintes precisões:

"Tanto o Regente em suas obrigações como as circunstâncias e aceitação de Meu sucessor, devem sujeitar-se respeitando como intangíveis aos fundamentos da legitimidade espanhola, a saber:

I - A Religião católica, apostólica, romana com a unidade e consequências jurídicas com que foi amada e servida tradicionalmente em Nossos Reinos.
II - A constituição natural e orgânica dos Estados e corpos da sociedade tradicional.
III- A federação histórica das distintas regiões e seus foros e liberdades, integrantes da unidade da Pátria espanhola.
IV - A autêntica monarquia tradicional, legítima de origem e exercício.
V - Os princípios e espírito e, na medida do praticamente possível, o próprio Estado de direito e legislativo anterior ao mal chamado Direito Novo".

Agora vejamos alguma resposta científica emitida a partir da abundante historiografia especializada.

A historiadora Aurora Villanueva, em seu livro O Carlismo Navarro durante o Primeiro Franquismo (Actas, Madri, 1998), o caracteriza da seguinte maneira: "Configurado politicamente ao redor de fidelidades pessoais, ao pretendente e sua dinastia, o carlismo constituiria o sinal de identificação daqueles que, no universo individualista característico do sistema político e cultural liberal, participavam de uma visão tradicionalista da vida e do mundo. Uma 'comunhão' de pessoas aglomerada ao longo da história sobre o eixo da lealdade a certas ideias e uma dinastia" (pg. 531). Fidelidade, antes de tudo, à legitimidade dinástica e a um ideário muito preciso; ambos elementos em simbiose perfeita.

De sua parte, o prolífico historiador Josep Carles Clemente considera, em sua abundante bibliografia, que o carlismo se caracterizava, ademais dos anteriores elementos, por se tratar de um movimento popular e de protesto. Originado no seio do legitimismo espanhol do século XIX, integraria em seu ideário indubitáveis conceitos ideológicos modernos (desde nosso ponto de vista, herança expressa do cristianismo): federalismo, profundas aspirações sociais, sentido de protesto. As relações desse povo com seus líderes, assegura Clemente, quase nunca teriam sido exemplares, ainda que em geral, os defensores máximos do carlismo teriam sim respondido aos anseios de seu povo. Tradicionalismo, integrismo, franco-juanismo, teriam sido, opina o citado historiador, tendências ideológicas inseridas posteriormente no carlismo, mas com uma intencionalidade instrumentalizadora de tão generoso movimento; mas que não responderiam ao sentimento geral da base.

Clemente conclui sua elaboração afirmando que foi com o já falecido Carlos Hugo que o povo carlista teria alcançado o mais alto grau de fusão com seus líderes naturais, já despojados dos elementos dissonantes; o que não impediu sua debandada geral por ocasião do fracasso eleitoral do partido em 1979. Em consequência, para este autor, os carlistas concentrados no último 8 de maio seriam os últimos e diretos representantes desse "povo em marcha" que percorreu boa parte dos séculos XIX e XX.

Os autores tradicionalistas, de sua parte, proporcionam uma perspectiva bastante distinta. Consideram, em seu conjunto, que a rápida evolução ideológica, da Comunhão ao "socialismo autogestionário e federalista" do Partido Carlista, teria sido forçada e "contra natura". Dita transformação, impulsionada por um pequeno grupo de líderes e quadros, que utilizaram o instrumento dos "cursinhos" dos anos 60 e 70 empenhados em uma "modernização" a todo custo, os teria levado à trincheira contrária; o que teria provocado, ou acelerado, a desarticulação desse povo e inclusive do chamado "carlismo sociológico".

Para alguns desses autores, e para a atual Comunhão Tradicionalista Carlista, esta. refundada já há 30 anos no Congresso de El Escorial, seria o agrupamento herdeiro desse carlismo extraordinário que assombrou aos próprios e a estranhos.

Em todo caso, retomemos a pergunta inicial, como é possível que um movimento político popular, centenário, vigoroso, que atravessou provas tremendas, desapareça quase de um só golpe?

Já mencionamis que a historiadora Aurora Villanueva descreve o carlismo como um fenômeno político, sociológico e ideológico completo. Paradoxalmente, foi nos períodos liberais da história recente da Espanha que o carlismo pode se expressar e desenvolver ideologica, orgânica e sociologicamente. Villanueva descreve em seu texto, documentadamente, o processo agônico de desintegração que sofreu, em Navarra, esse carlismo que não conseguiu se adaptar à semiclandestinidade em que o regime de Franco o colocou; depois de terminada totalmente a guerra civil. Por outra parte, as convicções religiosas e semitradicionalistas do regime puderam contribuir para a desmobilização de setores importantes do carlismo; os quais se sentiriam acomodados no mesmo.

Nesse estado de coisas, e nas décadas seguintes, o carlismo sofreu novas fraturas: falcondismo, carlosoctavismo, juanismo... Analisando os fatos descritos em seu livro, concluímos que a sorte do carlismo foi jogada por umas poucas dezenas de protagonistas, no que concerne Navarra, a "Israel do carlismo"; permanecendo em boa medida alheia a tudo isso sua massa popular, acomodada a um regime que afirmava, ao menos no papel, boa parte de seus princípios.

Enquanto isso, a sociedade espanhola se transformava aceleradamente: se consumava o êxodo do campo à cidade, diminuindo assim a influência do clero rual (muito implicado, como no caso de Navarra, no sustento do carlismo); a família tradicional iniciava uma lenta, mas inexorável transformação; novos ares sopravam no seio da Igreja; etc.

Uma Hipótese

A estas alturas de nosso estudo, como caracterizar, sinteticamente, o carlismo?

Resumindo os diferentes elementos comuns assinalados anteriormente, a nosso juízo o carlismo seria um "movimento de um povo católico por seu rei". O povo tradicional espanhol, mobilizado durante mais de um século a serviço de seus ideais e da "Dinastia Legítima". E, no que se refere a sua crise, assinalemos que tal não pode se separar da que sofre a Espanha e a própria Igreja Católica.

Desde essa perspectiva, o tradicionalismo e, posteriormente, o socialismo autogestionário carlista dos anos 70, não teriam sido senão tentativas de ideologização de um movimento em crise e certa indefinição doutrinária desde seus primórdios.

Esfumaçada a liderança e atrativo do "rei legítimo", questionada em seus fundamentos a "unidade católica" sustentadora da Espanha à raiz de novas correntes impulsionadas a partir do Vaticano II, atomizado e disperso em consequência seu povo, persistem, mesmo hoje, famílias e pessoas e profundas convicções ideológicas. Pelo contrário, boa parte do antigo povo carlista se diluiu, com maior ou menor convicção, nas fileiras de outras forças políticas que consideraram mais afins a sua sensibilidade; tudo isso em consonância com o movimento geral da sociedade.

Avançando nessa hipótese, deve se destacar, antes de tudo, a profunda religiosidade do movimento carlista; enquanto que outros componentes doutrinários, à parte a dinâmica dessa relação povo-rei, seriam ingredientes ideológicos mais acidentais.

Francisco Javier Caspistegui Gorasurreta em seu livro O Naufrágio das Ortodoxias, o Carlismo, 1962-1977 (EUNSA, Pamplona, 1997) explica como o impacto das novas correntes teológicas derivadas do Vaticano II foram determinantes na rápida evolução ideológica experimentada pelo carlismo nas décadas de 60 e 70. A transformação de alguns movimentos eclesiásticos rumo a posturas de extrema-esquerda afetou também mutos dos homens e mulheres do carlismo. Exemplifica tal hipótese na trajetória de duas pessoas: Antonio Izal Montero (carlista navarro que assumiu com paixão as novas correntes da Igreja) e Alfonso Carlos Comín (figura paradigmática do progressismo católico catalão dos anos 60 e de grande influência em determinados ambientes intelectuais "comprometidos"; filho de um dirigente carlista aragonês).

Desse modo, na página 46 do texto citado, se recolhe um parágrafo esclarecedor: "O carlismo não ia ser uma exceção neste ambiente de mudança, ainda mais em se tratando de um movimento cuja estrutura social marcadamente diferenciada entre dirigentes e dirigidos, faria com que sua ampla e pouco ideologizada base aceitasse com rapidez as transformações que iam introduzindo-se na variável sociedade espanhola do momento. Ademais, a debilidade de estruturas ideológicas fazia com que o que houvesse de político em sentido doutrinário se diluísse no muito mais pujante carlismo sociológico, mais apto às mudanças ante influxos diversos, pouco condicionado pelos escassos esquemas doutrinários existentes no carlismo, ainda que sem deixar de lado as possibilidades que uma doutrina como a carlista, apesar de suas limitações, oferecia para a renovação, insistindo em um rechaço ao imobilismo enquanto tal...".

No que concerne o veículo da transformação ideológica operada, em suas páginas 52 e 53 o concretiza assim: "Através dele (o religioso) faria ato de presença um elemento que, aos poucos, de forma real ou imaginária, como mito do dissolvente ou como efeito de uma realidade mutante, se apossou das obsessões e ilusões de boa parte do carlismo, contribuindo de maneira importante para a aceleração das mudanças nele. O mito do progressismo ia se introduzir no carlismo, utilizado como desculpa para a crítica ou como via para a reforma. Este progressismo de raiz religiosa ia muito unido ao processo de atualização que afrontava a Igreja desde o começo do pontificado de João XXIII".

