29/11/2012

Primeiros Elementos de Análise sobre a Ofensiva Israelense em Gaza

por Julien Salingue



À hora a que escrevemos estas linhas, a ofensiva israelense contra Gaza continua em marcha. Mesmo que o futuro seja incerto, é no entanto possível fazer já um primeiro balanço dos acontecimentos destes últimos dias. 

1) O Estado de Israel e as vítimas dos tiros de foguetões: as profecias auto-realizáveis 

Não se trata aqui de negar a realidade dos disparos de foguetões sobre o sul de Israel, nem sequer do facto de eles terem aumentado consideravelmente durante o ano de 2012. Os números do exército israelense e dos grupos armados palestinos concordam quanto a este ponto. Mas um dos pontos sobre os quais o exército israelense pouco informa é o número de vítimas dos foguetões e dos obuses de morteiros, e os períodos durante os quais esses civis israelenses foram mortos. É verdade que essas estatísticas tendem a demonstrar que as fases de operações militares israelenses são precisamente aquelas durante as quais o número de vítimas civis é mais elevado. 

Se nos contentarmos em observar o ciclo aberto pela tomada de controlo de Gaza pelo Hamas em Junho de 2007, contam-se de facto 13 vítimas civis, das quais 7 (ou seja, mais de metade) durante as operações "Chumbo Grosso" (inverno de 2008-2009, 4 mortos) e "Pilar Defensivo" (ofensiva m curso, 3 mortos até agora). No que respeita a esta última, é forçoso constatar que foi desencadeada quando os foguetões já não faziam qualquer vítima há mais de um ano e que, a partir do dia seguinte ao assassínio de Ahmad Jaabari, responsável militar do Hamas, foram mortos 3 civis israelenses. Israel incluiu imediatamente essas três vítimas na sua "contabilidade" e agora serve-se delas para justificar a prossecução e alargamento da ofensiva militar. 

Na operação em curso, há pois, do estrito ponto de vista do número dos civis israelenses mortos por disparos de foguetões, uma inversão das causas e das consequências. Da mesma forma, no momento do desencadeamento da operação "Chumbo Grosso", há mais de 6 meses que os foguetões não matavam ninguém e só fizeram 4 vítimas nos 3 dias seguintes aos primeiros bombardeamentos israelenses. A resposta palestina às operações israelenses servem pois como pretexto, a posteriori, para legitimar estas últimas, o que confere ao discurso actual da instituição israelense uma evidente dimensão de profecia auto-realizada. 

2) Populações feitas refém pelo cinismo político de Netanyahou 

Para além dos pretextos, trata-se pois de nos interrogarmos sobre as reais motivações do governo israelense. A maior parte dos analistas e comentadores sublinharam, e bem, que evidentemente o timing da operação deve considerar-se em relação com o prazo das futuras eleições israelenses, como já tinha acontecido aquando da operação "Chumbo Grosso". Vai haver eleições legislativas em Janeiro, as forças políticas estão em campanha, e é claro que a operação em curso deve ser analisada nesse contexto. 

Provocando o Hamas e aumentando a tensão militar, o governo de Netanyahou dá assim uma imagem de chefe da guerra e obriga os outros partidos a calar as suas críticas em nome da união nacional. Ainda por cima, a reacção dos grupos armados palestinos arrasta uma radicalização da sociedade israelense que deverá beneficiar as forças políticas mais extremistas, na ocorrência o Likoud e o partido da extrema-direita Israel Beitenou, que decidiram apresentar uma lista comum para as eleições legislativas. A desventura que aconteceu ao partido Kadima que dirigiu o governo saído em 2009 e que foi ultrapassado "pela direita" aquando das eleições, não pode voltar a acontecer. 

Além disso é essencial pensar no timing desta ofensiva no contexto do pedido palestino para admissão na ONU, com o título de estado não-membro, sobre o qual a Assembleia-Geral se deverá pronunciar a 29 de Novembro. Se o Estado de Israel sabe que, no caso de uma votação, não pode impedir essa admissão, a operação em curso, voltando a actualizar as teses do "ciclo da violência" e das responsabilidades partilhadas, poderá convencer certos estados indecisos, nomeadamente na Europa, a decidir não decidir, abstendo-se do voto em 29 de Novembro. As primeiras declarações dos estados europeus, entre outros a França, que põem as duas partes de costas viradas uma para a outra, quando não acusam directamente o Hamas, como a Grã-Bretanha, parece darem razão a Netanyahou e aos seus cálculos políticos. 

O cinismo de Netanyahou, que manobra mantendo como reféns as populações de Gaza e do sul de Israel, é denunciado pelo próprio Israel. Mihal Wasser, professora israelita que mora numa localidade situada a 3 quilómetros de Gaza, assinou uma corajosa carta à atenção de Netanyahou no quotidiano Haaretz, na qual escreve nomeadamente o seguinte: "Se se preocupa connosco, deixe de nos defender com foguetões, acções "sobre alvos" e "voos dissuasores". Em vez da operação Pilar Defensivo, lance-se numa operação Esperança pelo Futuro. É mais complicado, para isso é preciso paciência e é menos popular".[1]

3) Israel visa o Hamas para apanhar desprevenidas as evoluções regionais 

Mas é indispensável ir mais longe do que as datas limite das eleições israelenses e das Nações Unidas. Visando directamente o Hamas, as autoridades israelenses demonstram na verdade que mediram o perigo representado pelas evoluções regionais em curso apresentadas, entre outras coisas, pela alteração da situação política no Egipto. Já há vários anos que o Hamas iniciou uma longa migração que a levou a posicionar-se no centro do jogo político palestino, incluindo nas instituições da autonomia que inicialmente tinha boicotado [2] e no centro do jogo político regional. 

