29/06/2015

Claudio Mutti - Uso Ocidental do Islamismo

por Claudio Mutti



Em seu famoso livro "O Choque de Civilizações" Samuel Huntington afirma que o verdadeiro problema do mundo ocidental não é o fundamentalismo islâmico, mas o Islã em si. O ideólogo americano explica que o Islã é um inimigo estratégico do Ocidente, porque o confronto entre os dois é um conflito existencial entre valores seculares e valores religiosos, direitos humanos e direito divino, democracia e teocracia. Portanto, enquanto o Islã permanecer o Islã e o Ocidente permanecer o Ocidente, o conflito marcará suas relações mútuas.

A afirmação de Huntington indica não apenas o inimigo estratégico do Ocidente, mas também seu aliado tático, que é o fundamentalismo islâmico. Porém em 1996, quando "O Choque de Civilizações e a Reconstrução da Ordem Mundial" foi publicado, tal aliança tática já existia.

Um ex-embaixador árabe, que já havia servido nos EUA e na Grã-Bretanha, escreve: "É um fato que os EUA tem estipulado alianças com a Fraternidade Muçulmana para expulsar os soviéticos do Afeganistão e que desde então os EUA tem cortejado a corrente islamista, apoiando sua propagação por todo o mundo muçulmano. Em relação aos islamistas, a maioria dos governos ocidentais tem seguido o exemplo de seu principal aliado e tem adotado uma atitude que vai da neutralidade benevolente à conivência resoluta". (1)

O apoio ocidental ao dito integralismo ou fundamentalismo islâmico não começa no Afeganistão em 1979, onde seis meses antes da intervenção soviética a inteligência americana havia começado a ajudar a guerrilha afegã (como o ex-diretor da CIA Robert Gates escreve em seu livro "Desde as Sombras"). Esse apoio data dos anos 50 e 60 do último século quando Grã-Bretanha e EUA, considerando o Egito nasserista como o principal obstáculo para a hegemonia ocidental no Mediterrâneo, prestaram sua ajuda à Fraternidade Muçulmana. Um genro do fundador do movimento, Sa'id Ramadan, que criou um importante centro islâmico em Munique, recebeu dinheiro e instruções do agente da CIA Bob Dreher. Segundo o projeto explicado por Sa'id Ramadan a Arthur Schlesinger Jr.: "Quando o inimigo está armado com uma ideologia totalitária e é servido por regimentos de crentes devotos, aqueles com políticas opostas devem competir ao nível popular de ação e a essência de suas táticas deve ser a contra-fé e a contrarrevolução. Apenas forças populares, genuinamente envolvidas e genuinamente reativas por si próprias, podem confrontar a ameaça infiltradora do comunismo". (2)

A exploração dos movimentos islamistas úteis à estratégia atlantista não terminou com o recuo do Exército Vermelho do Afeganistão. A ajuda fornecida pela administração Clinton ao separatismo bósnio e kosovar, o apoio americano e britânico ao terror wahhabi no Cáucaso, o apadrinhamento dado por Brzezinski a movimentos fundamentalistas na Ásia Central, a intervenção na Líbia e Síria, são episódios de uma guerra travada contra a Eurásia, na qual os norte-americanos e seus aliados se voltaram para a colaboração islamista.

Rachid Ghannouchi, que em 1991 recebeu elogios de George Bush pelo papel desempenhado na mediação do acordo entre facções afegãs, tentou justificar o colaboracionismo islamista, rascunhando uma imagem idílica das relações entre os EUA e o mundo muçulmano. Falando com um jornalista francês que lhe perguntou se ele considerava os norte-americanos mais conciliatórios em relação aos muçulmanos do que os europeus, o fundador da An-Nahda respondeu afirmativamente, porque "um colonialismo americano jamais existiu nos países muçulmanos; nenhuma Cruzada, nenhuma guerra, nenhuma história"; ademais, Ghannouchi relembrou a luta comum de norte-americanos, britânicos e islamistas contra o inimigo bolchevique (3).

A "Nobre Tradição Salafista"

Como um orientalista italiano escreve, a corrente islamista representada por Rachid Ghannouchi "remete à nobre tradição salafista de Muhammad Abduh e possui uma versão mais moderna no movimento da Fraternidade Muçulmana" (4).

Retornar ao Islã puro dos "pios antepassados" (as-salaf as-salihin) e fazer uma varredura da tradição originada pelo Corão e pela Sunnah do Profeta no curso dos séculos: esse é o programa da corrente reformista cujos iniciadores foram Jamal ad-Din al-Afghani (1838-1897) e Muhammad Abduh (1849-1905).

Al-Afghani, que em 1883 fundou a Sociedade Salafiyya, em 1878 havia sido iniciado em uma loja maçônica do rito escocês em Cairo. Ele introduziu seus discípulos na Maçonaria; entre eles, Muhammad Abduh se tornou o Mufti do Egito em 1899 com o consentimento das autoridades britânicas.

"Eles merecem todo encorajamento e apoio que possa ser dado. Eles são os aliados naturais do reformador ocidental" (5). Esse reconhecimento explícito do papel desempenhado pelos reformistas Muhammad Abduh e Si Sayyid Ahmad Khan (1817-1889) foi dado pelo Lorde Cromer (1841-1917), um dos principais arquitetos do imperialismo britânico no mundo muçulmano. De fato, Ahmad Khan afirmou que "a dominação britânica da Índia é a coisa mais bela já vista pelo mundo" e que "não é islamicamente legítimo se rebelar contra os ingleses até que eles respeitem o Islã e os muçulmanos tenham permissão de praticar sua religião", enquanto Muhammad Abduh transmitiu as ideias racionalistas e cientificistas do Ocidente ao milieu islâmico. Segundo Abduh, na civilização moderna não há nada que contraste com o Islã (ele identificava os jinns com os micróbios e estava persuadido de que a teoria evolucionista de Darwin estava contida no Corão); daí a necessidade de revisar e corrigir a doutrina tradicional, submetendo-a ao juízo da razão e saudando as contribuições científicas e culturais do pensamento moderno.

Após Abduh, o líder da corrente salafista foi Rashid Rida, que após o fim do Califado Otomano planejava o nascimento de um "partido islâmico progressista" capaz de criar um novo Califado. Em 1897, Rashid Rida havia fundado uma revista, "Al Manar", que foi difundida no mundo árabe e também por outros lugares; após a morte de Rida, seu editor foi outro representante do reformismo islâmico, Hasan al-Banna (1906-1949), o fundador da Fraternidade Muçulmana.

Enquanto Rashid Rida teorizava o nascimento de um novo e reformado Estado Islâmico, na Península Arábica nascida o Reino Saudita, governado por outra ideologia reformista: o wahhabismo.

A Seita Wahhabi

O nome da seita wahhabi vem do patronímico de Muhammad ibn Abd al-Wahhab (1703-1792), um seguidor da escola hanbali que se tornou entusiástico pelos textos da jurisprudência literalista de Taqi ad-din Ahmad ibn Taymiyya (1263-1328). Um intérprete de símbolos corânicos desde uma perspectiva antropomórfica e inimigo mortal do sufismo, Ibn Taymiyya foi frequentemente acusado de heterodoxia e mereceu a definição de "pai dos movimentos salafistas" (6). Seguindo seus ensinamentos, Ibn Abd al-Wahhab e os wahhabis condenaram como politeísmo idólatra (shirk) a fé na intercessão de profetas e santos, de modo que eles consideravam como "politeístas" (mushrik) também o crente devoto invocando o Santo Profeta ou orando a Deus próximo ao altar de um sheik.

Os wahhabis atacaram as cidades sagradas dos xiitas, saqueando suas mesquitas; após tomarem posse de Meca e Medina, eles demoliram as tumbas dos Companheiros e mártires e até violaram o túmulo do Profeta Maomé; eles baniram as organizações iniciáticas e práticas dos sufis, aboliram a celebração do aniversário do Santo Profeta, extorquiram dinheiro dos peregrinos, suspenderam a Peregrinação à Santa Casa de Deus, emitiram as proibições mais bizarras e estranhas.

Após terem sido derrotados pelo exército otomano, os wahhabis se separaram apoiando duas dinastias rivais (Saud e Rashid) e durante um século suas guerras civis cobriram a Península Arábica com sangue, até que Ibn Saud (1882-1953) modificou a condição da seita. Sendo apoiado pela Grã-Bretanha, que em 1915 havia instaurado relações oficiais com ele e tornado o Sultanato de Najd um "semiprotetorado" (7), Ibn Saud ocupou Meca em 1924 e Medina em 1925. Dessa maneira ele se tornou "Rei do Hedjaz e Najd e suas dependências", segundo o título deferido a ele pela Grã-Bretanha no Tratado de Jeddah em maio de 1927.

"Suas vitórias - disse um famoso orientalista - o tornaram o mais poderoso soberano na Arábia. Seus domínios alcançam o Iraque, Palestina, Síria, o Mar Vermelho e o Golfo Pérsico. Sua personalidade proeminente se impôs pela criação do Ikhwan, i.e. os Irmãos: uma fraternidade de ativistas wahhabis que o inglês Philby chamou de 'uma nova maçonaria'." (8)

O Philby mencionado era Harry St. John Bridger Philby (1885-1960), organizador da revolta árabe anti-otomana, que "na corte de Ibn Saud ocupava o assento do falecido Shakespeare" (9), como escreveu hiperbolicamente outro orientalista. Esse novo Shakespeare expôs seu projeto a Winston Churchill, Jorge V, o Barão Rothschild e Chaim Weizmann: um reino saudita usurpando a custódia dos Lugares Santos (tradicionalmente devido à dinastia hashemita) seria capaz de unificar a Península Arábica e controlar a via marítima Suez-Aden-Mumbai em nome da Inglaterra.

Após a Segunda Guerra Mundia, durante a qual a Arábia Saudita observou uma neutralidade pro-inglesa, o patronato britânico foi gradualmente substituído pelo norte-americano. Em 1 de março de 1945, a bordo do Quincy, Roosevelt teve um encontro histórico com Ibn Saud, que "sempre havia sido grande admirador da América, a qual ele preferia à Inglaterra" (10), como orgulhosamente observou um compatriota do presidente americano. De fato, desde 1933 a monarquia saudita havia entregue a concessão pra exploração de petróleo à Standard Oil Company da Califórnia e desde 1934 a companhia americana Saudi Arabian Mining Syndicate teve o monopólio da escavação e mineração de ouro.