Aqueles anos de regência foram muito críticos para o carlismo, ao que se somou a semiclandestinidade da Comunhão e a despolitização do regime franquista; segundo víamos antes. Apesar disso, a figura de Xavier de Borbón-Parma seguiu agregando boa parte das adesões das "primeiras figuras" do carlismo, ainda que se produzissem algumas defecções políticas importantes; caso do que foi Chefe Regional de Catalunha e impulsionador, posteriormente, da denominada Regência de Estella, Mauricio de Sivatte. Mas essa adesão mingua progressivamente, ao longo dos anos 60, com a saída de diversas figuras significativas da Comunhão por motivações diversas.

Um dado concreto avaliza essa religiosidade fundamental do movimento carlista: ainda hoje, boa parte das vocações ao sacerdócio surgidas nos últimos anos em Navarra, assim como à vida contemplativa, o foram no seio de famílias carlistas. Famílias que souberam transmitir o legado carlista; parelho a sua profunda e indubitável experiência católica.

Voltemos a nossa tese. Conforme essa concepção do carlismo seria necessário diferenciar três elementos hmanos, estruturais consubstanciais, que o integrariam: o povo, os líderes, o rei.

A sintonia povo-rei teria sido, em geral, magnífica. Mas a continuidade dinástica se interrompe em 1936 por causa da morte de Dom Alfonso Carlos de Borbón Austria-Este, estabelecendo-se uma regência. Este novo período histórico do carlismo, iniciado em plena guerra civil, coincidindo com o esforço militar que absorveu todas as suas energias durante anos tão transcendentais, se prolonga até o chamado "Ato de Barcelona" (31 de março de 1952). Dessa forma, e em pleno franquismo, se produziu a assunção do caudilhismo monárquico da Comunhão, ante seu Conselho Nacional, pelo até então regente Dom Xavier de Borbón-Parma, pai de Dom Hugo Carlos (mais tarde Carlos Hugo); após muitas dúvidas e vacilações.

Essa interrupção na continuidade da "dinastia legítima" coincidiu, na época, com a desmobilização de boa parte das massas carlistas posterior ao término da guerra civil; com uma Comunhão Tradicionalista ilegal. Neste sentido, Aurora Villanueva proporciona algumas novas chaves de máximo interesse. Assim, na página 536 de seu livro: "E é que ambos, carlismo e franquismo, procediam do mesmo universo mental: o tradicionalismo cultural do fim do século XIX e início do XX. Daí que o esforço dos líderes carlistas por manter o carlismo organicamente diferenciado alcançasse tão somente os setores de militantes mais politizados, enquanto que as bases, do carlismo sociológico, encontravam fácil acomodação no regime de Franco. Quiçá aqui resida a razão última da perda de sinal de identidade carlista durante o regime franquista".

A reativação do carlismo com um novo pretendente à cabeça (Dom Xavier) e, anos depois, com m projeto político diferenciado já em oposição aberta ao franquismo, após certa reconciliação prévia, coincide com o processo de transformação social operado na Espanha e com as mudanças da Igreja Católica. Tudo isso impulsionou a rápida evolução ideológica do carlismo (retificação ou definição, segundo seus impulsionadores), que acarretou o distanciamento progressivo de seus elementos inequivocamente tradicionalistas; perante o desconcerto de boa parte da base desse povo em desintegração. 

O papel dos líderes teria que ser questionado em maior medida; a história nos desenha múltiplos dissensos, cisões, mudanças de estrategia, expulsões, mudança de partido, etc., protagonizados por muitos deles. Todos esses movimentos fracassaram, entendendo-os como projetos coletivos, sendo, ao contrário, polo de atração do povo carlista a pessoa concreta do porta-estandartes que encarnava a continuidade da dinastia legítima e a mesmíssima autopercepção das Espanhas.

Resumamos, pois. A sintonia povo-rei, base do movimento histórico carlista, se rompe por um conjunto de causas:

1 - Por fatores estruturais internos da própria realidade carlista (a interrupção dinástica, as relações flutuantes com o franquismo, e a renovação de suas elites).

2 - Pelas novidades doutrinárias externas que afetaram, de forma determinante, ao "corpus" ideológico carlista (novas correntes teológicas desenvolvidas na Igreja a partir do Vaticano II; que questionaram o princípio básico carlista da "unidade católica" da Espanha).

3 - Por fatores externos derivados da dinâmica social histórica em que se desenvolve este povo concreto (as mudanças profundas que transformaram a Espanha, passando de uma sociedade rural a outra industrial, com o desaparecimento consequente do até então influente clero rural carlista; a progressiva desarticulação da família tradicional em prol de um modelo familiar nuclear muito mais individualista, conforme padrões sociais procedentes das chamadas sociedades "avançadas"; o impacto quotidiano das ideologias de "68"; finalmente, a incidência brutal individual e social do consumismo e do individualismo próprios da sociedade pós-moderna e pós-industrial.

Fatores tão complexos e rápidos pressionaram simultaneamente e sem freio algum, sobre o povo carlista, determinando que a família tradicional, principal custódia do carlismo durante várias gerações não fosse capaz de transmitir, salvo exceções contadas, seu legado; como tampouco foi capaz de comunicar uma experiência religiosa atraente em tantos casos.

Algumas Conclusões

Hoje em dia, fica algo vivo do carlismo? De forma organizada, sobrevivem três pequenos grupos: o Partido Carlista (último e minúsculo representante do carlismo socialista, federalista e autogestionário); a refundada Comunhão Tradicionalista Carlista; e o núcleo agrupado ao redor da chamada Secretaria Política de S.A.R. Dom Sixto Henrique de Borbón, a quem reconhece como Porta-Estandarte da Tradição.

Sociologicamente, por acaso, poderíamos aventurar que alguns tiques da mentalidade navarra em particular, se encontram intimamente entrelaçados com o carlismo sociológico: sentido de grupo, gosto pelo próprio, generosidade e entrega pessoal, certas imagens e lugares comuns do léxico, apego às tradições, espontaneidade, substrato religioso...

Não obstante, as novas gerações navarras, salvo exceções contadas, mostram um assombroso desconhecimento da história e saga carlistas de seus pais e avós.

Na dinâmica das relações humanas, a presença e companhia gerada por pessoas excepcionais pode chegar a materializar, pelo atrativo que são capazes de transmitir entre os homens e ao longo do tempo, um movimento que atravesse um período histórico. Essa dinâmica elemental determinou a operatividade concreta na transformação do catolicismo, e também o esteve, na história do carlismo.

Refletindo sobre a saga popular do carlismo, e analisando seu peso na história de Espanha e Navarra, não podemos menos que nos sentir tributários de todos esses carlistas, antepassados diretos nossos, que lutaram de forma consequente com seus ideais. Inclusive podemos chegar a afirmar que, em boa medida, graças eles, nossa tradição histórica concreta (a espanhola) e religiosa (o catolicismo) nos chegaram até nossos dias de uma forma viva, reconhecível e tangível. Trata-se, definitivamente, de um precioso legado para os navarros de hoje e todos os outros espanhois.


21/06/2016

Andrew Korybko - Guerras Híbridas e Segurança Democrática

por Andrew Korybko



Guerras híbridas são, em realidade, algo completamente diferente daquilo que a maioria das pessoas pensa que elas são. Minha visão é que aquilo que todas as pessoas falam – guerra de informação, guerra econômica, guerra institucional- e que em realidade já foi praticado antes, hoje em dia está sendo integrado através de uma ação conjunta de guerra. Portanto, minha definição de guerra híbrida trata de sua implementação prática no processo de transformar uma revolução colorida em uma guerra não convencional com o intuito de alcançar uma mudança de regime ou federalismo sob o eixo de uma identidade em um estado alvo.

 “A lei da guerra híbrida”, como eu a denomino, é que “o grande objetivo por detrás de toda guerra híbrida é interromper os projetos multipolares de alianças transnacionais através de conflitos de identidade (étnica, religiosa, regional, política, etc.) provocados externamente no estado em transição alvo”, e nós podemos observá-la na prática pelos esforços dos EUA para obstruir os projetos de integração russa na Ucrânia e a sabotagem do chamado Friendship Pipeline iraniano através da Síria. E ainda, todos os corredores de infraestrutura que coletivamente compreendem a estrutura global do chamado One Belt One Road da China, outrora considerada “A Nova Rota da Seda”, são alvos óbvios também, especialmente a área de interesse compartilhado, foco estratégico tanto para Rússia quanto para a China, localizada nos Bálcãs e na Ásia Central.

Agora que eu lhe falei o que são as guerras híbridas, deixe-me contar como elas operam. Organizações não governamentais (ONG’s) e agências de inteligência trabalham para cultivar grupos de frente nos âmbitos políticos e sociais dentro dos estados alvo, construindo essas redes até o ponto em que elas se tornem suficientemente fortes para desafiar as autoridades legítimas.  Antes que quaisquer hostilidades comecem, ONG’s e agências de inteligência se ocupam da tarefa de estimular um sentimento de diferença profundamente enraizada em meio ao povo, que geralmente está centrada em alguma forma de identidade, seja real ou imaginada, ou exagerada, com o objetivo de gerar um ressentimento antigoverno mais intenso.