Na busca de respeitabilidade e a fim de aparecer como um interlocutor respeitável, o Hamas aplicou uma estrita política em Gaza no que se refere aos foguetões. Com efeito, e contrariamente às afirmações repetidas das autoridades israelenses, o Hamas, no decurso destes últimos anos, não encorajou os grupos armados a atirar foguetões sobre Israel, mas dissuadiu-os disso, pela força inclusive. A própria Leila Shaid, pouco suspeita de simpatia para com o Movimento da resistência islâmica, reconheceu isso numa entrevista dada à RTBF a 18 de Novembro de 2012: "não é o Hamas que está a atirar, não é verdade que seja o Hamas. É a Jihad islâmica e outras organizações. O Hamas, (…) por razões obviamente de oportunismo, fez respeitar um cessar-fogo integral, nunca mais houve tiros". [3]

No passado mês de Maio, o Hamas instituiu uma força de 300 homens encarregada de impedir disparos de foguetões. Esta força procedeu a inúmeras detenções e confiscações de material, mesmo de grupos influentes como a Jihad Islâmica e os Comités de Resistência Popular. Como realçou então Avi Issacharoff, do Haaretz, "o facto de se ter formado esta nova força anti-foguetões tende a demonstrar que o Hamas procura manter a calma na frente de segurança a fim de poder estabelecer melhor a autoridade do seu governo na faixa [de Gaza]". [4] O acordo tácito entre o Hamas e grupos armados era que as autoridades não interviriam no caso de resposta palestina a bombardeamentos aéreos ou terrestres, mas que impediriam toda a iniciativa militar a partir de Gaza. 

Este empenho do Hamas, tal como a sua atitude pragmática aquando das negociações que levaram à libertação de Gilad Shalit, fazem parte do seu recém-estatuto de interlocutor reconhecido regionalmente, reforçado pelo processo revolucionário em curso e nomeadamente pela conquista do poder no Egipto pela Irmandade Muçulmana. [5] O boicote do Hamas, decretado pela grande maioria dos estados árabes na sequência das eleições legislativas de 2006 não durou muito: em Janeiro passado, Ismaïl Haniyyah, primeiro-ministro do governo de Gaza, foi acolhido pelos novos responsáveis tunisinos; em Julho, foi oficialmente recebido pelo presidente egípcio recém-eleito Mohammad Morsi, um encontro impensável na era de Moubarak; a visita, com grande pompa do emir do Qatar a Gaza no fim do mês de Outubro foi o último acontecimento consagrando o novo centralismo regional do actor político Hamas. 

4) Israel não visa grupos armados mas um movimento político e uma orientação política 

O primeiro alvo "oficial" da operação em curso foi Ahmad Jaabari, responsável pelo ramo militar do Hamas, assassinado a 14 de Novembro. Esta escolha está longe de ser anódina e confirma na realidade os objectivos políticos inconfessados do governo israelense. Jaabari, pela sua posição no seio do Movimento da resistência islâmica, ocupa na verdade um lugar central no dispositivo político do Hamas no seio da faixa de Gaza. Foi ele quem supervisionou as conversações que levaram, em Outubro de 2011, à libertação de Gilad Shalit e à "troca" dele por 1027 prisioneiros palestinos, e o seu papel foi saudado pelos mediadores israelenses e internacionais. 

Mais eloquente sem dúvida, Jaabari foi quem convenceu os grupos de Gaza a aceitar um cessar-fogo com Israel, chegando mesmo, uns dias antes do seu assassínio, a elaborar uma proposta de tréguas duradouras, como confirmou Gershon Baskin, mediador israelense na libertação de Gilda Shalit: "A. Jabari não estava apenas interessado num cessar-fogo duradouro; também foi ele o responsável por fazer respeitar os acordos precedentes de cessar-fogo obtidos pelos serviços de segurança egípcios (…) Na manhã do dia em que foi morto, A. Jabari recebeu uma minuta de proposta de cessar-fogo alargada a Israel, incluindo mecanismos que permitissem verificar as intenções [de uns e de outros] e de garantir a possibilidade de um entendimento". [6]

Jaabari foi uma das principais encarnações, ao lado do primeiro-ministro Ismaïl Haniyyah, da corrente "pragmática" do Hamas, disposto a convencer os partidários da opção militar, a base do movimento e os grupos palestinos sobre a necessidade de manter uma calma relativa entre Israel e Gaza a fim de obter um desanuviamento em torno da pequena faixa costeira, sem renunciar ao princípio da luta para a satisfação dos direitos dos palestinos: "M. Jabari compreendia a futilidade dos tiros de foguetões contra Israel que na verdade não provocavam desgaste em Israel mas dezenas de vítimas em Gaza. A. Jabari não estava disposto a abandonar a estratégia de "resistência", ou seja, o combate contra Israel, mas tinha compreendido a necessidade duma nova estratégia e estava disposto a aceitar um cessar-fogo a longo prazo". [7]