A Fraternidade Muçulmana

Para conter o pan-arabismo nasseriano, o nacional-socialismo ba'athista e - após a revolução islâmica no Irã - a influência xiita, a nova família real de Saud precisava de uma "Internacional" como apoio para sua hegemonia no mundo muçulmano. Assim, a Fraternidade Muçulmana pôs à disposição de Riad sua rede de militantes, que foi fortalecida por financiamento saudita. "Após 1973 rendas melhores derivadas do mercado petrolífero são designadas para a África e para as comunidades muçulmanas no Ocidente, onde um Islã não muito bem estabelecido corre o risco de abrir as portas para a influência iraniana" (11). Porém, a sinergia entre a monarquia wahhabi e o movimento fundado por Hasan al-Banna (1906-1949) está baseada em um fundamento ideológico comum, porque a Fraternidade Muçulmana é "herdeira direta, ainda que nem sempre estritamente fiel, da salafiyyah de Muhammad Abduh" (12) e porta em seu DNA a tendência a aceitar a civilização ocidental moderna, com todas as devidas reservas.

Tariq Ramadan, neto de Hasan al-Banna e representante da intelligentsia reformista muçulmana, interpreta o pensamento do fundador do movimento: "Como todos os reformistas que o precederam, Hasan al-Banna nunca demonizou o ocidente. (...) O Ocidente permitiu à humanidade dar grandes passos desde o Renascimento, com o início de um amplo processo de secularização (uma contribuição positiva, considerando a especialidade da religião cristã e da instituição clerical" (13). O intelectual reformista lembra que seu avô, realizando a atividade de professor escolar, derivou inspiração nas teorias pedagógicas ocidentais mais recentes e reporta uma passagem significativa escrita por ele: "Das escolas ocidentais e seus programas devemos tomar o constante interesse pela educação moderna, seu método de lidar com demandas e a preparação para o aprendizado (...) Nós devemos tirar vantagem de tudo isso, sem timidez: a ciência é um direito de todos" (14).

A tal "Primavera Árabe" provou que a Fraternidade Muçulmana, apoiada pelos EUA na Líbia, Tunísia, Egito e Síria, está disposta a aceitar aqueles pontos ideológicos ocidentais fundamentais que - como Huntington ressaltou - conflitam com o Islã. O partido egípcio "Liberdade e Justiça", nascido da iniciativa da Fraternidade e controlado por ela, apela aos direitos humanos, defende a doutrina democrática, apoia a economia capitalista, não recusa empréstimos das instituições usurocráticas internacionais. O irmão muçulmano tornado presidente egípcio estudou nos EUA, onde foi palestrante assistente na Universidade do Estado da Califórnia; dois de seus filhos são cidadãos americanos. Ele declarou imediatamente que o Egito observará todos os tratados estipulados com outros países (incluindo Israel); ele fez sua primeira visita oficial à Arábia Saudita e declarou sua vontade de fortalecer as relações egípcias com Riad; ele proclamou um "dever ético" de apoiar a oposição armada lutando contra o governo sírio.

Se a tese defendida por Huntington sobre o Islã e o islamismo precisa de uma prova, parece que ela foi dada pela Fraternidade Muçulmana. 

1. Redha Malek, Tradition et revolution. L’enjeu de la modernité en Algérie et dans l’Islam, ANEP, Rouiba (Algeria) 2001, p.218.

2. http://www.american-buddha.com/lit.johnsonamosqueinmunich.12.htm

3. “Les Américains vous semblent-ils plus conciliants que les Européens? — A l’égard de l’islam, oui. Il n’y a pas de passé colonial entre les pays musulmans et l’Amérique, pas de croisades; pas de guerre, pas d’histoire... — Et vous aviez un ennemi commun: le communisme athée, qui a poussé les Américains а vous soutenir... — Sans doute, mais la Grande- Bretagne de Margaret Thatcher était aussi anticommuniste...“ (Tunisie: un leader islamiste veut rentrer, 22/01/2011; http:// plus.lefigaro.fr/article/tunisie-un-leader-islamiste-veut-rentrer-20110122-380767/commentaires).

4. Massimo Campanini, Il pensiero islamico contemporaneo, Il Mulino, Bologna 2005, p. 137.

5. Quoted by Maryam Jameelah, Islam and Modernism, Mohammad Yusuf Khan, Srinagar-Lahore 1975, p. 153.

6. Henry Corbin, Storia della filosofia islamica, Adelphi, Milano 1989, p. 126.

7. Carlo Alfonso Nallino, Raccolta di scritti editi e inediti, Vol.I L’Arabia Sa’udiana, Istituto per l’Oriente, Roma 1939, p. 151.

8. Henri Lammens, L’Islаm. Credenze e istituzioni, Laterza, Bari 1948, p. 158.

9. Giulio Germanus, Sulle orme di Maometto, vol. I, Garzanti, Milano 1946, p. 142.

10. John Van Ess, Incontro con gli Arabi, Garzanti, Milano 1948, p. 108.

11. Alain Chouet, L’association des Frиres Musulmans, http://alain.chouet.free.fr/documents/fmuz2.htm.

12. Massimo Campanini, I Fratelli Musulmani nella seconda guerra mondiale: politica e ideologia, “Nuova rivista storica“,a. LXXVIII, fasc. 3, sett.-dic. 1994, p. 625.

13. Tariq Ramadan, Il riformismo islamico. Un secolo di rinnovamento musulmano, Cittа Aperta, Troina 2004, pp. 350-351.

14. Hassan al-Banna, Hal nusir fi madrasatina wara’ al-gharb, “Al-fath“, Sept. 19th 1929, quoted by Tariq Ramadan, Il riformismo islamico, p. 352.


25/06/2015

Boris Nad - América Mítica

por Boris Nad



Eventos históricos não podemos explicar apenas pelas intenções conscientes de seus protagonistas. Tampouco somente com suas características e traços pessoais, ainda que, é claro, a estrutura psicológicas de atores históricos importantes e sua disposição ideológica ou filosófica não seja insignificante. À parte fatores puramente quantitativos e quantificáveis (econômicos, sociais, etc.), os eventos da história sempre foram influenciados por modos muito mais sutis e delicados de realidade, que não são menos reais qualitativamente, apesar de estarem fora da observação física (tudo isso, aliás, se aplica plenamente às muitas outras esferas de atividade humana, mais ordinárias que a esfera política). Não foi apenas uma vez que alguma ideia "abstrata", um conceito ou um mito selaram o destino de nações ou civilizações inteiras (como os incas, que nos conquistadores espanhóis "reconheciam" deuses brancos). E a ideologia política, acima de tudo, pertence a uma realidade bastante distinta, majoritariamente independente de qualquer indivíduo (de fato, a ideologia é não raro capaz de subjugar plenamente a pessoa, "absorver" qualquer indivíduo concreto).

Em um nível ainda mais profundo, a realidade política está profundamente enraizada (perpetuada) no inconsciente, afundada em arquétipos esquecidos e reprimidos. Porém, a ativação desses arquétipos - usualmente de forma abrupta e inesperada - pode provocar intrusões ígneas imprevistas às profundidades da energia oculta do inconsciente coletivo, tanto por indivíduos como por nações inteiras, especialmente se esses arquétipos forem mais esquivos à consciência. Um exemplo de uma intrusão súbita do tipo nos é dada pela Alemanha à época do Nacional-Socialismo. A pesquisa individual no campo da "metafísica da história", sugere que nessa ocasião deu-se um despertar do arquétipo de Wotan, o antigo deus pagão dos germânicos e que isso se deu através da personalidade do líder alemão (é claro, de uma forma distorcida, patológica, como resultado de uma supressão excessiva e superficial).

Nós podemos concluir, porém, que é por isso que cada análise política relevante não pode estar limitada estritamente a considerações racionais e empíricas. Ao contrário: ela deve buscar incluir o fenômeno político em sua totalidade, sempre tomando em considerações fatores espirituais, religiosos, filosóficos e fatores da psicologia profunda e da geografia simbólica.

Segredo do Prestígio Americano

A América hoje é um fator geopolítico superior. Ela é um modelo que hoje, intencionalmente ou não, conforma qualquer sociedade moderna, tornando-se mais e mais o paradigma da própria modernidade. Esse é o segredo do prestígio americano. Mas por trás da ilusão da sociedade ultramoderna e ultrarracional, centrada exclusivamente no pragmatismo puro, no qual tudo está subordinado ao "business" e à economia, também pode ser visto o contorno de um continente quase mítico. Sua imagem quase tem força magnética e poucas pessoas podem permanecer indiferentes, causando ressentimento em um momento e desejo de imitação no outro, nos círculos diabólicos de americanismo e anti-americanismo. Esse paradoxo simplesmente não é racionalmente explicável.

O Mito da América

O mito da América ou a "América mítica" realmente existe. Em um nível muito básico, esse é um fato disponível para qualquer habitante do planeta, e isso se dá na forma de um sentimento ainda nebuloso, confuso. Mas, em uma base casuística isso se torna mais concreto e óbvio: em seus símbolos e "ícones", nas telas do cinema, nas figuras das paisagens urbanas e nos enormes espaços vazios do "Novo Mundo". A consciência disso encontra sua expressão nos "mitos" e na ideologia estranha desse país. Como notamos algures, nós já discutimos a identificação da América pós-apocalítica com a "Nova Jerusalém", a "Nova Terra" do Apocalipse, que encontra sua fundação nas formas extremas de religião protestante (puritana). Nesse capítulo, nós novamente nos voltaremos para a equação menos explícita, mas não menos importante, que versa: a América é equivalente à mítica Atlântida. A esse complexo inconsciente, que desperta em outras nações, a América deve uma considerável parcela de seu prestígio e glamour atuais.

América ou Atlântida?

Ligar as Américas a uma Atlântida perdida é natural e até inevitável - e se dá no inconsciente, e na consciência ao mesmo tempo, mesmo entre americanos e entre o povo que foi sujeito à nova colonização do Ocidente. Isso é finalmente confirmado pela facilidade com a qual se enraízam profundamente novos termos, que, de outro modo, não fariam o menor sentido, como "comunidade atlante" - um sinônimo para a "Euroamérica", "integração euro-atlante", ou tão somente o nome da aliança militar do norte do Atlântico. Ademais, o "atlantismo" é um termo universalmente aceito para todas as doutrinas geopolíticas que seguem os EUA contemporâneos, outrora parte do Império Britânico. Ainda, o "atlantismo" é uma marca da mentalidade "imperial", psico-ideologia de potências talassocráticas, mercantilistas e coloniais que, desde tempos antigos, estão ligadas ao Oceano Atlântico. Do Atlântico à Atlântida, porém, a nível simbólico, é só um único passo porque na área norte do Oceano está exatamente a Atlântida mítica.