Uma vez que as pré-condições da infraestrutura social e informacional alcançaram o estágio em que os financiadores externos estão confiantes em seu potencial de interromper a situação política do estado alvo, uma provocação é organizada com o objetivo de criar um motivo plausível para trazer à frente o movimento antigoverno e aberta iniciar o projeto de desestabilização de maneira aberta. Se a revolução colorida, ou a pressão “suave” não for bem sucedida em colher os frutos desejados, então esse movimento é eventualmente transformado em uma guerra não convencional, ou pressão “forte”, através de uma série de ações organizadas.

Quando isso acontece, alguns dos revolucionários se transformam em terroristas insurgentes que então são apoiados por estados pró-americanos, que enviam mais soldados, armamentos, e assistência material para seus representantes. Nós vimos esse processo acontecer na Síria após o fracasso da “Primavera árabe”, quando a revolução colorida se transformou em uma guerra terrorista e na Ucrânia logo depois do golpe de fevereiro quando as regiões ocidentais estavam em revolta aberta contra Kiev. Atualmente, esse padrão de eventos está se repetindo na Macedônia e há uma grande possibilidade de estourar no vale de Fergana em um futuro próximo. Para lembrar a todos vocês, isso está acontecendo com o objetivo de interromper ou tomar o controle de projetos importantes para a infraestrutura de áreas de trânsito essenciais, utilizando os meios inter-relacionados de mudança de regime, federalismo de identidade e caos incontrolável.

Mesmo sendo perigosas e representando uma ameaça, isso não significa que as guerras híbridas sejam inevitáveis e não possam ser contidas. Os métodos de contenção a essa ameaça são o que eu chamo de segurança democrática, e eu acredito que esse é um campo novo e animador que necessita urgentemente de apoio governamental para desenvolver-se. Até então, eu identifiquei três formas primárias para derrotar as guerras híbridas, mas eu tenho certeza que pesquisas futuras irão revelar outras estratégias efetivas.

A primeira coisa a ser feita é que as ameaças híbridas, no sentido que eu as defini, devem ser identificadas e expostas em seus estágios incipientes. Isso significa que todas as organizações não governamentais dentro de nosso país e de nossos aliados interessados devem ser registradas ou investigadas a respeito de financiamento estrangeiro, e que todas as organizações que representam uma ameaça à segurança nacional e estejam operando ilegalmente devem ser imediatamente banidas. Nós já alcançamos isso, então precisamos dar um passo adiante e criar uma base de dados internacional junto com nossos aliados com o objetivo de vigiar todas as ONG’s e suas atividades, sejam elas legais ou ilegais. E ainda, nós temos que demonstrar publicamente as conspirações dos EUA ao fomentar guerras híbridas encorajando os nossos profissionais da mídia, academia e segurança a trabalharem de maneira conjunta e informar coletivamente a nossa população a respeito das ameaças assimétricas que ela enfrenta, já que informação avançada e conhecimento são os meios de dissuadir e prevenir que cidadãos ingênuos e bem intencionados sejam levados a participar desses movimentos perigosos.

Em segundo lugar, nós precisamos ter certeza que os nossos representantes responsáveis pela segurança estejam treinados nos métodos apropriados para desmembrar as células que levam à frente as guerras híbridas, particularmente em dispersar revoluções coloridas e responder a atividades de guerras não convencionais. É muito importante que eles possam lidar com distúrbios de uma maneira delicada e evitem incitar de maneira inadvertida respostas violentas pelo uso de força desproporcional. Os instigadores frequentemente tentam enganar as autoridades fazendo-as cometerem erros e negligências que eles possam explorar através das mídias sociais gerando uma onda adicional de sentimento antigoverno e utilizando esse sentimento para canalizar mais atividades nas ruas. Seja através desses meios ou outros, a sua meta última é reunir o máximo de pessoas possível nas ruas para que elas possam funcionar como escudos humanos ao protegerem os agitadores mais violentos e evitar que eles sejam presos.

Finalmente, a última estratégia de segurança democrática que eu descobri é o encorajamento de movimentos patrióticos da sociedade civil que se manifestem em larga escala e apoio público ao próprio governo. Nós vimos isso de maneira mais clara na República da Macedônia, onde milhares de pessoas protestaram contra os colaboradores da revolução colorida e demonstraram ao mundo que eles não querem uma mudança de regime em seu país. É importante que governos ao redor do mundo ajudem a estimular esses movimentos como defesas pró-ativas em oposição às conspirações das revoluções coloridas, já que eles servem como primeira linha de defesa em resposta à essas ameaças.
Além disso, essas tecnologias de “reverter revoluções coloridas” também podem ser praticadas por cidadãos patriotas que exercem pressão para que seus governos reneguem acordos pró-ocidentes que sejam controversos. Por exemplo, os povos da Sérvia e Montenegro experimentaram através da disciplina e aplicação seletiva dessas táticas a tentativa de convencer os seus líderes a revogarem os seus compromissos com a OTAN, sendo cuidadosos ao não exigir uma mudança de regime ou utilizar meios violentos. O uso positivo da tecnologia das revoluções coloridas definitivamente merece maior atenção.


A última coisa que eu gostaria de dizer para todos vocês é que a Rússia possui o verdadeiro potencial para se tornar o centro global dos estudos e treinamentos em segurança democrática, e se os nossos especialistas podem dominar essas tecnologias e adquirir uma compreensão plena de como elas funcionam, nós podemos compartilhar esse conhecimento valioso com nossos aliados e aumentar a nossa importância estratégica no mundo. É possível que um dia venhamos a treinar os representantes dos nossos parceiros do âmbito militar, social e sua inteligência aqui em Moscou e portanto, fazer de nosso país a vanguarda que garantirá o futuro multipolar coletivo. No entanto, para que isso ocorra, nós necessitamos do apoio imediato das instituições para o financiamento de projetos de pesquisa relacionados e a mobilização em tempo integral de analistas qualificados nessa tarefa. Se nós formos bem-sucedidos em construir uma estrutura de segurança democrática integrada que seja mais forte que a estrutura das revoluções coloridas que os EUA já construíram, então a Rússia pode se tornar a líder indiscutível na resistência global frente às guerras híbridas. 

18/06/2016

Jeff Wallder - Perón ou Morte!

por Jeff Wallder



O general Juan Perón foi uma vez descrito como o único ditador do século XX que jamais fuzilou ninguém. Ele foi o excêntrico presidente argentino do pós-guerra que enfrentou os grandes latifundiários, os grandes empresários, juntas militares, multinacionais globais e o governo americanoa para poder redistribuir a riqueza de seu país de forma mais justa entre os trabalhadores argentinos.

Durante seu período no poder foi criado o sistema público de saúde, a previdência social foi tornada universal, a educação se tornou gratuita, e os trabalhadores (e estudantes trabalhadores) receberam férias pagas pela primeira vez e resorts especiais foram construídos que ofereciam temporadas de 2 semanas por 15 centavos o dia a trabalhadores.

Mesmo quando forçado a sair da presidência e a ir ao exílio em 1955, Perón manteve sua influência sobre a política governamental através de seus descamisados no sindicato CGT e sucessores simpáticos a quele que governaram em sua ausência forçada antes de seu retorno triunfante a Buenos Aires em 1973.

As reformas sociais de Perón lhe garantiram a lealdade e afeição duradouras de uma enorme camada do povo argentino em uma escala inconcebível hoje. Mesmo em 2013, quase 40 anos após sua morte, quatro de cada cinco dos maiores partidos políticos do país se descreviam como peronista.

A "doutrina justicialista" de Juan Perón foi inspirada pelo socialismo sindical do Estado Corporativo de Mussolini durante a visita pré-guerra à Itália e Alemanha. Mas apesar de na década de 60 ele se referir a seu credo econômico como "nacional-socialismo", Perón sempre manteve sua distância do fracasso do fascismo europeu. Sua maior perícia pessoal foi a habilidade extraordinária de controlar e manipular facções rivais dentro do movimento peronista, e os utilizou para avançar sua agenda em prol do bem-estar da nação argentina.

Evita!

Porém, mencionem "Perón" fora da América do Sul hoje e as pessoas pensam instintivamente em Eva Perón, a ex-atriz que se tornou a segunda esposa de Juan Perón. Conhecida universalmente como Evita, ela foi a principal defensora sul-americana pelos direitos das mulheres e crianças e trabalhou incansavelmente em seu favor até sua morte prematura em 1952. Este ícone da feminilidade argentina, que deu às mulheres o voto e o benefício de maternidade pela primeira vez, e sua Fundação Eva Perón, foi reverenciada sem precedentes em casas da Patagônia ao Rio da Prata.

Estranhamente, este eclipse parcial de Juan Perón na percepção moderna por sua bela e eloquente esposa se deve parcialmente a um famoso ex-sindicalista do oeste londrino. Uma tarde, ele ouviu dois jovens pretendentes a dramaturgos, Andrew Lloyd Weber e Tim Rice, discutindo uma ideia para um musical sobre Eva Braun, esposa de Adolf Hitler. Ao ouvir isso, o organizador se apoiou em uma mesa de café e lhes garantiu que se eles escrevessem um musical sobre a mulher de Hitler ninguém os apoiaria e suas carreiras musicais seriam curtas. Considerariam eles escrever um musical sobre Eva Perón, ele perguntou? O resto, como se diz, é história.