Ao visar Jaabari e ao conduzir uma operação de envergadura, Israel envia na realidade uma "mensagem" ao Hamas, dando-lhe a entender que ele tem que escolher entre a resistência e a capitulação e que não será tolerada nenhuma orientação política que tente misturar negociações com Israel e a manutenção das reivindicações nacionais palestinas. Trata-se pois de empurrar o Hamas "para o erro" reforçando os partidários da opção militar no seu seio, correndo o risco, para o movimento, de perder uma grande parte da sua legitimidade regional que adquiriu nos últimos anos. Com efeito, nem o Qatar, nem o Egipto apoiarão o princípio duma confrontação armada duradoura, que o digam os esforços feitos a partir do Cairo e de Doha para chegar a um cessar-fogo. Logo aí, a ofensiva em curso, se bem que contribua de facto para reforçar em Gaza o prestígio do Hamas enquanto organização "de resistência", pode, a meio termo, enfraquecer o movimento da resistência islâmica. Com efeito, sob a pressão dos seus padrinhos árabes, os pragmáticos do movimento vão provavelmente tentar obter um cessar-fogo que, se não for acompanhado pela melhoria das condições de vida em Gaza e pela paragem das incursões e bombardeamentos israelenses [8] , aprofundará as clivagens internas no Hamas e reforçará os outros grupos palestinos partidários da manutenção duma pressão militar, por mais derisória que seja, sobre Israel. 

5) Israel: "Por mais que mude, é sempre a mesma coisa" 

A operação em curso não passa duma nova manifestação da natureza real da estratégia do estado de Israel em relação aos palestinos. Testemunho disso é o facto que posso aqui evocar, sem o modificar, e que escrevi há cerca de 4 anos aquando da operação "Chumbo Grosso": [9]

Sob falsos pretextos (…), o objectivo de Israel é pois claro: na impossibilidade de poder desembaraçar-se do povo palestino, os dirigentes sionistas podem tolerá-los em cantões isolados, na condição de que esses cantões não sejam controlados por forças hostis a Israel. A ofensiva actual é pois um sangrento "golpe de pressão" sobre o Hamas e sobre a população palestina: ou capitulam ou vão parar ao inferno. 

A ofensiva contra Gaza situa-se pois na continuidade das políticas israelenses desde há 60 anos: trata-se de demonstrar ao povo palestino e aos seus dirigentes que, lá porque são tolerados em reservas rodeadas de muros, não podem esperar obter nada mais. Trata-se de recordar que é Israel quem define as regras do jogo, quem escolhe os dirigentes, quem assassina ou ameaça de morte os que não são suficientemente conciliadores, quem arma e desarma as forças de segurança, a seu bel-prazer. Quem abre e fecha as portas da entrada dos cantões. 

A atitude de Israel em relação a Mahmoud Abbas, apesar de conciliador, que há muito renunciou a toda a perspectiva de confrontação com Israel, cujas forças de segurança na Cisjordânia cooperam diariamente com os serviços israelenses, e que se agarra desesperadamente a uma solução negociada, inscreve-se nesta dinâmica. Com efeito, o estado de Israel ameaça Abbas com "represálias" no caso de pedido de admissão na ONU, havendo mesmo quem invoque a hipótese do derrube de Abbas. [10] Uma hipótese pouco plausível, mas que demonstra até que ponto mesmo o dirigente mais dócil é imediatamente chamado à pedra quando sai da agenda fixada pelo único Estado de Israel e até que ponto o alegado "processo de paz" não passa de um isco destinado a alimentar a ilusão duma "negociação" possível enquanto, no terreno, Israel prossegue o seu empreendimento de colonização e espoliação. 

Leila Shahid, na entrevista já citada, parece reconhecer assim (finalmente) que o quadro do "processo de paz" está caduco, e que a estratégia da direcção da OLP, a saber, a procura duma solução negociada entre Israel e os palestinos sob a égide dos Estados Unidos fracassou: "decidimos, há 19 anos, suspender toda a luta militar para decidir negociar a solução dos dois estados. Mas, sejamos honestos, falhámos. Há já 20 anos que negociamos a solução preconizada pelo presidente Mahmoud Abbas, pelo primeiro-ministro, por Yasser Arafat antes da sua morte, por assim dizer, a solução da ocupação militar dos nossos territórios há 45 anos. E o que é que fizemos? Nem sequer conseguimos fazer retirar o exército israelense nem de Gaza nem da Cisjordânia, nem de Jerusalém ocidental. (…) A estratégia da minha direcção, a minha, a que eu continuo a defender desde há 45 anos, falhou. Digam-me, para que serviram as negociações durante 20 anos? Começámos a negociar em Madrid em 1990. Continuámos em 1993, fizemos parar a luta armada, quisemos mostrar que respeitávamos o direito internacional e Israel deu-nos uma bofetada". [11]

6) Um novo dado regional? 

