22/05/2015

Angel Millar - Espiritualidade, Marxismo e o Futuro da Religião

por Angel Millar

Tradução de Lucas Leiroz



Em uma das revelações mais surpreendentes do ano, “no que concerne teoria socioeconômica”, disse Dalai Lama em janeiro, “eu sigo sendo marxista”.

Religião, espiritualidade, socialismo e capitalismo têm, talvez, se cruzado por mais de um século no Ocidente, com movimentos resultantes se expressando em noções de “direitos”, ou, pelo contrário, conservadorismo social. 

O movimento da Teosofia, inspirado no hinduísmo e na antiga religião egípcia, buscou explicar a desigualdade social pelo Karma, e isso teve um impacto significativo no anticolonialismo na Índia e no Ceilão. Sufragistas e ativistas dos direitos das mulheres eram, no início, muitas vezes, espiritualistas do sexo feminino. E quem poderia esquecer os socialistas cristãos de inspiração marxista da Teologia Católica da Libertação?

Religião e espiritualidade também têm encontrado expressão no lado oposto do espectro político, “da direita cristã” pró-capitalista, ao uso nazista da imagética e pompa tanto pagã quanto cristã, ao interesse recente em Aleister Crowley pela extrema-direita (que a maioria dos devotos de Crowley, sem dúvidas, deploram, considerando a tendência de Crowley à quebra de regras e ao sexo atrevido).

Mas, enquanto a direita cristã capitalista ainda tem uma influência em partes dos EUA, a fusão de espiritualidade e anticapitalismo emergiu como a força mais significativa da esquerda, com o Occupy Wall Street e os seus protestos, sessões de ioga e meditação em massa. Fora da América, Dalai Lama se proclama economicamente marxista e o Papa Francisco ataca o capitalismo e a economia de "conta-gotas". 

A religião alcançou seus limites?

“Em países capitalistas há um crescente abismo entre ricos e pobres. No marxismo há uma ênfase na distribuição igualitária. Isso é crucial para mim.”, comentou Dalai Lama. 

Poucos duvidam que os ricos estejam ficando mais ricos e os pobres cada vez mais pobres, mas se deseja saber por que Dalai Lama e Papa Francisco, bem como a direita cristã, passaram a pensar em economia por termos de capitalismo e socialismo, ou anticapitalismo – ideias políticas e sociais – em vez de buscar possibilidades dentro de suas próprias religiões, fosse com o Distributismo (a doutrina econômica católica com base na encíclica Rerum Novarum e na Quadragesimo anno do Papa Pio XI) ou noções mais recentes do “capitalismo do Dharma”.

É notável que só o islamismo, com sua "shari'a financeira" - e "hipoteca shari'a" e daí em diante -  chegou a um entendimento econômico proveniente de sua religião (embora muitas vezes pensadores islâmicos tenham sido influenciados pelo marxismo, como o caso de Ali Shariati, no Irã). Não é por acaso que o islã, de todas as religiões do mundo, é a mais assertiva no momento.

Com a guinada de Dalai Lama e Papa Francisco para pensamentos econômicos fora das religiões, sugerimos que, talvez, as religiões tenham se tornado incapazes de enfrentar as injustiças econômicas modernas. Ou que, talvez, hajam perdido a fé em si mesmas para fazer mudanças no mundo. 

Talvez pelo cristianismo ser frequentemente criticado por ter sido o motor histórico do imperialismo, do racismo e assim por diante, que ele busca, naturalmente, se fundir com o lado político contra tal injustiça, à direita, se manter firme numa espécie de identidade defensiva cristã, desprovida de qualquer elemento da mensagem de Jesus.

Mas, mais importante que isso, o moderno movimento espiritual do Ocidente, mesmo solto e fluido, ultrapassou igrejas estabelecidas como força de mudança social, reivindicando, com ou sem razão, que suas ideias sociais eram parte de tradições antigas nas quais o movimento se inspira.

Isso é raramente verdade, mas ainda assim, praticantes espirituais que também são defensores dos direitos das mulheres podem reivindicar a adoração de deusas etc. na antiga Europa ou Índia (embora a adoração de entidades femininas não signifique necessariamente a emancipação da mulher). O mesmo pode ser dito para qualquer outra crença social que seja imaginada como existente antes do cristianismo. Tais crenças podem não ser fundamentadas factualmente, mas isso é irrelevante quando as pessoas são motivadas por mitos, imagens, imaginação e ideias. É isso que nos dá energia. 

Capitalismo revolucionário ou a antiga rede renovada:

Christopher Hitchens gostava de descrever a si mesmo como “um socialista vivendo em um tempo onde o capitalismo é mais revolucionário”. É uma avaliação interessante, e que reflete o fato de, em muitos casos, os valores da centro-esquerda se entrincheirarem no mercado. Isso pode ser a venda de Che Guevara em sorvetes embalados (Cherry Guevara) ou a grande indústria lutando para abrir fronteiras, de modo a se beneficiar da importação de mão-de-obra barata, o capitalismo pode canalizar a esquerda e até mesmo ideias socialistas.   

Mas também podem muitos partidos de esquerda e praticante espirituais canalizar o capitalismo. “Muitos líderes marxistas”, afirma Dalai Lama, “são agora capitalistas em seu pensamento”. 

Estamos todos familiarizados com o termo “socialismo champanhe”. Para o socialista champanhe, ostentar crença na igualdade social sempre foi uma forma de justificar o fato de ter mais dinheiro que os outros. Quem deve ter mais dinheiro? O ético ou o antiético? Vocês veem, eles merecem isso. 

Assim também é por vezes com a adoção de formas ocidentais de espiritualidade. Como o pensador neo-comunista e crítico cultural Slavoj Zizek observou, o comerciante de Wall Street pode usar, por exemplo, a meditação budista ocidental como uma forma de lidar com as tensões do mercado. Ele pode se convencer de que tudo é “ilusão”, de modo que ele não está fazendo nada de errado em empobrecer as pessoas e enriquecer aqueles que já são mais ricos do que quase todos os outros, inclusive ele próprio.

Uma espiritualidade religiosa socialista? 

O que significa quando os líderes do budismo tibetano e do catolicismo romano estão apaixonados pela economia de esquerda? Além disso ser um reflexo, como o Papa observou, do abismo crescente entre ricos e pobres, parece indicar tanto uma perda de confiança nessas religiões e a possibilidade (principalmente para um cristianismo não-direitista) de ressurgimento. 

Carente por tanto tempo, talvez o cristianismo vá redescobrir uma espiritualidade cristã por detrás da economia. Este não é o caminho ideal para uma experiência mais gnóstica, mas é claro que o cristianismo precisa de mais do que de direita pró-capitalista e negócios como de costume, com a sua frequência de idas à igreja declinando. 

Mais que tudo, entretanto, isso parece sugerir que a religião (especialmente budismo e cristianismo) fundirá espiritualidade com economia.