O Rei sobre a Água

Durnate o curso do período de Perón como Secretário do Trabalho e do Bem-Estar (1943-1946) e suas duas primeiras presidências (1946-1955), ele embarcou em um pacote radical de reformas econômicas baseadas na "Terceira Posição" do socialismo sindical. Ferrenhamente anticomunista, sua doutrina justicialista era igualmente oposta ao capitalismo. O justicialismo deu aos trabalhadores argentinos um enorme poder de controle na administração das empresas para as quais eles trabalhavam, e como acionistas eles recebiam uma parcela maior da riqueza que eles ajudavam a criar. Ao mesmo tempo, uma nova iniciativa de construção garantia que as escolas modernas e clínicas médicas fossem acessíveis para todos, e os vastos projetos habitacionais de baixa renda da Argentina deram lares para mais pessoas por ano do que qualquer outro país no mundo.

As reformas ambiciosas do general Juan Perón e sua esposa Evita não tiveram aprovação universal. Proprietários de terras e fábricas (e seus filhos oficiais nas Forças Armadas) entraram em aliança aberta com o governo americano projetada para causar a derrocada da administração peronista. O embaixador americano à Argentina, Spruille Braden, manteve uma campanha de hostilidade impiedosa ao regime seguindo a diretriz do Departamento de Estado dos EUA.

A oportunidade sorriu para os antiperonistas em 1955 após o governo argentino aprovar leis dando aos filhos ilegítimos os mesmos direitos que os filhos legítimos e insistir que a Igreja Católica pagasse impostos. O Vaticano respondeu com a excomunhão imediata de Perón. Isso enfureceu muitos descamisados e nas revoltas que se seguiram a Catedral de Buenos Aires e doze outras igrejas foram incendiadas. Perón ficou horrorizado com esse exagero.

A hora da espada veio em setembro de 1955. O exército em Córdoba entrou em revolta e a marinha bombardeou a capital, resultando na morte de 350 civis inocentes. A CGT pediu por uma milícia de trabalhadores armados para proteger Perón e a revolução sindicalista: a nação estava à beira da guerra civil. Em 20 de setembro, Perón, que apesar de seu estilo político agressivo não gostava de violência e do uso da força, decidiu poupar a nação de um banho de sangue inaudito. Ele foi para casa na Casa Rosada, colocou sua escova de dente e navalha em uma sacola e foi para o exílio, na Espanha, pelos próximos 18 anos.

Durante este tempo, Perón pode ter estado fora do governo, mas ele certamente não estava fora da arena política. Ele continuou a ser considerado o líder espiritual do Partido Justicialista e manteve a lealdade total da CGT. Uma grande parte de cada dia no exílio era passada recebendo funcionários do partido, discutindo estratégia política e controlando as facções conflitantes dentro do Movimento Peronista. A mais conhecida tática de Perón era sempre concordar absolutamente com a perspectiva de cada pessoa, e então ir em frente e fazer o que ele pretendia originalmente.

A Argentina sem Perón se tornou virtualmente ingovernável: líderes políticos e militares vieram e foram embora tão regularmente quanto as estações. Concessões conquistadas pelo trabalhador foram se erodindo e a insatisfação era ampla.

Em 1973, uma eleição foi realizada na Argentina na qual todos os partidos eram livres para participar (apesar de Perón não ter permissão para se fazer presente). Apesar de sua ausência de 18 anos, o Partido Justicialista de Perón emergiu como claro vencedor e seu candidato presidencial, Hector Campora, foi empossado em 25 de maio.

O primeiro ato de Campora foi aprovar leis aumentando todos os salários. Então, ele pegou um avião para Madri para escoltar Perón de volta à Argentina e sua terceira presidência.

O Retorno do General do Povo

Em junho de 1973, o Generalíssimo Franco se encontrou com Perón pela primeira e única vez para se despedir dele no Aeroporto de Madri. Dentro do avião com Perón e Campora estava uma comitiva de 150 pessoas. Essas inclíam peronistas veteranos, funcionários importantes do partido da época, dois políticos não-peronistas, um boxeador, um cantor de tango, uma modelo, um diretor de cinema, um historiador, um poeta, a terceira esposa de Perón, Isabella e seu guarda-costas croata. O corpo embalsamado de Evita também estava junto.

Em Buenos Aires, uma multidão de 1 milhão e meio de pessoas se reuniu no Aeroporto de Ezeiza, nas estradas contíguas e em cada ponto alto para saudar o retorno de seu campeão, foi a maior reunião política a céu aberto na história registrada. A multidão estava em um ânimo festivo: o sol raiou, bandas tocaram, havia cantoria e danças, um retrato de 30 metros de Perón foi erguido e vendedores vendiam cachorros quentes e limonada gelada. Então as coisas começaram a dar errado.

Dentro do Partido Justicialista havia dois movimentos juvenis: a "Juventude Peronista", de esquerda, e a "Juventude Peronista Sindical", de direita, entre os quais não havia amizade. Eles começaram a provocar um ao outro, um lado cantou "Perón, Evita, a Pátria Socialista", e o outro respondeu com "Perón, Evita, a Pátria Peronista". A minúscula diferença em palavras era demais para que suportassem e o contronto começou entre jovens peronistas fanáticos, a maioria dos quais nem havia nascido quando Perón havia governado pela última vez.

Então, armas apareceram dos dois lados e o tiroteio começou. Subitamente, atiradores de elite de outras facções peronistas se uniram à batalha objetivando eliminar seus próprios rivais odiados. A polícia tentou restaurar a ordem, corpos caíram de árvores e em meio ao "Massacre de Ezeiza", centenas de pombas brancas reservadas para a cerimônia de saudação foram soltas acidentalmente. Apoiadores segurando bandeiras declarando "Perón ou Morte" soltaram suas placas e correram por suas vidas. Até hoje, ninguém sabe exatamente quantos morreram, mas certamente foram centenas.

O avião de Perón teve que ser desviado para um aeroporto militar. Suprimindo sua raiva, ele dirigiu direto para a Casa Rosada desde onde ele aparecia de hora em hora para receber a adulação das massas imensas. Em sua primeira transmissão à nação, ele denunciou os "promotores de violência e de doutrinas estrangeiras" que haviam tentado infiltrar o Partido Justicialista. Ele então expôs sua "Visão Dourada" para a nação, que era apoiada pelo Partido Radical, o segundo maior da Argentina. Três meses depois, ele foi empossado para seu terceiro mandato como presidente, com sua esposa Isabella, uma ex-dançarina de tango, como vice-presidente.

O Terceiro Mandato de Perón

Pelo resto de 1973 e a primeira metade de 1974, Perón começou a reestabelecer a sua doutrina justicialista. Mas seu tempo foi cada vez mais tomado pela restruturação do partido para livrá-lo da luta sectária entre os rapazes da esquerda e da direita. Um grande acordo comercial com Cuba e au tonomia para universidades rebeldes eram sinais de que Perón não havia perdido sua habilidade de surpreender os argentinos com novas iniciativas. Porém, sua maior surpresa ocorreu em 1 de julho de 1974, quando ele subitamente morreu de um infarto fulminante aos 78 anos de idade.

Isabella Perón assumiu como presidente, mas estava sob fortei nfluência da figura raputinesca de López Rega. Mesmo apoiada por seus poderes místicos, Isabella não podia se comparar a Evita ou Juan Perón. Em março de 1976, ela foi deposta por uma junta militar que imediatamente iniciou uma selvagem campanha de sangria que ignorou todas as formalidades judiciais. Nenhuma distinção foi feita entre terroristas e peronistas, e mais de 9 mil argentinos foram assassinados ou desapareceram.

Mas o peronismo sobreviveu até mesmo a isso. Novamente, o Partido Justicialista começou a recuperar ímpeto até que em 1989 seu candidato Carlos Menem foi eleito presidente: um posto mantido por 10 anos.

Como a história se lembrará de Juan Perón? Seu biógrafo definitivo, Joseph Page, dá sua resposta: "Ele legitimou as aspirações de milhões de argentinos anteriormente excluídos da vida civil. Ele deu aos trabalhadores uma auto-consciência duradoura...trouxe bem-estar para os pobres, e permitiu às mulheres ver nos papeis que ele atribuiu a sua segunda e terceira esposas novas possibilidades de realização. Neste sentido, ele se afastou do enraizado machismo de seus compatriotas.

"Ele era também, no fundo, um pacifista...uma curiosa contradição na essência de sua natureza. Ele rejeitava patentemente a violência como instrumento de Estado...é inegável que o homem outrora considerado o Hitler da América do Sul jamais levaria seu país a uma guerra".

"Harry Morley" voa para a Argentina

Em 31 de outubro de 1950, o voo BA351 da BOAC levantou do Aeroporto de Londres e chegou a Buenos Aires às 19:40 do dia seguinte. Segundo a lista de passageiros, havia um "Harry Morley" no avião.

Porém, seu nome não enganou o MI5. Tão cedo quanto 9 de outubro eles haviam pego a partir de um grampo telefônico no QG do Movimento da União que Alf Flockhart, um dos secretários políticos de Oswald Mosley, estava marcando um bilhete aéreo para a Argentina para ele, e que "Harry Morley" estaria na lista de passageiros.

O MI5 imediatamente enviou uma lista com 8 dos principais apoiadores de Mosley na Argentina e em outros lugares da América do Sul para o SIS e em 26 de outubro informou o Ministério de Relações Exteriores.