A identificação simbólica é indubitável, mas a América não é a antiga Atlântida (paleocontinente ocidental), mas sim o continente que, mesmo na era proto-histórica, estava a seu oeste. Tampouco são os americanos atuais o fabuloso povo atlante, mencionado por Platão. A descrição que nos dá o filósofo grego é perfeitamente clara: ele fala no "continente oposto às ilhas cercadas pelo mar", essa terra só se pode reconhecer como o continente americano atual, localizado a oeste das ilhas atlantes.

O Mito de Atlântida

Vamos lembrá-los, nos termos mais básicos, do mito de Atlântida, a qual estava localizada em tempos proto-históricos, segundo a lenda, em algum lugar no Atlântico Norte, a oeste dos pilares de Hércules, hoje o Estreito de Gibraltar. Falando grosseiramente, Atlântida afundou há uns dez mil anos, em um tipo de catástrofe geológica que recaiu sobre a humanidade de então. Um dos testemunhos mais importantes que nos foram deixados, foi por Platão, em seus "Timaeus" e "Critias", onde Platão reporta o que seu professor Sócrates aprendeu do sábio grego Sólon e que este teria ouvido de um sacerdote egípcio.

Resumindo o relato de Platão, podemos ressaltar o seguinte: a Atlântida mítica era efetivamente portadora de uma civilização espiritual superior. Eles foram navegadores chegados das ilhas ocidentais, na qual viviam em prosperidade sem paralelo, também foram os primeiros colonizadores europeus. A catástrofe que recaiu sobre eles - devido à "ira de Deus" - em verdade foi resultado de uma catástrofe espiritual: "O deus dos deuses, Zeus (...)," diz laconicamente Platão, "decide puni-los..."

Como a literatura tardia dedicada à Atlântida hoje inclui dezenas de milhares de bibliografias, mencionaremos a já clássica obra de Otto Muck (Otto Muck, O Segredo de Atlântida), que obteve para esse mito certos argumentos científicos. O autor, na verdade (e não sozinho), identifica o mitológico povo atlante com o homem de Cro-Magnon, portador da agricultura e da navegação, cuja colonização também ocorre na direção noroeste-sudeste.

A obra de Platão é a mais antiga e completa sobre a civilização perdida. Além disso, o relato de Platão, um tanto quanto pequeno em escopo, é rico em detalhes meticulosos e muitas vezes incrivelmente precisos sobre a vida dos atlantes, em relação ao que todos os relatos tardios possuem apenas importância secundária (muitas vezes, se reduzem a meras repetições do que já ouviram de Platão ou simplesmente derivam da imaginação fértil do autor).

América - Portadora do Bem-Estar Atlante

Mas aqui estamos pouco interessados na verdade literal do mito atlante (em geral, os mitos são ambíguos e podem ser interpretados, decifrados com várias chaves, desde cima, relacionada à realidade espiritual, ou do nível mais baixo "naturalista"). Aqui, estamos primariamente interessados na verdade ao nível do inconsciente coletivo e seus arquétipos. Em geral, parece que este mito está profundamente enraizado na estrutura do inconsciente de muitas nações. Sobre isso, afinal, fala claramente o fato de que o mito de Atlântida emerge de novo e de novo, mesmo quando parece ter sido completamente esquecido, tal como sua popularidade (na medida em que, em certos períodos históricos tais como as últimas décadas, é bem possível falar em uma verdadeira "atlantomania").

Os paralelos entre América e Atlântida se impõem por conta própria. A América porta o bem-estar atlante, que enfatiza o mito descrito por Platão (na tradição se indica que a palavra está ligada primariamente a bem-estar espiritual). A América é também portadora de uma civilização "superior", os americanos são também marinheiros e colonizadores da Europa, chegados das "ilhas" do Poente, e daí em diante.

Em toda a América, portanto, efetivamente ergueu-se um mundo há muito morto, perdido sob as ondas do oceano, evocando o tema apocalíptico da "ressurreição dos mortos". Há também o simbolismo da água (mares, oceanos) em seu aspecto negativo, como símbolo da morte, do caos, do não-ser. (Em uma nota positiva seria: regeneração, "purificação dos pecados"). Isso, afinal, está bem de acordo com o simbolismo do Oeste que, em muitas e várias tradições não é apenas uma "face anatemizada do mundo", mas também "a terra dos mortos", "o reino das sombras", para onde vão as almas após a morte.

Porém, a América é uma corporificação falsa e paródica do mito atlante, no qual valores espirituais superiores são sistematicamente reinterpretados e substituídos pelo inferior, material: o bem-estar celestial de Atlântida, autêntica era de ouro é substituído pela riqueza material da América, assim como a pretensa superioridade em relação ao "resto do mundo" se manifesta em benefícios consumistas e na civilização tecnológica. Assim, os colonizadores da Atlântida que portavam a luz de uma civilização espiritual, são transformados em colonizadores-captores, enviados de uma civilização extremamente materialista, que se apresentam sob os sinais grotescos do Mickey Mouse, da Coca-Cola e do McDonald's.

Da Escatologia à Utopia

Nova Jerusalém e Nova Atlântida - em ambos os casos são arquétipos do Éden, do paraíso celestial. Mas isso só pode se dar após o fim do mundo. O Paraíso, a Nova Idade de Ouro se situa no outro lado da história e pertence ao início de um novo ciclo do tempo, ou, na escatologia cristã, à era após a Segunda Vinda de Cristo.

Elas são também, em um período tardio da Europa, temas favoritos para projeções utópicas, espaços imaginários, é claro, como no caso da "Nova Atlântida" de Francis Bacon, em contraste à América que se torna aquilo (Nova Jerusalém) de uma maneira bastante concreta, logo após sua descoberta. A América, assim, foi muito rapidamente moldada para a realização de uma utopia. A escatologia foi reduzida a uma medida modesta de utopia, como resultado da secularização (na verdade, paródia), de uma ideia, em sua base, bastante religiosa.

Até então, a primeira tentativa de estabelecer uma utopia em solo americano ("Cidade de Deus" na Terra) foi posta em prática por seus "pais fundadores" puritanos e maçons. Em solo americano emergiram as primeiras colônias comunistas, tal como, por exemplo, Ikaria, construída em 1848 em Missouri. Assim, desde os primeiros tempos de sua história, se diz que "a história da América é realmente a história de um sonho utópico" (D. Kalajic, "Mapa da Anti-Utopia"). A utopia é, porém, uma paródia da escatologia, que ocorre sempre que o "outro mundo" se torna "este mundo".

América, "Nova Terra" do Apocalipse

A falsa Atlântida e a falsa Jerusalém estão conectadas de uma maneira particularmente "feliz" na superstição sincrética americana, a Nova Era pseudo-religiosa, cujos messias e profetas proclamam a seguinte mensagem: a Nova Era, a Idade de Ouro, a Era de Aquário já se iniciou. Em solo americano, é claro. A América não só salvou o mundo de sua história e da desesperança histórica (à qual os americanos não atribuem nenhum valor), pondo um fim à história, porque a América está em posse do seu significado - a América, tal como acreditavam os "pais fundadores", é a "nova terra" da Revelação de São João Teólogo. E, tal como cristãos participam no mistério do sacrifício de Cristo partilhando da comunhão com pão e vinho, a participação nos mistérios da América se dá bebendo Coca-Cola e comendo no McDonald's.

É interessante, porém, que essa ideia foi pronunciada por Cristóvão Colombo, a primeira figura realmente mítica do "Novo Mundo", seu descobridor lendário: "Deus tornou-me arauto de um novo céu e uma nova terra, das quais fala-se no Apocalipse de São João (...) Ele me mostrou onde encontrá-las".

América - O Reino do Anticristo

Regredindo à mentalidade do Velho Testamento (os americanos, como os antigos israelenses, são o "povo eleito", e nas mentes dos primeiros colonos, fugitivos da Europa - "Egito", a América era sua "Terra Prometida", sua "Nova Canaã"), então transpondo a mentalidade religiosa em termos mundanos, e com a tradução do espaço escatológico em espaço utópico - a América não renunciou a suas pretensões messiânicas. Na verdade, parece que as ambições messiânicas dessa alegre "ilha da Utopia" crescem em proporção direta com a secularização e descristianização do "Novo Mundo", alcançando já proporções grotescas.

Por um lado, o processo de secularização e descristianização na América, parece, é mais veloz e mais radical do que em qualquer outra parte do mundo, e por outro, o fato de que a América ainda é um espaço utópico, talvez hoje mais do que nunca, levando a um resultado paradoxal. O longo curso de muitas utopias culmina com a "Nova Ordem Mundial" (que, pela boca de Fukuyama também remete ao "fim da história") - "ordem" que é, em muitos sentidos, não apenas radicalmente anticristã, mas antitradicional em geral. Ela dá razão àqueles que reconhecem na América hoje o "reino do Anticristo", ou pelo menos a criação que é, entre todas as conhecidas da história humana, a mais próxima. Esse motivo, que cada vez mais se ganha espaço nas mentes de não-americanos e também na América cristã - e que irá, em nossa opinião, aumentar rapidamente em importância no futuro próximo - também encerra essa breve excursão através dos espaços míticos da América "supramundana".

19/06/2015

Ian Almond - Assistência Britânica e Israelense às Estratégias Americanas de Tortura e Contra-Insurgência na América Latina e Central, 1967-96: Um Argumento Contra a Complexificação

por Ian Almond



Ainda que o papel dos EUA em apoiar os movimentos, governos e ditaduras antidemocráticos e contrarrevolucionários que floresceram na América Latina dos anos 60 aos anos 90 seja bem conhecido, esse artigo examina o apoio fornecido aos EUA por outros países. Esse apoio foi fornecido principalmente por Israel e pelo Reino Unido, mas outros países estiveram também envolvidos, tais como África do Sul, Taiwan, França e até Arábia Saudita. O artigo afirma que um esquema material cristalino subjaz a assistência dada por esses países. Ele também identifica um número de razões históricas e culturais pelas quais governos antidemocráticos na América Latina encontraram empatia política particular em Israel.