Estas declarações revelam na realidade que é cada vez mais evidente, aos olhos de todos os actores implicados, que os "parênteses de Oslo", abertos no início dos anos 1990, estão em vias de se fechar. O impasse inerente ao "processo de paz" e a prossecução da política expansionista israelense está hoje redobrado por uma mudança do dispositivo regional que abre outras perspectivas políticas aos palestinos para além de um tête-à-tête com Israel sob a supervisão dos Estados Unidos, em que os países árabes actuam como clientes ausentes. Atirando-se ao Hamas e tentando pô-lo em discordância com os seus padrinhos árabes, o estado de Israel reconhece, paradoxalmente, que tomou consciência do fecho programado dos parênteses de Oslo e dos riscos que isso lhe acarreta. 

Longe de ser uma reacção aos disparos de foguetões, a ofensiva em curso pode ser considerada assim como um "ataque preventivo" contra as consequências prováveis do reequilíbrio regional em curso. Israel já não pode contar, como anteriormente, com regimes árabes submissos à agenda dos Estados Unidos e portanto não é arriscado emitir a hipótese segundo a qual um dos alvos indirectos do ataque é o Egipto. [12] Embora este último não tenha rompido com a política externa da era de Mubarak, nomeadamente no que se refere ao Tratado de Campo David e aos laços com os Estados Unidos, pretende ocupar no entanto um lugar significativo no seio do dispositivo regional, passando nomeadamente por um papel novo no "dossier" palestino. 

Ao precipitar os acontecimentos desencadeando uma operação militar de envergadura contra Gaza, que parece visar prioritariamente o Hamas, o governo israelense põe à prova o novo regime egípcio. Este não pode continuar a contentar-se com uma solidariedade de princípio, que passa pelas declarações de apoio aos palestinos ou pelos votos que exigem a revisão do Tratado de Campo David. O presidente Morsi tem que agir a fim de demonstrar, por actos, que a era Moubarak passou, senão arrisca-se a perder uma parte do seu apoio popular, sem que isso encoraje a hostilidade regional contra Israel, uma atitude que poderia levar os Estados Unidos, cuja ajuda financeira continua considerável, a sancionar o novo regime. 

O Egipto encontra-se na verdade no centro do jogo, mas Mohammad Morsi vai ter que dar provas da sua capacidade em manejar a política real. O presidente egípcio é obrigado a enfrentar as contradições do Egipto pós-Moubarak, e a aceleração provocada por Israel vai necessariamente influenciar as reconfigurações em curso a nível regional. O ciclo de Oslo está em vias de se fechar e com ele o princípio duma "regulamentação" da questão palestina imposta pelos Estados Unidos e por Israel, com o assentimento dos países árabes. Já está aberto um novo ciclo, produto do fracasso de Oslo e dos processos revolucionários árabes. Não há dúvidas de que a ofensiva israelense em curso, cuja evolução é incerta, e as suas consequências políticas e diplomáticas contribuirão para definir as coordenadas deste novo ciclo que será manchado, como sempre na Palestina, com o sangue dos habitantes de Gaza. 

18/Novembro/2012

[1] Ver a carta traduzida em francês no site da Union Juive Française pour la Paix [3] e o original em inglês no site do Haaretz. [4] 
[2] Sobre as mutações internas do Hamas reveladas pela sua participação nas eleições de 2006, ver nomeadamente Khaled Hroub "Un Hamas nouveau?", Revue d'études palestiniennes, n°102, hiver 2007 
[3] Entrevista on-line no site da RTBF [5] 
[4] Avi Issacharoff, "New Hamas force in Gaza is foiling rocket attacks against Israel". Haaretz, 10 Maio 2012. On-line no site do Haaretz [6] 
[5] O Hamas, lembremos, saiu do ramo palestino da Irmandade Muçulmana 
[6] Gershon Baskin, "Israel's Shortsighted Assassination", The New York Times, 16 Novembro 2012, on-line no site New York Times [7] 
[7] Ibid. 
[8] Lembremos que, apenas para o ano de 2012, as forças armadas israelenses mataram nada menos de 70 palestinos de Gaza, e isso antes do desencadeamento da operação "Pilar Defensivo" 
[9] Julien Salingue, "Offensive israélienne contre Gaza : une mise en perspective", publicado no site de Contretemps [8] a 6 de Janeiro de 2009 
[10] Ver, por exemplo, Harriet Sherwood, "Israel threatens to overthrow Abbas over Palestinian statehood bid", The Guardian, 14 Novembro 2012, on-line no site do Guardian [9] 
[11] Entrevista on-line no site da RTBF [5] 
[12] De notar que o nome hebreu da operação israelense contra Gaza não é "Pilar Defensivo" mas "Amud Anan", ou seja, "Coluna de nuvens", referindo-se a um episódio bíblico em que Deus protege, por meio duma "coluna de nuvens", os israelitas aquando da travessia do deserto, contra os povos do Egipto. 

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28/11/2012

Jan Olof Bengtsson - Rebatizando a Nova Direita?

por Jan Olof Bengtsson


A "quarta teoria política", Aleksandr Dugin explica em seu novo livro com esse título, é um projeto colaborativo envolvendo também o líder intelectual francês da nouvelle droite, Alain de Benoist, com o qual Dugin aparentemente restabeleceu sua relação outrora próxima. Os dois pensadores parecem ter se encontrado por um período prolongado em Moscou para discutir o conceito, e em conexão com isso, Dugin também publicou uma tradução russa de uma coletânea de ensaios de De Benoist, cujo título em inglês é Contra o Liberalismo: Rumo à Quarta Teoria Política - um título que se poderia dizer ser simplesmente uma indicação mais precisa do conteúdo do próprio livro do Dugin.