Ao chegar a Buenos Aires, Mosley foi entrevistado e disse que sua visita estava somente ligada à venda de livros na Argentina e no Chile e que ele estaria ficando com amigos. Uma mensagem enviada pela embaixada britânica a Londres em 4 de novembro comentava que a visita de Mosley havia sido bastante divulgada na imprensa argentina que afirmava que ela havia sido instigada por membros do governo argentino. Porém, a embaixada acreditava que isso não parecia ser o caso, não havia qualquer indicação de algum interesse governamental argentino e depois a imprensa passou a dizer que ele era um visitante inconveniente.

Em 17 de novembro, o señor Pombo da embaixada argentina em Londres foi levado para jantar por alguém do Ministério de Relações Exteriores e ele "confirmou" que Mosley estava apenas se encontrando com certos alemães. Depois, o MI5 reportou que Mosley voltou para a Grã-Bretanha no Aeroporto Hurn em 26 de novembro, tendo passado 2 dias na Espanha.

A visita de Mosley de 1 mês na Argentina foi mencionada por muitos jornais britânicos e americanos, incluindo o semanário "União", do Movimento da União. Nenhum deles indicava que Mosley estaria indo se encontrar com o presidente Juan Perón.

Mas apesar de todos os seus grampos e interceptações, o MI5 e o Ministério de Relações Exteriores foram enganados. Mosley realmente se encontrou com Perón que, se tivesse sido sabido, poderia ter seriamente atrapalhado as negociações argentinas por preços de carne mais elevados com o governo trabalhista britânico, que considerava Mosley seu inimigo mortal. Subitamente, a "garantia" do señor Pombo e a rápida mudança de tom da imprensa argentina pode ser vista como um plano orquestrado de desinformação do governo Perón.

Mas como sabemos que Mosley e Perón se encontraram? E qual foi o motivo?

O Acordo Mosley-Perón

O primeiro indício do encontro veio três meses após a queda de Perón em 1955. O "European Stars and Stripes", o jornal do exército americano de ocupação na Europa, reportou que investigadores da nova junta argentina haviam atacado a casa de Hans Ulrich Rudel, que havia acabado de fugir para o Paraguai.

Rudel era o antigo ás da Luftwaffe que sozinho destruiu 532 tanques soviéticos, 2 cruzadores e um navio de batalha. Após a guerra, ele havia se mudado para a Argentina, trabalhando como piloto de testes da Fábrica de Aviões Militares de Córdoba, junto do ex-comandante Adolph Galland.

Entre os doucmentos de Rudel deixados para trás estavam cartas sobre os encontros realizados na Argentina alguns anos antes entre Rudel e Perón (indicando concordância completa em questões políticas), Rudel e Oswald Mosley, e Oswald Mosley e Perón. Porém, como o "European Stars and Stripes" não era muito lido pelos britânicos, a revelação passou despercebida.

Mosley não mencionou o encontro com Perón em sua autobiografia 'Minha Vida'. Mas na biografia de Robert Skidelsky, 'Mosley', publicada em 1975, o ano da morte de Perón, há uma breve menção confirmando que eles se encontraram. O falecimento do presidente havia liberado Mosley do voto de segredo que ele havia observado estritamente mesmo que a razão para ele houvesse passado há muito tempo.

Mas o que Mosley e Perón discutiram em seu encontro na Casa Rosada em 1950, sem o conhecimento do MI5 e do Ministério de Relações Exteriores da Grã-Bretanha?

Hans Ulrich Rudel contou a história de suas incríveis experiências de guerra em "Piloto Stuka", uma biografia best-seller distribuída pela Editora Euphorian do Mosley. Os investigadores do governo da junta, como reportado no "European Stars and Stripes", notaram que em seu encontro Mosley havia pedido a Perón permissão para que Rudel visitasse a Europa para promover seu livro que isso havia sido acordado. Mas na mente de Mosley havia uma questão muito mais importante na agenda.

Desde a guerra ele havia defendido uma Europa Unida autossuficiente contendo toda a capacidade industrial, energética, material e alimentar necessária para proteger sua economia do trabalho barato do Terceiro Mundo. Para uma autarquia completa, isso também incluiria a "Europa Ultramarina" para englobar o Canadá, a Australásia e parte da África do Sul. Mas isso não era tudo, Mosley visualizava a inclusão dos países pró-europeus da América Latina em uma única "Europa Nação". Para começar, isso incluiria Argentina, Uruguai e Chile.

Eu lembro de suas palavras sobre o tema faladas há 50 anos para uma audiência popular na Prefeitura de Kensington: "E é lá na América do Sul, também, que apenas duas coisas realmente importam. Uma é o comunismo, e a outra é nossa grande ideia europeia!" Os aplausos que se seguiram devem ter chegado até o Royal Albert Hall..

A busca de Perón por unidade política com outros países da América do Sul começou logo no primeiro ano de sua segunda presidência, quando ele defende publicamente a união econômica entre Argentina, Chile e Brasil. Ele considerava uma confederação de Estados latinos como a única maneira de conseguir um desenvolvimento livre da dominação pelo imperialismo capitalista ou comunista. Em uma visita ao Chile em 1953 ele foi ainda mais longe: "Eu acredito que uma unidade chileno-argentina, uma unidade completa e não uma feita pela metade, deve se tornar total e imediata. A simples unidade econômica não será suficientemente forte".

Como primeiro passo para uma América do Sul Unida, acordos sobre os princípios da união foram assinados por Perón com o Chile, o Equador, a Nicarágua e o Paraguai, este até o tornou cidadão honorário. O presidente Vargas do Brasil, admirador de Perón, também se declarou em favor da unidade continental. Como sabemos, a união política permaneceria um sonho: golpes e crises internas logo ocuparam as energias de seus líderes. Mas como o biógrafo de Perón Joseph Page resumiu: "Perón foi o único líder latino a promover vigorosamente a união e ele o fez até o dia de sua morte".

Perón estava tentando fazer pela América do Sul o que Mosley queria fazer pela Europa. Isso certamente teria sido o principal tópico de discussão no encontro secreto entre Perón e Mosley: um no qual eles estariam em completo acordo.

Os dois homens continuaram a se manter em contato pelos anos seguintes, ainda que não esteja confirmado que eles tenham se encontrado novamente. Mas mesmo enquanto escrevo essas palavras, uma carta assinada por Perón no exílio dirigida ao escritório de Mosley apareceu na internet onde se lê: "Eu vejo agora que temos amigos em comum aos quais dou muito valor, algo que me faz reciprocar ainda com mais força as suas expressões de solidariedade... eu ofereço meus préstimos e um forte abraço". - assinado Juan Perón, Hotel Pinar, Málaga, Espanha, 20 de fevereiro de 1960.

Oswald Mosley e Juan Perón vieram de origens inteiramente diferentes, mas eles partilhavam de muitas crenças fundamentais. Ambos defendiam a "Terceira Posição" em economia. Ambos queriam unificar seus continentes e vislumbravam que a civilização, valores e cultura europeus passariam por um renascimento histórico. E ainda que, quando cercados, lutassem como leões, ambos iriam até os limites consistentes com a honra para evidar derramamento de sangue e guerra.

Mais do que nunca tais homens são necessários em uma era na qual pigmeus políticos disputam para descer a níveis ainda mais baixos de corrupção, covardia e mediocridade.