Na verdadeiramente enorme perda de vidas civis que acompanhou as várias campanhas de contra-insurgência sustentadas pelos EUA que ocorreram em países da América Latina como Chile, Colômbia e Guatemala durante as décadas de 70 e 80, notavelmente pouco mencionada é a participação significativa de outros países junto aos EUA - nomeadamente Israel e Reino Unido, mas também França, Taiwan, África do Sul e até Arábia Saudita. É a natureza policentrada desse relacionamento que forma o foco desse artigo.  Eu afirmo que foi o conluio de objetivos e armas, ou o que um porta-voz de Reagan chamou de "uma convergência de interesses", que uniu estratégias israelenses, sul-africanas, britânicas e americanas em linha com os desejos das elites financeiras e militares da América Latina.

Ainda que "complexificação" descreva qualquer ato ou processo que torne uma situação mais complexa, eu decidi reempregar a palavra mais cinicamente nesse artigo. "Complexificação" aqui se refere a qualquer abordagem que exiba as seguintes características em sua análise de um conflito:

* Reúne um grande número de diferentes fatores e variáveis;
* Nivela ou reduz significativamente qualquer grau de importância relativa entre os muitos fatores citados;
* Conclui da pletora de fatores examinados que nenhuma causa singular ou abrangente pode ser identificada.

Meu uso do verbo "complexificar", portanto, se refere a um processo de despolitização, que se torna tão metafisicamente sobrepujado com uma abundância de detalhes, contextos e atores individuais que deixa de lado - ou não quer ver - padrões mais profundos, como palimpsestos, sob a teia de perspectivas.

O oposto de "complexificação" não é "simplificação" ou "explicação monocausal", mas sim uma compreensão mais cuidadosa dos elos dentro da delineação de complexidades. Ao longo dos anos 80, o fato de que a direita guatemalteca se referia às revoltas indígenas como a "palestinização" das regiões rurais ilustra não a ironia da metáfora, mas a assistência bastante real que Israel forneceu ao exército guatemalteca em sua repressão das rebeliões (Black, 1984, p. 154). Quando guerrilheiros esquerdistas em El Salvador sequestraram o embaixador sul-africano em 1979, entre suas demandas estava um rompimento dos laços diplomáticos com Tel Aviv e Cidade do Cabo, e um reconhecimento da Organização para a Libertação da Palestina (Bahbah, 1986, p. 149). Quando mercenários britânicos lutaram junto a soldados sul-africanos na Angola nos anos 70, muitos dos assessores militares israelenses que os treinaram reapareceriam depois nas oficinas militares e desfiles da América Central, educando oficiais e soldados de um grande número de países latino-americanos em técnicas de tortura, uso de armas de fogo e táticas gerais de contra-insurgência. Essa pletora de diferentes atores nacionais não constitui uma rede desesperadoramente intratável de complexidades, mas sim uma amplitude de fenômenos que ainda assim observa um padrão geral definido e substantivo.

Explicações Simplistas do Envolvimento Estrangeiro na América Latina

Uma explicação simplista para os exemplos supracitados seria uma marxista vulgar: nações capitalistas do primeiro mundo e os Estados-pária que eles apoiam entusiasticamente trabalham junto às elites dos países em desenvolvimento para militarizar suas infraestruturas sempre que o proletariado nessas regiões ameacem desestabilizar as plutocracias que o capital internacional considera tão amistosas. Tal formulação, porém, inevitavelmente encontra dificuldades na negociação de pelo menos quatro fatores de complicação.

Primeiramente, há exemplos suficientes de tensão entre Estados-Nação social-democráticos durante esse período para demonstrar que, longe de trabalharem junto harmoniosamente, as relações entre economias capitalistas, e mesmo aliados da Guerra Fria, foram difíceis e ocasionalmente mesmo hostis. Similaridade ideológica não era garantia automática de colaboração política. Isso poderia ser também estendido a países da América Latina: a perseguição paralela de Galtieri e Pinochet à esquerda em seus respectivos países não os impediu de planejar ações militares um contra o outro. Nem o apoio militar e financeiro generoso dos EUA impediu o nacionalismo de generais guatemaltecos como Victores e Montt de se expressar em momentos de anti-americanismo (Black, 1984, p.6).

Em segundo lugar, cada um desses jogadores continha mecanismos de dissenso e faccionalismo. Data vênia a Chomsky (1996), as diferenças entre as administrações Reagan e Carter em sua atitude em relação a América Central, por exemplo, ainda foram significativas. Falar de países como a Guatemala ou o Reino Unido como entidades monolíticas é ignorar as complexidades consideráveis dentro de suas estruturas. As disputas militares internas que provocaram a sequência de golpes na Guatemala - Lucas Garcia, Montt e Victores - dá testemunho de uma série de tensões não facilmente resumida pelo termo guarda-chuva "regime". Similarmente, não consegue registrar as várias disputas dentro do partido trabalhista britânica pelas vendas de armas à América Latina, ou os representantes israelenses de esquerda que se encontraram com o novo governo sandinista na Nicarágua (Phythian, 2000, p.107 ff; Klich, 1990, pp. 69-74). Essas instâncias problematizam a demonização de entidades supostamente homogêneas como atores "britânicos" ou "israelenses".

Em terceiro lugar, tentativas reducionistas de dividir conflitos em grupos de "opressores" e "oprimidos" encontram dificuldades quando estes se revelam internamente fraturados e divididos. Forças sul-africanas lutaram junto a um grupo angolano (UNITA) contra outro (MPLA); na Colômbia, guerrilhas anti-governo se dividiram em pelo menos três facções principais (FARC, ELN, M-19), enquanto a população indígena considerável da Guatemala provavelmente oferece o exemplo mais notável de noções problemáticas de vitimização, com tensões não apenas evidente entre os maias e os ladinos no movimento de resistência, mas também no papel desempenhado pelos soldados indígenas nas atrocidades do exército guatemalteco (Schirmer, 1998, pp. 81-103; Garrard-Burnett, 2010, pp. 98-107).

Um quarto fator que poderia complicar noções simples de "Estados capitalistas" em conluio uns com os outros seria uma insistência na dimensão puramente monetária dos treinamentos e vendas de armas. No caso de Israel, isso significaria apontar não apenas como o Estado israelense parecia disposto a vender armas a quase todo mundo - a República Popular da China foi um de seus maiores clientes nos anos 80 (Beit-Hallahmi, 1987, pp. 36-7) - mas mais importantemente como uma proporção considerável do treinamento e assistência dadas foi de forma mercenária, através de figuras como o infame Yair Klein e sua companhia Spearhead Ltd., que treinou esquadrões paramilitares de extermínio na Colômbia nos anos 80. A presença de mercenários em pelo menos alguns dos conflitos desses países - Angola, Guatemala, Colômbia - sugeriria uma série de iniciativas comerciais individuais, mais do que uma aliança de "nações capitalistas" trabalhando para esmagar um proletariado global insurgente.

Apesar da validade relativa desses quatro fatores de complicação, eu afirmarei que eles não perturbam fundamentalmente um padrão geral de interesses convergentes no exame da assistência militar britânica e israelense às estratégias americanas em países como Guatemala, Colômbia e Chile. As complexidades que esses quatro fatores trazem às análises são substanciais; sua incorporação é uma pré-condição para compreender como um termo como "opressão global" faz sentido. Não obstante, a extensão surpreendente, e às vezes até extraordinária, com a qual armas e militares desses países diferentes podiam ser encontrados operando um ao lado do outro parece reforçar a figura mais ampla de social-democracias capitalistas, trabalhando com elites locais, para impedir o aparato do capital internacional de ser perturbado por qualquer versão do proletariado que estivesse ameaçando fazê-lo - fossem palestinos, namíbios, camponeses indígenas ou sindicatos. Nas partes seguintes, detalharemos alguns desses momentos.

Assistência Militar Britânica a Regimes na América Latina e Central

No que concerne intervenções estrangeiras na América Latina, os EUA teve um papel tão proeminente e visível na derrubada de governos "inadequados" e no financiamento de regimes alternativos que uma patente falta de atenção pode ser vista em relação aos interesses de outros países no continente, tais como os de Israel e do Reino Unido. A maioria dos seguidores de tais histórias estarão conscientes, por exemplo, do papel central desempenhado por Kissinger e pela CIA na derrubada do governo socialista de Allende e no bombardeio do palácio presidencial em Santiago, tudo servindo para instalar o ditador pró-americano, Augusto Pinochet, em 1973. Porém, relativamente poucos historiadores estarão conscientes de que, no bombardeio assassino do Palácio Moneda, um caça Hunter britânico desempenhou papel vital no ataque (Becket, 2003, pp. 90-1)

A Grã-Bretanha, tanto como Estado mas também menos oficialmente como fornecedor de mercenários e armas, desempenhou um papel considerável no estabelecimento e manutenção de ditaduras militares na América Latina e Central do pós-guerra (Phythian, 2000, p. 105). Como veremos na próxima parte, nós temos relatos de mercenários britânicos treinando paramilitares na Colômbia (Castano, 2001, p.12). Até a guerra de 1982 com a Argentina, tanto os governos trabalhista como conservador foram fornecedores entusiásticos de mísseis Sea Cat e destróieres para o regime militar argentino. De fato, a última venda ocorreu 10 dias antes do início da guerra (Phythian, 2000, pp.123, 125). O Brasil, um país que viu um golpe apoiado pelos EUA em 1964, foi o maior comprador de armamento britânico durante os anos 70, comprando três vezes mais que Argentina ou Chile (Phythian, 2000, p.135). Nós temos até mesmo uma raríssima instância de insatisfação popular de igrejas, sindicatos e da mídia britânica impedindo a venda de equipamento militar a uma ditadura direitista - dessa vez a de El Salvador, que em 1977 tentou comprar uma dúzia de blindados Saladin do Reino Unido, mas encontrou um governo britânico incapaz de vendê-los por causa da intensa pressão pública (ibid, pp. 137-40).