Isso indica que aquilo com o que temos que lidar aqui é uma tentativa da parte de Dugin e de De Benoist de lançar o conceito da quarta teoria política como a designação mais adequada de suas posições políticas e filosóficas partilhadas. Mas isso por sua vez levanta a questão de se tudo isso é simplesmente uma questão de rebatizar a Nova Direita. Se este for o caso há, para começar, duas coisas que devem ser ditas.

Primeiro, há a vantagem óbvia de que a quarta teoria política é por diversas razões uma designação melhor do que a nova direita. De Benoist e os outros neo-direitistas sempre reclamaram sobre a designação, na medida em que ela foi usada pela primeira vez pela mídia francesa e de maneira nenhuma indicava as ambições do GRECE de rejeitar e transcender a distinção esquerda-direita. Ainda que fosse claro que eles muitas vezes realmente tentava fazer isso, as objeções eram às vezes difíceis de compreender em vistas do fato de que De Benoist era e, eu acredito, permanece mais conhecido por seu livro Vu de Droite - Anthologie critique des idées contemporaines (1977), premiado pela Academia Francesa com seu Grand Prix de l'Essai, e seu pensamento parecia incorporar ou se sobrepor mais obviamente com várias correntes no que sempre foi corretamente classificado como pensamento direitista, e não esquerdista. Ele também parece ter finalmente aceitado o termo Nova Direita.

Ainda assim, a categorização de seu agrupamento intelectual como simplesmente pertencendo à direita é insuficiente e parcialmente equivocado em vistas da totalidade distinta de sua posição filosófica e interpretação da história. Essas estão muito proximamente associadas com o conservadorismo nas formas em que elas existiram historicamente na Europa, e é, eu creio uma percepção correta de De Benoist e seu grupo que aqueles conservadorismos são não só insuficientes em vários sentidos no presente, mas se demonstraram assim no passado também. A quarta teoria política é um termo muito melhor, que, ainda que puramente formal e abstrato, faz mais jus ao ambicioso projeto do GRECE e comunica melhor sua verdadeira natureza.

Em um nível geral, deve ser dito que tanto o termo conservadorismo e o termo direita são inadequados filosoficamente e historicamente. Na medida em que o termo direita alguma vez já foi associado com a Assembléia Nacional Francesa durante a revolução, há, no mínimo, algo de desproporcional mesmo em um uso evoliano do termo "a verdadeira direita" para a posição "tradicionalista" integral e descompromissada como ele a concebe.

Agora, alguns vão provavelmente pensar que na medida em que no discurso superficial e propagandístico da esquerda (incluindo o liberalismo), a terceira teoria política como descrita por Dugin e, eu suponho, De Benoist, nomeadamente o fascismo em sentido amplo - e, deve ser dito, um tanto imprecisamente - é quase sempre simplisticamente associado com a direita, descrito como um "extremismo de direita", servindo aos interesses da direita em uma nova situação histórica, etc., De Benoist considera o uso do termo quarta teoria política como particularmente adequado para servir à necessidade de marcar e assinalar as diferenças entre essa teoria e a terceira, a qual tem sido deliberadamente obscurecida e minimizada por oponentes ideológicos. Mas nessa conexão, deve-se talvez ter em mente que suas objeções ao fascismo são tais que em substância estão na verdade associadas com a direita europeia histórica e não uma nova direita, de modo que contrariamente às outras partes da quarta teoria política onde há alguma concordância substancial com a esquerda (socialista), nesse sentido particular a necessidade de repudiar o termo direita ao menos não pareceria ser de grande importância. Desnecessário dizer, isso não implica que De Benoist partilha de todas as objeções da direita histórica ao fascismo.

As vantagens da nova designação são, como eu indiquei, muito mais gerais. A introdução dela, e o consenso em relação a ela entre De Benoist e Dugin são bem vindas. Mas a segunda coisa que deve ser dita inicialmente sobre ela como não passando de um rebatismo da Nova Direita é que isso inevitavelmente levanta de novo a questão dos problemas e limitações da Nova Direita como ela existiu historicamente. Se a quarta teoria política é em substância a Nova Direita, ela não representa qualquer avanço em relação a ela. O termo conotaria e expressaria não só as mesmas forças como as mesmas fraquezas. Eu indiquei brevemente em outro lugar quais eu penso serem essas fraquezas, e não vou desenvolver ou repetir isso aqui, mas espero retornar a isso brevemente. As fraquezas são, desde meu ponto de vista, sérias. Como eu tive que enfatizar, a Nova Direita em aspectos centrais sempre foi um tanto distante de minhas próprias posições, especialmente em relação ao que eu incluo como definindo o conceito de modernidade alternativa (que, eu acrescento, não é o mesmo com o que todos os outros que também possam usá-lo preferem defini-lo). Eu considerei isso lastimável, já que há também várias forças, partes valiosas de um corpo de trabalho que é agora enorme, que eu gostaria de ser capaz de apoiar.