07/06/2016

Luciano Lanna e Filippo Rossi - Fascistas de Esquerda

por Luciano Lanna e Filippo Rossi

Tradução por Lucas Rodrigues




"A direita é censura, reação, carolice. E se tenho uma afiliação cultural é mais ao fascismo que à direita, que me dá nojo [...]. O fascismo que conheci na minha família é aquele libertário, alegre, generoso. Penso no fascismo revolucionário do início e do fim, aquele que não conserva mas muda, aquele socialista e socializante...".
Idéias claras e ouvidas do rapaz de vinte e oito anos Nicolo Accame, jornalista do "Secolo d'Italia", que foi entrevistado, junto com seu pai Giano, em Março de 1996, por Stefano di Michele: dois fascistas, pai e filho. Idéias claras e ouvidas que afundam em um ambiente existencial e cultural difuso e enraizado: o dos assim chamados "fascistas de esquerda".
Já Alberto Giovannini, jornalista de velha idade, nascido em 1912, quando foi pressionado a se definir, teve de recorrer àquele aparente oxímoro: "Eu sou fascista ao meu modo. Era, o nosso, um fascismo de esquerda". E acrescentava: "Não podia não possuir certa fidelidade e reconhecimento àquele regime, em que eu, que era ninguém, filho de gente pobre, de operários, comecei a trabalhar como garoto de entregas e cheguei à direção de um jornal. O fascismo me tinha dado a possibilidade de avançar socialmente. Não esqueci isso."
E quando, no meio dos anos 80, durante a apresentação de uma reedição do "Scrittore Italiano" de Berto Ricci, os dirigentes do MSI Pinuccio Tatarella e Beppe Niccolai também foram pressionados a se definir, as duas respostas foram antitéticas. Mais que "de direita", de "centro-direita" se definiu Tatarella, reivindicando a tradição política que nos anos 50 tinha visto muitas cidades do Sul administradas de coalizões compostas do MSI, da direita liberal e monárquica e da Democracia Cristã. Do lado oposto, seguramente "não de direita", "antes de esquerda", se declarou Niccolai, reivindicando uma tradição toda outra. Uma tradição que afundava suas raízes no Mussolini jacobino, no socialismo do "Resorgimento" de Pisacane, no sindicalismo revolucionário de Sorel e Corridoni, nas vanguardas artísticas do início do Novecentos, no fascismo de San Sepolcro de 1919, na interpretação gentiliana do marxismo...
Se de fato, historicamente, o fascismo nasce com Mussolini e "Il Popolo d'Italia" entre 1914 e 1919 a partir de uma cisão do partido socialista, o filósofo católico Augusto del Noce faz retroagir sua gênese filosófica a 1899, com a publicação do ensaio de Giovanni Gentile sobre "A filosofia de Marx", que foi considerado por Lenin - no "Dicionário Enciclopédico Russo Granat", de 1915 - um dos estudos mais interessantes e profundos sobre a essência teórica do pensador de Tréveris. Do marxismo, Gentile rejeitava o materialismo oitocentista mas abraçava com entusiasmo a dimensão ultramoderna da "filosofia da práxis", que pretende não só interpretar o mundo, mas mudá-lo. Seguindo a interpretação de del Noce, portanto, o fascismo não seria de fato uma negação do marxismo, mas antes uma "revisão" dele, que reinterpreta a práxis como espiritualidade. O fascismo se projeta, portanto, como uma revolução "posterior" no que diz respeito à marxista-leninista. Por outro lado, tornado filósofo oficial do fascismo, Gentile republicou seu livro sobre Marx em 1937, em plenos "anos do consenso". E quando, em 24 de Junho de 1943, pronunciou em Campidoglio o discurso aos italianos para exortá-los a resistir aos anglo-americanos, se dirigiu expressamente aos ambientes da esquerda apresentando o fascismo como "uma ordem de justiça fundada sobre o princípio de que o único valor é o Trabalho". E precisou: "quem fala hoje de comunismo na Itália é um corporativista impaciente". O próprio Lenin, de resto, dirigindo-se ao comunista Nicola Bombacci tinha dito: "Na Itália, havia apenas um socialista capaz de fazer a Revolução: Benito Mussolini".
Existem muitas coisas na trajetória do fascismo de esquerda: o  percurso político do próprio Bombacci, comunista que acabou em Salò e que teve seu corpo exibido com o de Mussolini em Piazzale Loreto; o bando rebelde dos jovens intelectuais agregados em torno do ex-anarquista de Florença Berto Ricci e da sua revista "L'Universale"; a longa viagem do fascismo ao comunismo de tantos intelectuais, de Davide Lajolo a Fidia Gambetti, de Felice Chilanti a Ruggerzo Zangrandi, de Elio Vittorini a Vasco Pratolini, de Ottono Rosai a Mino Maccari. Fermentos culturais e contradições que inspiraram o historiador Giuseppe Parlato a dedicar um livro inteiro à assim chamada "esquerda fascista": "Aquela mistura, várias vezes discordante e contraditória, de sentimentos, de posições, de perspectivas e de projetos que se fundavam na convicção de viver no fascismo e através dele uma espécie de ressurreição revolucionária, a primeira verdadeira revolução italiana desde a unificação".
E das várias almas do fascismo, a "esquerda" foi seguramente a mais vivaz. Ancorada no Risorgimento de Mazzini e de Garibaldi, a esquerda fascista procurou encarnar um projeto que nasceu antes do Fascismo e que buscava ultrapassar a própria experiência mussoliniana. E se nos primeiros tempos ela se traduz essencialmente no esquadrismo e no sindicalismo, lá para a metade dos anos 30 - somando-se a isso sobretudo os jovens universitários, os intelectuais e os sindicalistas - se reclamou portadora de um "segundo fascismo", que buscava superar a sociedade burguesa. Não foi por acaso que os vários Bilenchi, Pratolini e todos os jovens intelectuais do assim chamado "fascismo de esquerda" achassem uma figura de referência no fascista anarquista Marcello Gallian, além de em Berto Ricci. "Os livros de Gallian", escrevia Romano Bilenchi no "Il Popolo d'Italia" de 20 de Agosto de 1935, "são documentos...e um documento de um período revolucionário que não se crê completo não terá fim até que toda a revolução seja realizada".
Essa alma de esquerda conviverá durante os vinte anos do regime com outros componentes. E, em que pese o seu projeto ter sido em muitos sentidos "incompleto", marcará sempre o "Ventennio", influindo decisivamente sobre a identidade cultural seja do fascismo, seja do pós-fascismo.
Confessará Bilenchi, que se tornou comunista depois da guerra: "Permaneci muito ligado a essas idéias, digamos assim, socialistas...O programa do fascismo me conquistou, mais à esquerda, ao menos nas suas palavras e ao menos no início, mais do que os outros...depois conheci Berto Ricci, uma pessoa séria, honesta e simpática. Era uma anarquista, filosoviético, e entrou no partido fascista convencido de estar participando de uma revolução proletária".
De resto, já em 1920, Marinetti tinha escrito: "Gostei de saber que os futuristas russos são todos bolcheviques...As cidades russas, para a última festa de Maio, foram decoradas por pintores futuristas. Os trens de Lenin foram pintados por fora com formas coloridas dinâmicas muito parecidas com as de Boccioni, Balla e Russolo. Isso honra Lênin e nos alegra como uma vitória nossa".
E ficam ainda os atos que em 16 de Novembro de 1922, com uma intervenção na Câmara dos Deputados de Mussolini, presidente do Conselho Fascista, fizeram com que a Itália fosse o primeiro país ocidental a declarar-se disponível ao reconhecimento internacional da União Soviética. Uma abertura que, ao menos até a guerra civil da Espanha, nunca será menor. No dia 29 de Junho de 1929, Italo Balbo, em uma de suas célebres viagens aéreas a partir da Itália, chegou em Odessa na URSS, e ali foi recebido com guardas de honra. E no 4 de Dezembro de 1933, Mussolini recebeu oficialmente o Ministro do Exterior Russo, Maxim Litvinov: havia três meses os dois países tinham assinado um pacto de amizade e a ocasião reforçou, em momentos posteriores, as boas relações
Eram esses os anos em que o filósofo Ugo Spirito chegava a teorizar - no Encontro de Estudos Corporativos de Ferrara de 1932 - a "corporação proprietária" que previa de fato a abolição da propriedade privada, e em que pululavam as publicações abertamente filosoviéticas, entre as quais um livro de Renzo Bertoni, que, recém-tornado de uma longa estada na União Soviética, publicava em 1934 uma obra intitulada "O Triunfo do fascismo na URSS"; na sua capa, um Stalin com a mão aberta, com os dizeres: "Stalin saúda romanamente a massa".
Depois, a guerra na Espanha, a Segunda Guerra Mundial e a República de Salò. E exatamente essa última experiência gera fortes discussões entre Mussolini e Hitler. Para o ditador alemão, a República devia se chamar "República Fascista Italiana". Mussolini, por sua vez, sem mais qualquer coisa que o ligasse com a monarquia e os conservadores, teria preferido "República Socialista Italiana", voltando às sugestões de Sansepolcro. Mas Hitler não queria ouvir falar daquele adjetivo que "fedia" a subversão e a marxismo. E ao final chegaram a um consenso com "República Social Italiana". E, ainda que reduzida a "social", a palavra socialista voltava ao léxico dos fascistas. Tão forte foi o efeito de emoção que tal ato gerou no socialista de primeira hora e ex-comunista Nicola Bombacci - aquele que havia feito os comunistas italianos adotarem a foice e o martelo - que o fez reatar relações com Mussolini. No dia 11 de Outubro de 1943 escreve: "Duce, estou hoje mais do que ontem convosco. A torpe traição rei-Badoglio, que jogou a Itália na ruína e na desonra, liberou o senhor de todos os componentes plutocráticos e monárquicos de 1922. Hoje o caminho está livre e em minha opinião já nos permite chegar até o ponto socialista".
Em um dos artigos escritos pouco antes de ser assassinado pelos "partigiani", o jornalista Enzo Pezzato - redator-chefe em Salò de "Repubblica Fascista" - escreveu: "O Duce não chamou a República de 'Social' por brincadeira: os nossos programas são decisivamente revolucionários, as nossas idéias pertencem ao que seria chamado em um regime democrático de idéias de 'esquerda'".