O caso da relação britânica com o Chile, porém, provavelmente é o único exemplo de interesse britânico na América Latina que uma audiência mais ampla chegaria a conhecer, primariamente por causa da prisão judicialmente sem precedentes de Pinochet no Reino Unido em 1998. O historiador militar Mark Phythian foi o mais eficaz cronista das relações anglo-chilenas durante os anos 70 e 80, registrando uma sequência cada vez maior de acordos, negações, conluios e tensões internas cuja história basicamente nos ensina três coisas. Primeiramente, revela que a assistência britânica forneceu à ditadura de Pinochet não apenas foi implementada pelo Estado, como também endossada em cada nível até o escritório do próprio Primeiro-Ministro. No ano de 1974 apenas, tempo em que a recém-instaurada ditadura já havia assassinado ou "desaparecido" duas mil pessoas (Wright, 2007, p. 55), 53 oficiais da Marinha Chilena e 223 marinheiros visitaram a Grã-Bretanha para cursos de treinamento naval (Phythian, 2000, p.114). Bases aéreas como a Bracknell da RAF foram usadas para treinar pilotos chilenos. No início dos anos 80, tanto armamento estava sendo levado ao Chile que o Aeroporto Luton (no Reino Unido) tinha um "Armazém Chileno" especial. Aviões britânicos eram levados ao Belize, e então repintados com insígnias da Força Aérea Chilena para fazerem voos de reconhecimento sobre a Argentina (ibid., 116). Tirando essas substanciais vendas de armas (o Reino Unido havia efetivamente fornecido a maior parte da Marinha Chilena) e treinamento de pessoal militar, a colaboração ativa do governo britânico com a ditadura de Pinochet não concordava apenas em exercer autonegação moral, mas cooperava ativamente com as piores atrocidades do regime. Tão somente três meses após as covas anônimas de mais de 600 mortos terem sido encontradas no cemitério de Santiago, o Ministro de Relações Exteriores britânico afirmou que a situação de direitos humanos estava melhorando (ibid., 114). Ainda pior, telegramas da embaixada britânica ao ministério indicaram que um negócio havia sido fechado: Pinochet permitiria à SAS britânica estabelecer bases aéreas em solo chileno, e em retorno o governo britânico forneceria mais armas, silenciaria críticas aos direitos humanos e trabalharia ativamente para solapar a investigação da ONU sobre torturas e desaparecimentos que proliferavam sob o regime.

Um segundo ponto que emerge dessa mini-história é até onde as empresas britânicas trabalharam para lubrificar as relações de seu país com Pinochet. Em 1975, a Grã-Bretanha era o principal credor do Chile após os EUA, somando 14 milhões de libras (ibid, p.110). Como Phythian (2000) aponta, a visita da Ministra do Comércio Cecil Parkinson em 1980 foi o prenúncio do próprio aquecimento da administração Reagan às relações comerciais e militares após a Proibição Carter ter sido derrubada (ibid, p. 116). Dois anos mais tarde, quando o DINA de Pinochet (a política secreta chilena) havia assassinado mais de mil pessoas, outra delegação comercial britânica declararia que o Chile era uma "força moderada e estabilizadora" (ibid, p. 118; ver também Wright, 2007, p. 80). Uma anotação de 1987 de um diário pertencente ao Ministro do Comércio Alan Clark do Reino Unido, expressa sucintamente quão preocupado o governo britânico estava com as torturas e abusos do regime Pinochet:

"Hoje mais cedo um esquisito oficial, que está 'encarregado' (Deus nos ajude) da América do Sul, veio me passar um relatório antes de minha ida ao Chile. Tudo lixo sobre direitos humanos. Nem uma palavra sobre os interesses britânicos" (Citado em Phythian, 2000, p.122).

A história de como a ditadura pró-americana chilena iniciou uma era de políticas econômicas neoliberais foi contada inúmeras vezes (mais recentemente, Klein, 2007). Contra esse pano-de-fundo - isto é, o uso aparente de ditaduras para limpar o caminho para projetos econômicos de livre-mercado - a famosa amizade entre Pinochet e Thatcher não era meramente uma de realpolitik, como Thatcher costumava dizer, mas também uma nascida da afinidade ideológica. Ainda que este último ponto se tornasse menos verdadeiro conforme as relações do Chile com os EUA deterioraram nos anos 80 - e sua aproximação com o Reino Unido se fortaleceram por causa do conflito das Malvinas com a Argentina - é justo ver os interesses econômicos, principalmente no reino das vendas de armas, como uma força impulsora na manufatura de intimidade entre esses dois governos de direita.

Porém, o que o "oficial esquisito" da passagem do diário de Alan Clark também revela é a existência de tensões internas significativas dentro dos governos conservador e trabalhista em relação a venda de equipamento militar e treinamento para ditaduras brutais. Emergindo mais claramente dos vários cabos entre elementos internos dentro do governo britânico - o Ministério do Exterior e a embaixada britânica -e há um grau de ansiedade sobre o fornecimento de tais regimes, mais do que quaisquer reservas éticas genuínas. No início do conflito das Malvinas, editores de jornais britânicos receberam pedidos do governo para não mencionarem o relacionamento de seu país com o Chile (Phythian, 2000, p.110). A tentativa de compra de 300 blindados Centaur pelo regime Pinochet em 1984 causou consternação pouco usual, já que ela coincidia à época com uma nova onda de repressão a esquerdistas, estudantes e sindicatos. Um parlamentar conservador britânico visitando o Chile naquele ano insistiu, em uma declaração para a imprensa que quase parecia tentar convencer a si mesmo tanto quanto a audiência, que:

"Os chilenos me disseram que eles os queriam para usar no deserto ao norte e nas áreas pantanosas no sul e não para usar contra seu próprio povo... o Centaur é simplesmente um caminhão; não é certamente nada como aquele horrível veículo AMAC que o governo proibiu que fosse vendido para o Chile". (Citado em Phythian, 2000, p.120).

Ainda que a venda do Centaur nunca tenha ocorrido, um veículo baseado no mesmo design foi visto um ano depois nas ruas de Santiago, sendo "usado para matar estudantes que participavam de protestos" (Hansard, 24 de julho de 1986, cols. 830-1 citado em Phythian, 2000, p.120). As palavras do parlamentar britânico parecem ser um exemplo do que o filósofo Zizek chamaria de "rejeição fetichista" (Zizek, 2006, p.353): um repúdio semântico à tortura e ao assassinato, enquanto simultaneamente se facilita o próprio processo da coisa desabonada. Essa observação cínica de uma distância entre signo e ato - um desejo de realizar uma série de gestos superficiais, enquanto secretamente se persegue uma sequência bem diferente de ações - pode ser vista na maioria das atitudes do governo britânico em relação ao cultivo de seu relacionamento público com o governo chileno nos anos 80. Phythian cita o curioso memorando do Ministério do Exterior circulado em resposta às consideráveis críticas surgidas da imprensa britânica, bem como de figuras da Igreja como o Cardeal Basil Hume. Com o título "Possibilidades para o Corte de Relações", o documento considerava e rejeitava várias proibições e boicotes que o Reino Unido poderia infligir ao Chile como punição por seus abusos contra direitos humanos, concluindo com sua resolução final: uma proibição de coquetéis na Embaixada Chilena:

"Nós podemos considerar um boicote ministerial e dos oficiais sênior aos eventos sociais da embaixada chilena. Isso poderia estar confinado ou aos contatos do Ministério do Exterior ou ser estendido aos negócios mais amplos entre Whitehall e a embaixada chilena". (Phythian, 2000, p.119)

É claro, estamos agora totalmente no reino da sátira. Se o satírico, porém, implica um senso irônico de distância entre como as coisas deveriam ser e como elas são, então muitas das evasões que os governos americano, guatemalteco, britânico e israelense empregaram para descrever seus comportamentos tinha um elemento do potencialmente satírico nelas. Isso nós veremos quando chegarmos à Guatemala, que renomeou os campos de trabalho forçado mantidos para camponeses sem-terra que haviam sido desapropriados como "Pólos de Desenvolvimento" (Pollos de Desarrollo).

Ainda que a Grã-Bretanha fosse um dos principais fornecedores de armas e aliados militares do Chile, certamente não foi o único. Muito além dos EUA, outros países também ajudaram o regime Pinochet a se fortalecer pela aquisição de expertise militar e equipamento. A França não apenas vendeu dezesseis caças Mirage, como também treinou seus pilotos (Phythian, 2000, p. 114). Ao longo dos anos 70, Israel vendeu imensas quantidades de armamentos: mísseis ar-ar Shafirir, botes de patrulha Reshef, sem mencionar os tanques israelenses M-51, para os quais o governo britânico tentou fornecer motores Condor V-8 (Bahbah, 1986, p.74; Phythian, 2000, p.119). Foi a Grã-Bretanha, porém, agindo a partir de uma mistura de interesses comerciais e geopolíticos, associado a partir de 1979 com uma compatibilidade ideológica cada vez maior, que parece ter tido menos problemas em declarar publicamente seu apoio a um regime que, em 1990, já tinha sido responsável por mais de 3.000 mortes e pelo menos 30.000 casos de tortura.

Assistência Militar Israelense a Regimes na América Latina e Central

"Tratem os índios como tratamos os palestinos - não confiem em nenhum deles" - assessores militares israelenses a trainees guatemaltecos. (Jamail and Gutierrez, 1990, p.141)

A amplitude e profundidade da assistência militar israelenses a regimes sul-americanos é assombrosa: rifles de assalto Galil e submetralhadores Uzi para assassinar camponeses na Guatemala, napalm israelense para jogar contra eles em El Salvador, oficinas de tortura em Honduras, Nicarágua e Guatemala para treinar interrogadores nos métodos mais eficientes, tecnologia de computação para ajudar a compilar "listas da morte" de subversivos, e treinamento na própria Israel para o creme-de-la-creme das elites militares. Esse intercâmbio militar data do próprio início da história da Israel moderna, quando a ditadura nicaraguense de Somoza concordou em enviar armas para as milícias judaicas como a Haganah em sua luta contra os britânicos pelo controle sobre a Palestina histórica (Aviel, 1990, p.14).

Ainda que o ditador nicaraguense, Somoza, tivesse visitado Jerusalém em 1961 (Klich, 1990, p.44), o primeiro intercâmbio militar real entre Israel e a América Central começou em 1964, quando cursos de treinamento eram oferecidos em Israel para o exército guatemalteco Nos anos entre 1964 e 1971, mais de 160 visitas a bases militares israelenses foram feitas por oficiais militares guatemaltecos, brasileiros e bolivianos, tudo isso subsidiado pelos EUA. (Cockburn, 1991, p.218). O que se desenvolve pelos próximos 30 anos é uma panóplia extraordinária de influências - militar, técnica, política e até agrícola. Essas influências emergem contra um pano-de-fundo mutante de administrações americanas, e abarcando uma extensão geográfica verdadeiramente enorme - de regimes guatemaltecos e treinamento de contras nicaraguenses, a operações de contra-insurgência na Colômbia e Peru, passando por assistência militar direta a regimes em Santiago e Buenos Aires.

O propósito dessa breve parte não é nem examinar as razões para a presença militar israelense em questões latino-americanas ("crédito especial com os EUA, a Proibição Carter, acordos recíprocos, comunalidades ideológicas ou simples motivação econômica), nem dar um relato exaustivo dela, mas ressaltar seis características que se relacionam a algumas das "complexidades" mencionadas no inicio do artigo.