Uma coisa óbvia que se deve perguntar aqui é se a colaboração renovada entre Dugin e De Benoist implica que o primeiro simplesmente aceitou todas as posições da Nova Direita. O fato de que isso é improvável fala contra interpretar a quarta teoria política como simplesmente um novo nome para uma coisa velha. Dugin está muito mais próximo da escola tradicionalista do que De Benoist, e ele relacionou o tradicionalismo à identidade russa de uma maneira que torna difícil ver como ele poderia abandoná-lo. Para mim como parcialmente um lindbomiano, isso é, prima facie, em alguns sentidos uma força no pensamento de Dugin em comparação ao de De Benoist, e significa, na perspectiva da colaboração retomada, pelo menos um potencial para uma modificação e desenvolvimento necessários do legado da Nova Direita. Por outro lado, obviamente não é claro em que medida De Benoist tem estado preparado para se adaptar a Dugin.

Mas que a quarta teoria política não é intencionada como um mero novo nome também é sugerido pela maneira que Dugin a descreve em termos de uma "pergunta corretamente feita" ao invés de como um conjunto de respostas prontas, e nos convida a um diálogo construtivo ao invés de esperar uma resposta para uma teoria já elaborada como resultado final. Para muitos, isso é indubitavelmente promissor, após décadas de consistente alienação da Nova Direita em relação a grandes grupos de importantes apoiadores potenciais por sua insistência em seus elementos mais extravagantes como pontos programáticos essenciais e fundamentais (no sentido em que coisas podem ser para eles essenciais e fundamentais). Assim, eles parecem ter se marginalizado desnecessariamente de um modo que às vezes chegou a beirar a irrelevância sectária.

Por outro lado, pode parecer um pouco improvável esperar que Dugin, conhecido por um número de posições um tanto extremas e problemáticas próprias dele, diferentes das da Nova Direita, será capaz de corrigir e melhorar a Nova Direita nesses sentidos. Mas com o novo nome e pelo menos algumas das novas formulações, eles - ele e De Benoist juntos - agora pelo menos em alguma medida parecem sinalizar uma nova abertura. Pelo menos não é impossível que isso poderia finalmente ofertar a promessa de outra reaproximação, nomeadamente com os tipos de posições e tradições que eu tentei indicar como necessário defender. Isso marcaria uma mudança histórica e decisiva. Nós certamente necessitamos de uma quarta teoria política, mas nós também precisamos que essa teoria vá além da Nova Direita. O novo nome deve significar uma nova filosofia, ou uma filosofia em alguns sentidos diferente da Nova Direita. Eu voltarei à questão da medida em que o livro de Dugin retém como razoáveis as esperanças de um tal desenvolvimento.

27/11/2012

Superando o Corpo e a Mente Burguesas

por Mark Dyal e Nick Fiorello


"Eu caminho entre essas pessoas e mantenho meus olhos abertos; elas se tornaram menores e estão se tornando cada vez menores: mas isso é por causa de seus ensinamentos sobre felicidade e virtude. Tanta gentileza, tanta fraqueza eu vejo. Tanta justiça e piedade, tanta fraqueza. Suaves, justos e gentis eles são uns com os outros, como grãos de areia são suaves, justos e gentis uns com os outros". - Zaratustra

Essa discussão da relação entre vitalidade corpórea e conceitual começou com dois tópicos históricos: a "eugenia espiritual" da Itália Fascista e a "eugenia propriamente dita" da Esparta de Licurgo. Na primeira, nós vimos que os fascistas desejavam transformar corpos burgueses fracos em corpos capazes de suportar o peso físico, moral e intelectual da revolução fascista, assim tornando a fisiologia central para o fascismo. Na segunda, nós vimos Licurgo demandar que os espartanos superem a decadência social pela transformação de suas expectativas e da posse de seus corpos.

O exemplo espartano, enquanto revelava as distâncias necessárias para a transvaloração corporal e social de comportamentos e valores decadentes, demonstrou também o poder do ideal grego. Esse ideal, que mantém a interconexão entre mente/alma e o que elas fazem com o corpo, levou à educação simultânea de mente e corpo. Licurgo promovia caráter e traços nobres e masculinos, enquanto limitava caminhos ao status de elite que não envolvessem o enobrecimento da mente pela devoção à guerra e ao sacrifício por Esparta.

Mesmo na descrição da Plutarco da Esparta de Licurgo, escrita uns 600 anos depois de Licurgo ter transformado seu Estado e povo, se vê a naturalidade do ideal grego. Pois em lugar nenhum Plutarco questiona a ideai de que ética e caráter tem algo a ver com o estado do corpo. Plutarco não estava nem mesmo surpreso de que Licurgo era capaz de vender um regime tão duro a seu povo. Talvez isso seja somente dedução da parte de Plutarco (e da nossa). A Esparta de Licurgo aconteceu. Se houve baixas entre o povo espartano - afinal, os modernos estão culturalmente programados a buscar dissenso quando ideais elevados e raros são "impostos" sobre um povo - então que assim seja. A história grega e romana, para não mencionar valores, dão pouca atenção a falhas; mas ao invés abrem vastos espaços para enobrecimento e enriquecimento através de exemplos de grandeza - o próprio ponto das Vidas de Plutarco.