E nos dias do crepúsculo de Salò, Mussolini confidenciará ao jornalista socialista Carlo Silvestri: "O grande drama da minha vida se produziu quando não tive mais força de apelar à colaboração dos socialistas e de resistir ao assalto dos falsos corporativistas. Esses últimos agiam na verdade como procuradores do capitalismo...tudo aquilo que aconteceu depois foi a consequência do cadáver de Matteotti que no dia 10 de Junho de 1924 jogaram entre os socialistas e a minha pessoa para impedir o encontro que teria dado todo um outro destino à política nacional".
Sobre a experiência da RSI, Enrico Landolfi escreveu que não foi algo monolítico: "Foi um prisma com muitas faces, um fenômeno pluralístico. Tanto isso é verdade que nela estava presente quase todo o espectro doutrinário e político". Landolfi sublinha a  presença em seu interior de expoentes até mesmo da esquerda anti-fascista dispostos a colaborar pela implementação do assim chamado "Manifesto de Verona": além de Bombacci e Carlo Silvestri, Edmondo Cione, Germinale Concordia, Pulvio Zocchi, Walter Mocchi e Sigfrido Barghini. Além deles, existia em Salò uma vasta "agremiação mais consequentemente e coerentemente revolucionária, socializante, popular-nacional, libertária. Aberta, além de tudo, e mesmo simpática, ao diálogo com o anti-fascismo, inclinada à mais ampla democratização da República, decidida a resistir às interferências e rapinas nazistas, inequivocavemente anti-burguesa e anti-capitalista". E também por isso, Landolfi deu o título de "Adeus, Salò Vermelha" ao seu livro sobre a RSI. Aquela república vermelha que Bombacci saldou pela última vez, antes que os partigiani o fuzilassem, com as palavras: "Viva Mussolini! Viva o socialismo!".
No imediato pós-guerra o tema da rehabilitação política, ou ao menos eleitoral, de quem foi fascista durante o Ventennio e na RSI interessará, mais ou menos abertamente, até ao Partido Socialista Italiano e ao Partido Comunista Italiano, partidos em que encontraram abrigo muitos fascistas de esquerda. Assim, em Agosto de 1947, Palmiro Togliatti, que um ano antes tinha concedido anistia aos fascistas na qualidade de Ministro da Justiça e da Graça, escrevia no jornal comunista "La Repubblica d'Italia": "Não escondemos as nossas simpatias por aqueles ex-fascistas, jovens ou adultos, que sob o regime passado pertenciam àquela corrente em que se sentia a ânsia pela abertura de novos horizontes sociais...Nós reconhecemos aos ex-fascistas de esquerda o direito de se reunir e de se exprimir abertamente conservando a própria autonomia". 
E também o líder socialista Pietro Nenni, entrevistado em "Paese Sera" no primeiro de Janeiro de 1955, legitimava os fascistas de esquerda: "Para nós a direita exprime somente instintos anti-sociais, de conservação e reação. Típico disso é o caso dos fascistas que, para se inserir na política reacionária americana, não pensaram duas vezes antes de apunhalar de novo seu líder e renegar o único elemento respeitável da sua tradição, vale dizer, a oposição às assim chamadas plutocracias". E o mesmo Nenni, que abriu as páginas do seu "Avanti" ao ex-diretor fascista do "La Stampa", de Turim, Concetto Pettinato às vesperas ,das eleições de 1953, já no imediato pós-guerra tinha ajudado no nascimento de uma revista - "Rosso e Nero", "vermelho e negro" - com a qual o fascista de esquerda Alberto Giovannini tentava conciliar as teses fascistas da "revolução incompleta" com as teses socialistas da "revolução que não ocorreu".
Nesse clima, um grupo de fascistas de esquerda se agrupará em torno da revista quinzenal "Il Pensiero Nazionale", dirigido pelo escritor e jornalista pró-republicano Stanis Ruinas. Foram definidos como "fascistas-comunitas", "comuno-fascistas", "camisas negras de Togliatti" e "fascistas vermelhos", essa última uma definição que depois de algumas exitações acabaram por aceitar. Mas o vermelho desses fascistas não foi necessariamente o do PCI, mas um vermelho mais articulado, mais complexo, mais variado. Tanto que, principalmente nos seus componentes mais inclinados a favorecer a linha da Direção do PCI (localizada na Rua Botteghe Oscure), surgiu uma divisão entre aqueles que queriam entrar - e posteriormente entraram de fato - no PCI e os outros que preferiram permanecer independentes. Depois de 1953, o grupo do "Il Pensiero Nazionale" se aproximará dos socialistas, dos social-democratas e da esquerda católica, acabando por gravitar na órbita do presidente da Eni, Enrico Mattei, e do seu nacionalismo mediterrânico e democrático. Mas não faltaram, mesmo aí, relações e diálogos com os exponentes do MSI (o partido herdeiro do fascismo) ligados ao fascismo de esquerda.
Líder reconhecido da esquerda do MSI das origens foi indiscutivelmente Giorgio Pini: jornalista próximo a Mussolini antes e durante a RSI, será um assíduo colaborador da revista "Il Pensiero Nazionale" a partir de 1954, depois que, em Abril de 1952, abandonar o MSI e, em 1953, se interromper a ligação não bem vista por ele entre a revista e o PCI. Mas, na realidade, todos os anos 50 registraram contatos e debates, mesmo públicos, entre jovens comunistas e os jovens dirigentes do MSI, sobretudo nos anos do debate sobre o ingresso da Itália na OTAN. E em 1958, o próprio Palmiro Togliatti chegou a defender a assim chamada "Operação Milazzo" que, na Sicília, concretizou a aliança administrativa entre o MSI e o PCI.
Em uma intervenção na Câmara, no dia 9 de Dezembro, o líder do PCI disse: "As convergências fizeram com que tivessem lugar, também aqui, as reiteradas e bestas brincadeirinhas sobre o comunista do PCI e o fascista do MSI, que apertam as mãos, se abraçam e tudo o mais. Se trata de um fenômeno profundo que deve ser reconhecido e analisado em todo o seu valor, ao qual daremos o nosso contributo para que passos adiante sejam dados." De outro lado, mesmo depois da saída de Giorgio Pini do MSI - ainda distante de se tornar o "partido da direita nacional" -, no interior do partido permaneceu e foi sempre ativa uma vasta e articulada presença de "fascistas de esquerda":  Ernesto Massi, Bruno Spampanato, Diano Brocchi, Giorgio Bacchi, Roberto Mieville, Domenico Leccisi, Giuseppe Landi, Ugo Clavenzani e Beppe Niccolai...E o próprio Giorgio Almirante, antes de virar secretário do Partido e de lançar a "grande direita", foi por muitos anos um expoente central da esquerda do MSI.
Ernesto Massi, grande estudioso de geopolítica, professor na Universidade Católica de Milão e vice-secretário nacional do MSI de 1948 a 1952, saiu do partido em 1957 para tentar experimentos políticos autônomos. Até 1965 anima como Giorgio Pini um "Comitê de iniciativa pela Esquerda Nacional". E só depois da falência do "Partido Nacional do Trabalho" - o qual ainda em 1958 se apresenta às eleições políticas em cinco regiões - e de se exaurir, em 1963, a sua revista "Nazionale Sociale", voltará a se aproximar ao MSI através do Instituto de Estudos Corporativos, em 1972.
Em 1963, enquanto se acabava a experiência da "Nazione Sociale", nascia em Roma "L'Orologio", dirigido por Luciano Lucci Chiarissi, uma revista e um laboratório que repunha a tradição do "fascismo de esquerda" em novos termos, de maneira muito atenta à evolução dos cenários italianos e internacionais. Chiarissi, nascido em Ancona em 1924, foi voluntário em Salò, militou no imediato pós-guerra no movimento clandestino FAR ("Fasci di Azione Rivoluzionaria"), e sempre se sentiu pertencente a uma "esquerda nacional". "L'Orologio" tentava sair do caminho do "rancor eterno" e do nostalgismo fechado em si mesmo, contestando não só o MSI micheliano, mas também grupos extraparlamentares como o "Ordine Nuovo" e "Avanguardia Nazionale". Explicava Lucci Chiarissi: "Aníbal não está às portas e, de qualquer forma, não estaria por culpa da centro-esquerda". E "L'Orologio", que tinha lançado o tema da reapropriação das "chaves de casa", apoiou De Gaulle contra o Pacto Atlântico e na Guerra dos Seis Dias ficou ao lado dos países árabes contra o imperialismo israelense. Segundo Giuseppe Parlato, "[...] no capitalismo e no imperialismo americano "L'Orologio" encontrou um perigo maior à cultura e a à política italiana que no soviético [...] e diferentemente de todos os outros jornais neofascistas, "L'Orologio" assumiu imediatamente uma posição claramente a favor dos vietnamitas e da sua luta pela independência".
São os anos nos quais ao lado - e muitas vezes de costas viradas - de tantos grupos extraparlamentares de direita, surgem também grupos extraparlamentares inspirados no "fascismo de esquerda". Assim, a seção italiana da Jovem Europa de Jean Thiriart intitulava um documento fiorentino seu de 1968 como "Por um  socialismo europeu". E assim, em 1967, nascia a "Constituinte Nacional Revolucionária", fundada por Giacomo de Sario: nascido em 1927, ex-secretário da federação jovem da social-democracia e ex-dirigente da Giovane Italia, um grupo juvenil ligado ao MSI. Com um símbolo vermelho e negro, "vermelho pela socialidade, negro pela nação", esse movimento - entre os quais os expoentes jovens de relevo estavam Massimo Brutti e Massimo Magliaro, o primeiro futuro dirigente do PCI e depois dos DS, o outro que acabará virando chefe das relações públicas de Almirante e depois jornalista da RAI - se fazia conhecer através de um periódico: "Forza Uomo", semanário de luta com redações em Roma, Milão, Varese e Brindisi. O primeiro número saiu em 10 de Agosto de 1969. Entre as suas referências culturais estavam Mazzini e Pisacane, Corridoni e Gentile, Mussolini e os futuristas.