Primeira, a medida em que a intervenção israelense em situações latino-americanas se desenvolveu em harmonia com necessidades americanas precisa ser enfatizada. Ela contrasta com as relações às vezes tensas que Grã-Bretanha e França experimentaram com os EUA ao tentarem vender armas a países latino-americanos (que as administrações americanas tendem a ver como seu "quintal"). A CIA, por exemplo, utilizou ex-oficiais israelenses como Emil Saada para ajudar a treinar esquadrões de extermínio em Honduras: até 1984, mais de 250 pessoas no país haviam sido assassinadas. Empresas de armas israelo-americanas como Sherwood International ajudaram a fornecer armas para forças contrarrevolucionárias (Cockburn, 1991, p.225). Conselheiros de segurança nacional dos EUA como Robert McFarlane discutiram com o diretor do Mossad sobre como melhor utilizar Israel como intermediário para armar e treinar os Contras (ibid., p.230). O papel de Israel como contratado para "trabalho sujo" aumentou nos momentos em que o Congresso cortou o auxílio a esses grupos terroristas, particularmente durante a Proibição Carter. Uma consequência da interação harmônica entre EUA e Israel na América Latina foi que ela tornou Israel duplamente atraente para regimes latino-americanos como fornecedora de armas - comprar armas e treinamento de Israel ou empresas israelenses valia, para países como Guatemala e Colômbia, "créditos especiais de relacionamento" com os EUA (Jamail e Gutierrez, 1986, pp.16, 18; Bahbah, 1986, p.98).

Segundo, a medida estatística em que Israel aparece na contra-insurgência latino-americana - e em que regimes latino-americanos como Colômbia e Guatemala apareceram nas exportações de armas israelenses - parece sugerir uma quantia incomum de atenção recíproca entre esses governos, mais do que ser meramente "negócios como de costume". Em 1980, 1/3 das vendas de armas israelenses foram para Argentina e El Salvador (Bahbah, 1986, p.61). Para a Argentina, isso significava 17% de suas importações de armas. A América Latina em geral, por volta de 1986, respondia por metade das vendas de armas israelenses (Jamail e Gutierrez, 1986, p.15). Victor Perera estima que mais da metade dos 45.000 índios maias mortos na Guatemala entre 1978 e 1985 morreram por metralhadoras Galil e Uzi (citado em Hunter, 1987, p.36). A relevante interação israelense com estratégias americanas para proteger interesses econômicos em países latino-americanos, longe de ser negócio de teorias de conspiração ou da seleção artística de dados arbitrários, é significativamente refletida em estatísticas de vendas de armas.

Uma terceira característica interessante é a medida em que a intervenção israelense na América Central envolvia outros países, incluindo tando forças armadas de outros países direitistas (como a Argentina), bem como países mais distantes como Reino Unido, Taiwan e até Arábia Saudita (que forneceu 32 milhões de dólares em ajuda ao programa Contra dos EUA [Klich, 1990, p.51]). Nós já mencionamos como, na própria Israel, treinamento extensivo foi fornecido em todos os tipos de técnicas para exércitos latino-americanos. O paramilitar colombiano, Castano, descreve uma dessas escolas, 4 horas de distância de Tel-Aviv, onde em 1983 ele encontrou chilenos, argentinos, espanhóis e mexicanos (Castano, 2001, p.109). Em países como a Guatemala, em particular, israelenses parecem ter trabalhado em cooperação próxima com contra-insurgentes de outros países latino-americanos como a Argentina, Chile e El Salvador. A infame agência de inteligência do exército guatemalteco G-2 (chamado "La Dos") estava equipado e treinado não apenas por israelenses, mas também em conjunção com especialistas argentinos, colombianos, chilenos e taiwaneses (Schirmer, 1998, p.152). A embaixada israelense na Cidade da Guatemala foi usada como ponto de contato regular entre israelenses, americanos e Contras nicaraguenses (Jamail e Gutierrez, 1990, p.130). Oficinas de tortura, parece, eram pontos frequentes de colaboração internacional (Landau, 1993, pp. 182-183). O acadêmico Israel Shahak descreve, em um relatório de 1981, como:

"Um item de exportação israelense especialmente importante são os chamados especialistas israelenses 'anti-terrorismo'. Esses são na verdade especialistas em tortura, especialmente nos métodos mais sofisticados de tortura, que infligem a máxima quantidade de dor sem matar. Os 'especialistas' israelenses que retornam para casa, culpam os 'torturadores locais' como 'emotivos' e por 'matarem cedo demais', e em sua opinião, 'desnecessariamente'. A Guatemala se tornou o centro de treinamento de torturadores por 'especialistas' israelenses nesse ofício, e para outros países também. O caso de El Salvador em que membros do Orden eram treinados por israelenses na Guatemala tem sido conhecido há algum tempo. (Shahak, citado em Rubenberg, 1990, pp.114-4)"

Israelenses estavam ajudando argentinos a treinar Contras cubanos e nicaraguenses em bases americanos em Honduras e salvadorenhos contrarrevolucionários na Guatemala, enquanto aviões argentinos transportavam armas israelenses para a Guatemala (ver Aviel, 1990, p.33; e Bahbah, 1986, p.186). O que emerge aqui não é uma iniciativa de um único país, ou um simples caso de Israel se oferecer para fazer um único favor para fortalecer as relações americanas, mas sim uma rede consistente de alianças antirrevolucionárias, superando divisões locais para lutar contra uma onda de mobilização indígena, trabalho organizado e resistência armada. O relacionamento próximo entre o Estado de Israel e os negociantes "independentes" de armas e mercenários dos quais ele tentava, em resposta a preocupações de organizações de direitos humanos, se distanciar, é outro fator interessante nessas atividades. A intimidade que existia entre o governo israelense, empresas de armas e ex-militares que abasteciam e treinavam esquadrões de extermínio e cartéis narcotraficantes, complica ainda mais a noção de soberania estatal como estando baseada na exclusão de atores não-estatais. Ela demonstra como decisões políticas em Tel-Aviv e Jerusalém eram tomadas em conluio com atores supostamente independentes. É claro, figuras públicas como Peres e Sharon visitavam e contribuíam abertamente com regimes como os da Nicarágua e Honduras (Shimon Peres em 1957, Ariel Sharon em 1984 [Aviel, 1990, pp.31, 15]). Porém de muitas outras maneiras, o Estado de Israel apoiava todo o espectro de atividades legais e ilegais na América Latina, do uso de aviões para distribuir armas para o regime em Managua (Jamail e Gutierrez, 1990, p.128), ao ministro israelense da indústria que disse à Argentina que poderia haver "dificuldades" nas importações de carne de Buenos Aires se o governo argentino não comprasse seis transportes Arava (Bahbah, 1986, p.95).

Empresas israelenses de armas desfrutavam de um relacionamento especial com seu governo. Mesmo hoje, Israel tem uma das indústrias de armas mais nacionalizadas no mundo, com três de suas quatro maiores companhias de defesa (IMI, Rafael, IAI) completamente controladas pelo Estado (Lifshitz, 2010, p.271). Empresas de armas dos anos 70 e 80 como GeoMilTech e Sherwood International desfrutavam de um status privilegiado. Elas tinham escritórios bem localizados em Tel-Aviv e Washington, e acesso especial a armamento soviético capturado no conflito com o Líbano (Cockburn, 1991, pp.227, 234). Porém, o aspecto mais notável dessa intimidade é a medida em que alguns dos mais notórios traficantes de armas e mercenários envolvidos - como Mike Harari, Pesakh Ben Or e Yair Klein - estavam diretamente conectados com os níveis mais altos do governo israelense. O treinador de paramilitares na Colômbia e África do Sul, Yair Klein, operava sob uma licença oficial do governo israelense; o coronel Leo Gleser, ex-comando israelense vendia armas para Honduras através de uma empresa israelense (ISDI) tornada pública pelo Ministério da Defesa de Israel (ibid., p. 225); e o ex-operativo do Mossad Mike Harari, que vendia armas para o regime panamenho nos anos 80, era cunhado do Procurador-Geral de Israel, Dorith Beinish (ibid., p.259). Mercenários israelenses, em outras palavras, não eram marginais foras-da-lei, mas sim agentes semi-autônomos que não poderiam operar tão eficientemente quanto operavam sem apoio e endosso do Estado de Israel.

Um quinto ponto concerne a maneira pela qual a influência israelense na América Central não estava apenas limitada ao fornecimento de armas, atividades de treinamento, especialização militar, ou assistência ao estabelecimento de sistemas de computação projetados para detectar e organizar informações sobre subversivos. Ela também se manifestou mais sutilmente na reorganização pós-massacre da paisagem e na fragmentação permanente de comunidades. Na Guatemala, centenas de milhares de refugiados, principalmente indígenas, fugiram de seus lares durante os piores períodos dos massacres. Os "pólos de desenvolvimento" eram reassentamentos forçados de indígenas deslocados em unidades altamente controladas e fortemente reguladas. Sua inspiração foi tomada, em grande medida, dos princípios dos kibbutzes judaicos e de coletividades agrícolas moshav em uma tentativa de recuperar controla, tanto físico como ideológico, da população rural (um observador os chamou de "uma réplica distorcida da Israel rural" [Perera, citado em Hunter, 1987, p.42]). Um dos arquitetos do esquema, um coronel da Força Aérea Guatemalteca chamado Eduardo Wohlers, foi treinado em Israel.

Esses esquemas - novos planos de aldeias nas quais refugiados reassentados à força compravam toda sua comida de armazéns militares e eram constantemente supervisionados por soldados e pela polícia - criaram patrulhas locais de camponeses que eram encorajados a pegar em armas e policiar suas próprias comunidades. Jennifer Schirmer, em seu clássico estudo do projeto militar guatemalteco, mostra em detalhes como "em nenhum outro lugar na América Latina um exército conseguiu mobilizar e dividir a população indígena contra si mesma" (1998, p.81). Ideias de propriedade privada foram sistematicamente desenvolvidas nos camponeses desses campos de reassentamento como "garantia" contra subversão futura. Conscrição nessas milícias campesinas eram às vezes violentas: quando índios maias se recusaram a se unir a tais patrulhas civis, aldeias inteiras foram massacradas para "ensinar uma lição" (ibid., p.83). Em uma política que, segundo um especialista em contra-insurgência, era 60% guatemalteca, 20% inspirada pela experiência americana no Vietnã e 20% por operações israelenses e taiwanesas, uma impressão confusa da guerra civil - de camponeses combatendo revolucionários - foi deliberadamente cultivada pelo exército para confundir organizações de direitos humanos e observadores estrangeiros (ibid., p.59). De fato, ao ampliar o uso de patrulhas civis por toda a população campesina masculina, a cumplicidade indígena forçada em assassinatos violentos resultou em uma dispersão conveniente da responsabilidade. Em outras palavras, o envolvimento de locais em assassinatos individuais teve tanto sucesso que até comunidades indígenas se sentiam ameaçadas pela presença de investigadores de direitos humanos.