A visão licurgana de vida, com as aspirações humanas focadas em um ideal, é certamente heroica no sentido homérico da palavra; pois o que finalmente se tornaria digno de elogios no pensamento grego - a harmonia platônica e a autorreflexão ociosa - era em Esparta dispensado como decadente. Competição, conflito, poder, ação e conquistas mundanas eram valores olímpicos partilhados por Licurgo e pelos heróis de Homero. E poderia ser dito que os espartanos e os heróis de Homero estão entre um pequeno punhado de homens ocidentais que alcançaram a imortalidade - algo a se considerar quando se examina literatura científica moderna motivada por um claro medo da morte. Ainda que heroísmo e glória (kleos) não sejam o ponto desse trabalho, eles estão implícitos nas reformas de Licurgo, pois as ações que garantiam a nobreza espartana culminavam neles.

Nossa atenção agora se volta para a ciência pós-moderna, especificamente para a Nova Biologia e sua promoção da epigenética como corretivo para a genética newtoniana/materialista. Ao fazê-lo, porém, devemos ter em claro: enquanto Mussolini, outros pensadores fascistas, e Licurgo colocavam o corpo nas trincheiras de uma guerra entre decadência lassa e nobreza dura, a ciência pós-moderna tende a compreender o que é melhor para o corpo como o que é melhor para o homem burguês. Assim, nós devemos ler suas teorias e conclusões contra as aplicações assumidas pelos próprios cientistas burgueses; pois a dureza, nosso objetivo, não é um ideal partilhado pela Nova Biologia, mesmo enquanto seus métodos demonstram o quão transformativa ela possa ser para o homem moderno. Em outras palavras, nós não mais temos o luxo e honra de sermos enobrecidos pela pesquisa. Em outras palavras, nós passamos de dizer Sim para dizer Não.

Corpo e Ambiente

Como a epígrafe do Zaratustra deixa claro, Nietzsche entendeu uma relação direta entre mente, corpo e ambiente. Ainda que ele vá ser discutido detidamente no próximo artigo dessa série, é suficiente dizer que Nietzsche compreendeu o humano como uma série de tipos criados em conjunção com as necessidades morais e sociais das várias formas de vida humana. Os homens modernos, como ele diz acima, estão sendo tornados fracos pela vida mole, confortável e igualitária prometida pela modernidade burguesa. E ainda que o contexto fosse diferente para Licurgo, tanto a Itália Fascista como a Esparta de Licurgo partilhavam do entendimento de Nietzsche sobre o homem e a sociedade. O epigeneticista (e neobiólogo) Bruce Lipton também o faz, explicando sucintamente que o ambiente exerce algum controle sobre a atividade dos genes humanos.

Lipton está trabalhando à sombra de Jean Baptiste de Lamarck, o evolucionista que acreditava que traços individuais adquiridos como resultado da influência ambiental poderiam ser transmitidos transgeneracionalmente. Na verdade, essa ideia básica de Lamarck, conhecida como "herança suave", forma a própria base da ciência epigenética. Enquanto Lamarck foi influente em meados do século XIX e novamente em meados do século XX), sendo lido com entusiasmo por muitos dos principais fisiólogos da época, sua obra foi desacreditada entre os evolucionistas após o sucesso da publicação de A Origem das Espécies de Darwin em 1859. Muitas das suposições de Darwin, tais como a responsabilidade de  fatores hereditários transmitidos no controle dos traços da prole, foram construídos em contradistinção direta a Lamarck. E mesmo ainda que Darwin tenha vindo a lamentar a falta de atenção dada aos fatores ambientais na modificação de material genético, a ciência genética moderna veio a ser dominada pelo determinismo inerente ao A Origem das Espécies.

Ainda que "determinismo genético" possua uma conotação negativa em uma pós-modernidade (popularmente) comprometida com a negação da primazia genética - ao menos no que concerne as proclividades raciais ou de gênero para a excelência ou para a mediocridade - na comunidade científica (genética) esse tem sido um importante controle nas metodologias e hipóteses. A genética clássica, especialmente a obra de Thomas Morgan e a obra redescoberta de Gregor Mendel, foi essencialmente construída dentro do universo conceitual da seleção natural darwiniana, buscando identificar o material hereditário que se acreditava controlar a vida orgânica.

Crick e Watson acreditavam ter encontrado esse material em 1953 quando eles descobriram o DNA, chegando até mesmo a criar o Dogma Central, ou primazia do DNA. A primazia do DNA fornece a lógica para o determinismo genético, reduzindo a vida orgânica a uma série de proteínas codificadas no DNA que representam o determinante primário dos traços de um organismo. Mas ao início do século XXI, o Projeto Genoma Humano (de agora em diante PGH) lançou dúvidas sobre a primazia do DNA, demonstrando que não há genes suficientes para dar conta da complexidade humana. Enquanto muito da ciência do século XX assumia uma razão 1-1 de genes e proteínas construtivas do corpo humano - o que representaria aproximadamente 120.000 genes - o PGH encontrou ao invés somente 25.000; deixando inexplicados 80% dos genes presumidos necessários para a vida e comportamento humanos. 