No bojo da mesma tradição se inseria a "Federação  Nacional de Combatentes da RSI", da qual em 1970 vira presidente Giorgio Pini. No seu discurso de posse, Pini condenava a atitude dos fascistas que "debandam para a direita conservadora e autoritária, totalitária, em conúbio híbrido com os monarquistas e com os grupos religiosos mais reacionários", convidando também a que se rejeitasse "o fanático ocidentalismo de direita que chegava à servil exaltação de Nixon, o bombardeador do Vietnam", e condenando "todo apoio aos regimes militares e liberticidas dos coronéis gregos, do general Franco, sacrificador da nobre Falange de José Antonio Primo de Rivera, do regime obtusamente conservador, classista e colonialista de Lisboa, dos racistas da África do Sul e da Rodésia". Naqueles anos a Federação publicava em Roma uma série de periódicos - o quinzenal "Fnc-RSI notizie", o mensal "Corrispondenza Repubblicana", o trimestral "Azimut" e o jornal juvenil "Controcorrente" - cujos animadores contavam em suas fileiras com Romolo Giuliana e P.F. Altomonte (sigla quase pseudônima com a qual assinava o artista futurista Principio Federico Altomonte).
Quando explodiu 1968, tanto a "FNC-RSI", quanto a "Forza Uomo" e o "L'Orologio" se alinharam naturalmente com a contestação. "L'Orologio", aliás, apoiou o protesto juvenil também no plano organizativo, dando vida aos "Gruppi dell'Orologio" e fornecendo substância cultural à transformação em sentido revolucionário de alguns ambientes de matriz neofascistas. E depois que se dispersou essa experiência, Luciano Lucci Chiarissi fundará a associação político-cultural "Italia e Civiltà" que, no início dos anos 80, promoverá uma série de encontros públicos sobre seu novo "socialismo tricolor" inspirado pela mudança de postura de Bettino Craxi.
Dentro ou fora do MSI, portanto, uma certa tradição nunca morreu. E aquela que poderemos chamar de a última encarnação de uma "esquerda"  que tem sua origem no universo neofascista terá sua expressão no meio dos anos 70 com pressupostos e pontos de referência inéditos. Dessa vez se tratava de um fenômeno mais generacional e existencial que ideológico em sentido estrito. O primeiro a tomar nota disso, em Janeiro de 1979,  foi Giorgio Galli no "Repubblica", falando de "fascistas em camisa vermelha". Filhos dos anos 1970, esses netos inconscientes de Berto Ricci e Nicolino Bombacci revelavam um percurso paralelo àquele que, em outro plano, estavam realizando os seus contemporâneos da "nova esquerda". E Galli já sublinhava alguns "elementos diversos daqueles típicos" nesse grupo e, em particular, a aspiração a sintonizar e agregar "a revolta anti-sistema dos jovens, dos desocupados, do subproletariado".
Se tratava de um vasto fermento juvenil que vinha a público naqueles anos e que se podia verificar através de publicações como "La Voce della Fogna" e "Linea", nas quais apareciam argumentos e tons inéditos para a precedente atividade pública neofascista. Se introduziam temas novos, como a atenção aos direitos civis e às temáticas ambientalistas. "Nuclear? Dez vezes, NÃO!", se lia no segundo número de "Linea". E de novo sobre as páginas daquela revista apareciam as primeiras verdadeiras pesquisas sobre os "verdes" alemães, a abertura de um debate sobre a liberação da droga, e páginas e páginas sobre os novos desejos e sobre a condição juvenil. Emergia, sobretudo, o quadro de um ambiente caracterizado por uma linha libertária, garantista, anti-estatal, ambientalista, anti-ocidentalista e, quase sempre, com veias regionalistas e anti-proibicionistas.
"A saída é à esquerda", era o título de um artigo de Marco Tarchi que, no terceiro número de "Linea", lançava em grande estilo uma expressão destinada a ter sucesso. Já em 1976, de resto, o mesmo Tarchi foi autor de um documento do "Fronte della Gioventù" toscano em que, examinando as causas de uma derrota eleitoral, convocava a se "buscar uma saída à esquerda": muitos eleitores, segundo a tese de Tarchi, tinham votado no PCI não porque fossem comunistas, "mas porque eram animados por uma ânsia de mudança, e estavam desgostosos do modo de gerir a coisa pública instaurado pela Democracia Cristã e seus aliados".
Essa componente juvenil achará sua identidade sobretudo na experiência dos Campos Hobbits. E, paradoxalmente, entre 1976 e 1982, o MSI terá como indivíduo referência dessa corrente dentro do partido aquele Pino Rauti que nas décadas precedentes, todavia, tinha sido o campeão da ala tradicionalista e de matriz evoliana do neofascismo. Como escreveu o historiador Pasquale Serra, "na segundo metade dos anos 1970, Rauti arruína o esquema do seu raciocínio anterior:  de um lado, de fato, ele escolhe como fonte privilegiada o fascismo italiano (o fascismo da síntese) e não mais o nazismo ou os fascismo "menores", ao contrário do que antes tinha ocorrido nas décadas prévias, e de outro lado filia o fascismo às suas origens de esquerda".
E essas orientações, até os anos 80, se expressarão também em algumas experiências de administração local, em que o MSI governará junto com o PCI e o PSI. Assim em 1987, durante uma tribuna política, Giorgio Almirante se meteu em uma enrascada quando um jornalista lhe pediu explicações sobre o que acontecia em Furci Siculo, um centro do MSI onde o membro do MSI Carmelo Briguglio era o vice-prefeito de uma coalizão vermelha e negra.
A síntese e a soma de toda essa tradição - da "L'Universale" ao "socialismo tricolor", da parada da praça San Sepolcro aos Campos Hobbit - poderia ser representada pela figura política e humana de Beppe Nicolai: fascista de esquerda desde sempre, deputado do MSI por três legislaturas, intelectual, jornalista, homem político e, sobretudo, "homem de caráter", segundo seu mestre Berto Ricci. Nascido em Pisa em 26 de Novembro de 1920, combatente na frente africana, prisioneiro de guerra no "Campo de Criminosos Fascistas" de Hereford no Texas. Bastou voltar à Itália, em 27 de Setembro de 1948, escreve uma carta sobre a laceração de sua geração ao seu velho amigo Romano Bilenchi que naqueles anos, seguindo a estratégia da atenção de Togliatti, se ocupava no "Nuovo Corriere" do diálogo com os fascistas. E a amizade entre Niccolai e Bilenchi durará por toda a vida. Enquanto deputado do MSI, Niccolai não teve qualquer dúvida em elogiar o Vietnam vitorioso sobre o imperialismo americano. Por muitos anos um estreito colaborador de Giorgio Almirante, ele se torna seu principal antagonista nos primeiros anos da década de 80 quando teve a coragem de "se fazer de advogado do diabo" e lançar uma corajosa autocrítica, que pretendia inspirar em todo o partido uma reflexão sincera, sobretudo.
Niccolai solicitava uma reflexão dos erros cometidos nas abordagens com relação à contestação juvenil, com os novos fermentos culturais e, sobretudo, nos temas da política externa. "Beppe", recordou Altero Matteoli, "escavava nos personagens que encontrava na sua cotidiana leitura. E de cada um exaltava a parte que o havia impressionado particularmente. Carlo Pisacane: o fascinava a sua morte, o seu sacrifício, o seu feito. Nicolino Bombacci: Beppe era convicto que o fascismo, para o revolucionário da Romagna, fosse uma revolução a se completar. Berto Ricci: a coragem civil, o caráter. E enfim Itallo Balbo: a morte atingiu Beppe enquanto 'escavava' na vida, na ação e no pensar do grande homem de Ferrara".
No início dos anos 80, Niccolai transforma Berto Ricci em uma verdadeira "bandeira": e faz isso no mesmo momento em que o MSI começa a parecer-lhe sempre mais estreito e a exigência de uma renovação o leva a buscar, no passado, uma referência de grande capacidade de fascinação. E nesse percurso não pôde deixar de se encontrar, naturalmente, com alguns jovens da geração dos "fascistas de camisa vermelha". Em 1984 - e aquela foi a única oposição à liderança de Giorgio Almirante no décimo quarto Congresso do MSI que ocorreu em Roma - se apresentará o documento "Sinais de Vida", que será assinado entusiasticamente pelos componentes juvenis e criativos do partido. Em 1985, por ocasião da crise de Sigonella, Nicollai fez com que o Comitê Central do MSI aprovasse uma ordem do dia de apoio a Craxi, um socialista, em nome do "pulsar" do orgulho nacional. Por outro lado, como explicou depois de sua morte o mesmo Tatarella em uma reunião do Comitê Central do MSI, Niccolai queria fazer do MSI uma espécie de "trabalhismo nacional": era, em suma, um autêntico homem de esquerda e, em perspectiva, sonhava com uma convergência estratégica entre o MSI e a esquerda italiana.

Uma posição minoritária, a de Niccolai: quase herética, fortemente combatida, mas em condições de pensar uma política capaz de colher as ondas longas da história italiana. Em 1987, ficou para história seu discurso ao Congresso de Sorrento. Nele, em nome de Nicolino Bombacci, convidava à recomposição das "cisões socialistas". Naqueles anos, com sua revista "L'Eco della Versilia", será o ponto de referência mais forte para a dissidência interna e as tentativas de diálogo com o exterior. E quando morre em Pisa, em 31 de Outubro de 1989, deixará o testamento ao seu colaborador Antonio Carli. "L'Eco" mudará seu nome transformando-se em "Tabula Rasa". E em volta da publicação se juntarão Gianni Benvenuti e Pietrangelo Buttafuoco, Umberto Croppi e Beniamino Donnici, Vito Errico e Fabio Granata, Luciano Lanna e Peppe Nanni... São a última morada de uma velha tradição. Que por vezes se apresenta com a força de mito. E por vezes, ao contrário, com a instabilidade de uma ilusão ótica. Mas que teve o mérito de não permanecer jamais restrita ao interior de um partido, e muito menos de uma corrente. Sempre emanando energias e iluminações que todavia influíram sobre os percursos políticos e culturais de todo o Fascismo.