Um ponto final a emergir de qualquer estudo do envolvimento israelense na América Latina e Central é o grau de dissenso interno dentro de Israel em relação, nesse caso, ao apoio de Shimon Peres à ditadura autocrática da Nicarágua e, uma vez que ela foi derrubada, aos contras pró-americanos que estavam tentando restaurá-la. Esquerdistas e sindicalistas israelenses - principalmente do partido Mapam - demonstraram solidariedade aos sandinistas, tentando aprovar uma lei em 1982 que vetaria a venda de armas a El Salvador, Nicarágua e Guatemala. Como Ignacio Klich (1990, p.68) aponta, laços partidários entre o Mapam israelense e a FSLN nicaraguense se desenvolveram, com o líder Haika Grossman até visitando a Nicarágua a convite dos sandinistas em 1984. Dissenso interno também emergiu, por razões um pouco diferentes, quando foi revelado como, entre 1976 e 1979, mais de mil judeus argentinos (principalmente de esquerda) foram sequestrados e torturados pelo mesmo exército argentino que o governo israelense estava armando e treinando. Ainda que esse grau de dissenso jamais fosse suficientemente importante para modificar a política, certamente merece menção.

Fatores Políticos e Culturais: Imagens Latino-Americanas Positivas de Israel

Mesmo uma pequena quantidade de textos - as memórias de um diplomata guatemalteco, entrevistas com um paramilitar colombiano, artigos de um jornal militar guatemalteco - mostram como fatores imateriais facilitaram o que, de outra forma, teria sido uma aliança improvável: nomeadamente, a coalizão do Estado judaico com regimes direitistas e neofascistas latino-americanos. As categorias da admiração latino-americana por Israel são quatro: anticolonial, bíblica, iluminista, e o que se poderia dizer "nietzscheana".

A simpatia anticolonial por Israel de países como Guatemala e Nicarágua emergiu nos primeiros dias do Estado de Israel (ainda que seja ressuscitada nas memórias de Somoza [ver Somoza e Cox, 1980, p.156]). Ela deriva do senso de solidariedade latino-americano com uma nação jovem e ainda na infância, recém-emergente de uma luta independentista contra os britânicos - uma situação que alguns observadores viram como historicamente análoga às lutas independentistas oitocentistas de nações latino-americanas contra seus senhores espanhóis. Um dos membros do Comitê Especial das Nações Unidas sobre a Palestina de 1947 foi o liberal guatemalteco, Jorge Garcia Granados, e imediatamente após a experiência de visitar o Mandato Britânico da Palestina ele escreveu um livro sobre, O Nascimento de Israel (1948). Simpatia anticolonial pelos colonos judaicos na Palestina é um sentimento que permeia o livro do início ao fim. Nas várias disputas de Granados com delegados europeus sobre as atividades de grupos judaicos de resistência, o guatemalteco diz a seus colegas: "Para nós latino-americanos...vocês ingleses se esqueceram o que é ser agitado por sentimentos revolucionários" (ibid, p. 54). No início do livro, Granados afirma ainda mais explicitamente:

"Eu viria a encontrar muitos paralelos, tanto políticos como sociológicos, entre a Palestina e a Guatemala...a Palestina havia emergido sob o jugo do Império Otomano para se encontrar vítima de tremendas pressões políticas e sociais. A Guatemala havia sido forjada como sobre uma bigorna. Por séculos a Guatemala, dos tempos dos conquistadores em 1524, havia sofrido sob o absolutismo espanhol.

Alguns dos problemas palestinos pareciam não ser dissimilares aos da Guatemala. Ambos eram países essencialmente agrícolas com grandes massas de camponeses atrasados e ignorantes. Na Guatemala esse campesinato, explorado por uma pequena e rica elite proprietária, representa 2/3 da população. Vastas áreas do país estão desperdiçadas, e há uma necessidade desesperadora de utilização de tecnologia moderna para melhorar a qualidade de vida". (Granados, 1948, p.17).

Há algumas manobras curiosas aqui. Em sua empatia pela luta anticolonial do Haganah e admiração pelo Hatikvah (hino nacional judaico), Granados apaga os palestinos da imagem. (Da mesma maneira, é tentador sugerir, que certas histórias latino-americanas apagam os indígenas de suas próprias lutas independentistas). Granados não é cruelmente indiferente aos palestinos - no livro, ele reconhece as perdas palestinas de terras e as dificuldades que eles estão encontrando - mas isso jamais desloca a analogia da luta judaica/bolivariana contra o domínio britânico-otomano/espanhol que subjaz o enquadramento final do livro.

Um segundo fator nas simpatias latino-americanas por Israel se encontra em uma série bíblica de conotações que, não importa o quão estranho possa parecer, de fato parecem ter operado como fator de facilitação em certos nacionalismos direitistas católicos (sem mencionar o protestantismo evangélico de Rios Montt). Ele claramente aparece na visita de Granados à Palestina. Logo que ele chegou, ele escreve, "Meus olhos se voltavam completamente para paisagens bíblicas" (ibid., p.31). Repetidas referências aos "judeus [que] jamais haviam esquecido sua terra ancestral" (ibid., p.63), "a terra que é sagrada para milhões de seres humanos" (ibid., p.30), mostra como o background cristão do diplomata guatemalteco desempenhou um papel em privilegiar as necessidades de colonos judaicos acima dos habitantes palestinos. Essa tendenciosidade também se manifesta no mais improvável dos lugares. Tome, por exemplo, as palavras de Carlos Castano, um líder paramilitar colombiano e narcotraficante responsável por incontáveis atrocidades, incluindo o assassinato do jornalista Jaime Garzon. Ele fala em sua estadia em Israel para treinamento militar aos dezoito anos de idade como uma experiência transformadora. O aspecto religioso de sua visita não foi meramente incidental:

"A história de Israel é prazerosa e iluminadora. Você deve começar tomando um shekel em sua mão, tal como recebendo Cristo...eu admiro os judeus por sua coragem face ao antissemitismo, por sua estratégia na Diáspora, por seu resoluto sionismo, seu misticismo, religião e, acima de tudo, seu nacionalismo.

Enquanto vivia em Israel, eu conquistei alguns amigos, incluindo um velho que eu amava visitar e ouvir enquanto ele cantava ou recitava poesia em hebraico, sua língua nativa, a língua da própria Bíblia. Era tão comovente". (Castano, 2001, pp. 108, 110)

A vida violenta de Castano como líder da AUC encontra uma incrível coexistência com sua homenagem à espiritualidade profunda da Terra Santa, com a imagem surreal do futuro paramilitar, ouvindo recitações hebraicas dos Salmos. Não há tempo aqui para trabalhar a relação entre misticismo e violência, ainda que não seja difícil ver um elemento de Charles Maurras na inspiração mística de um paramilitar tão violento.

O que é claro, porém, é a medida em que a criação cristão de Castano ajudou em seu treinamento militar israelense. Considerando a própria religiosidade fervorosa e interação com evangélicos americanos do general guatemalteco Rios Montt durante os piores anos dos massacres, é difícil não ver esse reconhecimento cristão da identidade bíblica de Israel como desempenhando algum papel, não importando quão pequeno, na ampla colaboração entre Israel e Guatemala nesse período.

Tirando as simpatias bíblicas e anticoloniais, um terceiro fator seria uma admiração por Israel como potência civilizadora, colonizadora, de primeiro mundo: um entreposto do progresso eternamente ameaçado por um dilúvio de fanatismo e atraso indígena. Análogo à própria relação de Israel com a África do Sul (Sharon vendo a ANC como uma versão africana da PLO, por exemplo [ver Polakow-Suransky, 2010, p.8]), uma simpatia iluminista definida por um entreposto da modernidade pode ser detectado em algumas das maneiras que militares guatemaltecos descreviam Israel. "Israel é um pequeno país realizando um trabalho enorme", disse um general guatemalteco ao jornal Ma'ariv em 1981."Nós vemos o israelense como o melhor soldado no mundo hoje, e olhamos para ele como modelo e exemplo para nós" (citado em Shahak, 1982, p.48). Na edição de 1977 do jornal militar, Revisa Militar, nós encontramos uma resenha de eventos nos conflitos palestino-israelenses de 1948 a 1977. A imagem apresentada é uma de uma nação desenvolvida, cercada por inimigos árabes invejosos. A linha de tempo não começa com a expulsão de milhares de palestinos por milícias judaicas em 1948, mas com "os países árabes invadindo a Palestina" em 1948 (Asturias, 1977, pp.51-58). Os palestinos são repetidamente referidos como "terroristas" (p.51), e emergem junto a seus vizinhos árabes como consistentemente agressivos e "subversivos", com as ações de Israel sendo amplamente vistas como retaliatórias. Em outra edição de 1984 da mesma publicação, a posição de Israel como uma ilha de modernidade em um mar de barbárie é sublinhada pela reprodução de uma série de artigos conservadores de jornais argentinos sobre o Oriente Médio, com retratos severos de Saddam Hussein, Muammar Gaddafi e do Aiatolá Khomeini ("un fanatico medieval" [Ronen, 1984, p.109]), junto a várias fotografias de explosões e nuvens de cogumelo, apresentando genericamente uma paisagem médio-oriental de feudalismo, violência e volatilidade.

O fator final nas respostas latino-americanas simpáticas a Israel eu decidi nomear "nietzscheano", já que ele envolve - como Nietzsche endossa na Genealogia da Moral - uma admiração por aqueles que não tem vergonha de exercer seu poder e, de fato, que abraçam e afirma sua agressão. Essa admiração está melhor expressa em Castano:

"Ali eu me tornei convicto de que era possível derrotar as guerrilhas na Colômbia. Eu comecei a ver como um povo poderia se defender contra todo o mundo... Na verdade, o conceito de auto-defesa armada eu copiei dos israelenses, cada cidadão dessa nação é um soldado em potencial.

Em Israel eu consegui abrir minha mente... Eu aprendi de outras guerras e já possuía uma visão panorâmica do país. Eu tentei absorver tanto conhecimento quanto possível dos judeus, um maravilhoso povo de Deus, que sempre viveu em guerra e por milhares de anos tem estado em modo de auto-defesa, invadindo e conquistando território. A viagem à Terra Santa foi uma ocasião momentosa em minha vida". (Castano, pp.108,111)

A performance de Israel na Guerra do Líbano impressionou muitos observadores militares latino-americanos, e foi um fator central nas vendas de armas do período. Os quatro fatores citados aqui não se coadunam necessariamente bem um com o outro. De fato, um liberal como Granados tem pouco em comum com um assassino como Castano. A medida em que tais fatores causaram, facilitaram, ou meramente resultaram da assistência concreta que Israel deu a tais regimes e paramilitares nos anos 70 e 80 permanece disputável e provavelmente incalculável. O que a seleção de citações acima demonstra, porém, é que a assistência israelense aos paramilitares da Guatemala e da Colômbia não foi uma série direta de transações ideologicamente neutras, mas sim uma intervenção contínua colorida por uma variedade de distintas afinidades - religiosa, política e colonial.

Em sua obra clássica, Império, Hardt e Negri (2000, p.46) consideram algumas das "alternativas reais e potenciais para liberação que existem dentro do Império". Eles sugerem que a globalização, longe de ser a fonte de todos os nossos males, pode conter em si possibilidades emancipatórias positivas, que expressam "o poder da multidão global" (ibid., p.47). Qualquer estudo do envolvimento britânico e israelense na América Latina durante esse período sugere, pelo menos, a necessidade de algumas reservas. No mundo pré-digital dos anos 70 e 80, o que é notável é a velocidade com a qual forças reacionárias podiam mobilizar todo tipo de assistência - econômica, militar, política, ideológica e cultural - para suas contrapartes, empregando uma destreza assustadora e, nos momentos de mais sublime cooperação um assombroso senso de harmonia. Aqui não é o lugar para contestar a convicção de Negri e Hardt de que a globalidade do capital pode se provar sua ruína - de fato, eventos atuais por todo o globo podem até reforçar essa tese - mas é instrutivo ter em mente que a assistência que líderes médio-orientais e norte-africanos simpáticos como Muammar Gaddafi e o PLO ofereceram a movimentos como os sandinistas começou realmente mais de quinze anos depois que Israel já havia entregue seu primeiro carregamento de armas para a Nicarágua.

O apoio internacional de ditaduras militares, governos brutais e redes paramilitares na América Latina durante as décadas de 70 e 80 se enquadrava em um padrão. Não foi um padrão de simetria perfeita, nem um modelo matemático que poderia ser usado para prever desenvolvimentos futuros, e certamente não era um paradigma livre de desvios, variações e idiossincrasias espontâneas. Era um padrão, porém, que produziu fenômenos - o deslocamento de camponeses, o assassinato de povos indígenas, a tortura e desaparecimento de ativistas e sindicalistas - que podem ser encontrados tão longe quanto as colinas de Oaxaca, as florestas de Ixil, as ruas de Bogotá, as delegacias de Santiago e as garagens subterrâneas de Buenos Aires. Nas salas de reunião de Nova Iorque, Londres e Chicago, uma certa lógica familiar de preferência por capital acima de pessoas foi cultivada, cujos efeitos ecoariam em infindos centros de comando e escolas de treinamento, e reecoariam nos clubes de elite e escritórios fechados de praticamente todos os países latino-americanos. A triste complexidade desse processo plutocrático, que atrairia dólares, armas e ajuda de sheiks sauditas, ministros israelenses, oficiais taiwaneses, empresários britânicos e generais sul-africanos, não é surpreendente, mas deprimente; não é impenetrável ou enigmática, mas escura e profunda.

Um julgamento latino-americano se faz necessário. Durante o período em questão, centenas de milhares de seres humanos não foram apenas executados, mas literalmente estrangulados, estripados, esfolados, eletrocutados ou fisicamente espancados até a morte. Mais de trinta anos se passaram desde as piores atrocidades consideradas nesse breve estudo. Candidatos óbvios para tribunais de crimes de guerra - como o ex-Secretário de Estado dos EUA Henry Kissinger, a ex-Primeiro-Ministro britânica Margaret Thatcher ou o ex-presidente guatemalteco Efrain Rios Montt - são agora velhos demais para que qualquer julgamento eficaz ocorra. E ainda que na Argentina e Chile algum progresso esteja sendo feito na identificação e perseguição de criminosos de guerra, uma vasta quantia de funcionários e políticos sênior britânicos, americanos e israelenses - que foram apoiadores e auxiliares dos piores massacres, abduções e programas de tortura e participaram, diretamente ou indiretamente, em sua implementação - permanecem intocados por qualquer forma de retribuição judicial. Esses incluem oficiais de defesa de todos os três governos; oficiais militares que deram, permitiram e organizaram treinamento para perpetradores dos massacres; delegações diplomáticas, chegando até o escritório do próprio embaixador, que sabidamente facilitou instrução militar ou auxílio aos perpetradores; funcionários de governo e seus secretários e equipe que endossaram vendas de armas para óbvios abusadores dos direitos humanos; lobistas britânicos, americanos e israelenses que ajudaram a contornar estruturas já existentes de controle e regulação - seja para permitir equipagem e ajuda ou para abafar ativamente notícias de atrocidades de serem disseminadas. A relativa escassez de atenção judicial internacional a tão óbvios crimes não age apenas como incriminação moral do Ocidente, mas também encoraja suspeitos de crimes de guerra como Otto Perez Molina (recentemente eleito presidente da Guatemala) a continuarem imperturbados com suas carreiras políticas.

Bibliografia

Bibliography
Asturias, C., 1977. Sintesis de Acontecimientos en el Conflicto Arabe-Israeli de Mayo 1948 a Enero de 1977. Revista Militar, Enero-Junio (12): pp. 51-8.

Aviel, J. F., 1990. ‘The Enemy of My Enemy’: The Arab-Israeli Conflict in Nicaragua. In: Fernandez, D. J. (ed.), Central America and the Middle East: The Internationalization of the Crises. Miami: Florida University Press, pp. 13-41.

Bahbah, B., 1986. Israel and Latin America: The Military Connection. New York: St Martin’s Press.

Beckett, A., 2003. Pinochet in Piccadilly: Britain and Chile’s Hidden History. London: Faber and Faber.

Beit-Hallahmi, B., 1987. The Israeli Connection: Who Israel Arms and Why. New York: Pantheon Books.

Black, G., 1984. Garrison Guatemala. New York: Monthly Review Press.


Castano, C., 2001. Mi Confesion: Carlos Castano Revela sus Secretos. Bogota: Editorial Oveja Negra.

Chomsky, N., 1996. World Orders Old and New. New York: Columbia University Press.

Cockburn, A., and Cockburn, L., 1991. Dangerous Liaison: The Inside Story of the U.S.-Israeli Covert Relationship. New York: Harper Collins.

Fernandez, D. J., (ed.), 1990. Central America and the Middle East: The Internationalization of the Crises. Miami: Florida University Press. Garcia-Granados, J., 1948. The Birth of Israel. New York: Knopf.

Garrard-Burnett, V., 2010. Terror in the Land of the Holy Spirit. Oxford: Oxford University Press.

Gill, L., 2004. The School of the Americas. Durham: Duke University Press. Hardt, M. and Negri, A., 2000. Empire.

Cambridge: Harvard University Press. Hunter, J., 1987. The Israeli Role in Guatemala. Race & Class 31(1), pp. 35-54.

Jamail, M. and Gutierrez, M., 1986. It’s No Secret: Israel’s Military Involvement in Central America. Massachusetts: Belmont.

Jamail, M. and Gutierrez, M., 1990. Israel’s Military Role. In: Fernandez, D. J. (ed.), Central America and the Middle East: The Internationalization of the Crises. Miami: Florida University Press, pp. 122-49.

Klein, N., 2007. The Shock Doctrine. New York: Metropolitan Books.

Klich, I., 1990. Israel, the PLO and Nicaragua: The Kernel and the Shell. In: Fernandez, D. J. (ed.), Central America and the Middle East: The Internationalization of the Crises. Miami: Florida University Press.

Landau, S., 1993. The Guerrilla Wars of Central America. London: Weidenfeld and Nicholson.

Lawson, G., 2004. Negotiated Revolutions. London: Ashgate.

Lifshitz, Y., 2010. Defence Industries in Israel. In: Tan, A.T.H. (ed.), The Global Arms Trade: A Handbook. London: Routledge, pp. 266-79.

Lofving, S., 2004. Paramilitaries of the Empire: Guatemala, Colombia, and Israel. Social Analysis 54(1), pp. 156-60.

McGee Deutsch, S., 1986. The Argentine Right and the Jews. Journal of Latin American Studies 18(1), pp. 113-34.

Metz, A., 1993. Review Essay of “Israeli Military assistance to Latin America“. Latin American Research Review 28(2), pp. 257-63.

Phythian, M., 2000. The Politics of British Arms Sales Since 1964. Manchester: Manchester University Press.

Polakow-Suransky, S., 2010. The Unspoken Alliance. New York: Pantheon Books.

Ronen, J., 1984. Il Medio Oriente. Tiempo Argentino, 4th March. Reprinted in Revista Militar (Guatemala), Enero -Abril 1984, No. 31, pp. 109-22.


Rubenberg, C. A., 1990. The United States, Israel and Guatemala: Interests and Conflicts.

In: Fernandez, D. J. (ed.), Central America and the Middle East: The Internationalization of the Crises. Miami: Florida University Press, pp. 94-121.

Schirmer, J., 1998. The Guatemalan Military Project. Philadelphia: University of Pennsylvania Press.

Shahak, I., 1982. Israel’s Global Role: Weapons for Repression. Massachusetts: Belmont. SIPRI, 1975. Arms Trade Registers: The Arms Trade with the Third World. Cambridge, MA: MIT Press.

Somoza, A., and Cox, J., 1980. Nicaragua Betrayed. Boston: Western Islands.

Stokes, D., 2005. America’s Other War: Terrorizing Colombia. London: Zed Books.

Stoll, D., 1993. Between Two Armies in the Ixil Towns of Guatemala. New York: Columbia University Press.

Wilkinson, D., 2011. The Killers of Colombia. The New York Review of Books, June 23rd, pp. 38-42.

Wright, T. C., 2007. State Terrorism in Latin America. Lanham: Rowman and Littlefield.

Zizek, S., 2003. The Puppet and the Dwarf: The Perverse Core of Christianity. Cambridge, MA: MIT Press., 2006. The Parallax View. Cambridge, MA: MIT Press.