O geneticista David Baltimore interpretou os resultados do PGH como um chamado para a primazia do ambiente, o que nos leva à epigenética. A epigenética, ou "controle sobre a genética", oferece um modelo explanatório capaz de responder as perguntas levantadas pelo PGH. A pesquisa epigenética recente estabeleceu que a planta do DNA transmitida através dos genes não está firmada em pedra no nascimento, mas ao invés responde ao seu ambiente. Em outras palavras, genes não são destino. Influências ambientais, "incluindo nutrição, estresse e emoção", podem modificar os genes, sem modificar sua estrutura básica.

Ao focar nas proteínas cromossomais regulatórias às quais os filamentos de DNA se ligam, os epigeneticistas tem sido capazes de discernir as funções fisiológicas dos cromossomos independente de DNA, sugerindo um fluxo mais sofisticado de informação através das células humanas. A biologia, segundo esse pensamento, começa com um sinal ambiental, então vai para uma proteína regulatória e apenas então para DNA, RNA e o resultado final, uma proteína.

Porque a pesquisa científica focou primariamente na planta do DNA, as contribuições à hereditariedade humana feitas pelo ambiente passaram majoritariamente desapercebidas. Essas contribuições se manifestam primariamente através de impulsos que ativam doenças hereditárias como o câncer. Predisposições genéticas, em outras palavras, não são em si mesmas causas de doença. Na verdade, somente 5% daqueles que sofrem de câncer ou doença cardiovascular podem atribuir sua aflição à hereditariedade. Mas se o ambiente pode ativar uma doença, ele também pode prevenir doenças.

A fluidez e responsividade final do genoma a fatores ambientais - sejam eles internos ou externos ao corpo - efetivamente nos leva de volta a Mussolini, Licurgo e Nietzsche. Pois ainda que eles não estivessem em uma posição de compreender o corpo nos termos da ciência pós-moderna, sua insistência em uma relação entre corpo e concepção é cientificamente justificada pela epigenética - especialmente quando consideramos as consequências fisiológicas da ciência quântica.

Célula, Corpo e Mente

Einstein revelou que nós não vivemos em um universo com objetos físicos, discretos, separados por espaço morto. O universo é um todo indivisível e dinâmico em que energia e matéria estão tão profundamente emaranhados que é impossível considerá-los como elementos independentes.

Quando cientistas estudam as propriedades físicas dos átomos, tais como massa e peso, eles olham e agem como matéria física. Porém, quando os mesmos átomos são descritos em termos de potenciais de voltagem e comprimentos de onda, eles exibem as qualidades e propriedades de ondas de energia; levando à conclusão de que energia e matéria são a mesma coisa. Para epigeneticistas, esse modelo de energia e matéria permitiu que mente e corpo fossem reunidos, com vários cientistas - entre eles o Dr. Lipton - buscando explicar como o pensamento, como a energia da mente, controla a fisiologia do corpo. O trabalho de Lipton efetivamente demonstrou uma relação direta entre pensamento e o comportamento de proteínas cromossomais regulatórias, tornando possível inferir a habilidade de um indivíduo em sobrepujar a programação genética.

Cada célula é um ser inteligente que pode sobreviver por conta própria, como os cientistas demonstram quando eles removem células individuais do corpo e os transformam em uma cultura. Similarmente, cada célula individual realiza as funções biológicas realizadas por cada sistema de nosso corpo. Cada eucariota (célula possuidora de núcleo) possui o equivalente funcional de nosso sistema nervoso, digestivo, respiratório, excretor, endócrino, muscular e esquelético, circulatório, tegumentar, reprodutor e até mesmo um sistema imunológico primitivo, que utiliza uma família de proteínas similares a anticorpos.

Como humanos, as células solitárias analisam milhares de estímulos do microambiente em que elas habitam. Pela análise desses dados, as células selecionam respostas comportamentais apropriadas para garantir sua sobrevivência. Células singular são também capazes de aprender através dessas experiências ambientais e são capazes de criar memórias, tais como imunidades, que elas transmitem a sua prole.

Lipton crê que é possível explicar o comportamento de humanos através de uma melhor compreensão das células individuais. E colocando de modo simples, o ser humano é somente uma coleção de trilhões de células, cada uma consciente, e respondendo ao ambiente - incluindo a energia corporal. Finalmente, Lipton aponta para a primazia dessa energia em controlar o comportamento celular. E, algo previsivelmente dado suas proclividades americanas pós-modernas para o ecumenicalismo, ele ponta para a "percepção" como uma influência importante na direção e contornos da energia corporal.

Se acreditamos que há algo útil na epigenética e nos resultados dos estudos celulares de Lipton, e acreditamos, então é certamente não o mesmo valor de uso assumido pelo próprio Lipton. Como mencionado acima, Lipton está confortável com a ideia de que o corpo e cada uma de suas células pode ser cuidado pelo controle de "nutrição, estresse e emoção". Porém, em lugar algum em seu trabalho o valor positivo da forma de vida burguesa é questionada em relação a isso. O Dr. Lipton (e certamente não só ele) parece assumir a normalidade da preguiça, da glutonia e do filistinismo cultural que fornece o conteúdo da vida americana contemporânea como de valor positivo para o corpo humano natural, desde que se gerencie adequadamente esses três fatores ambientais.

Dureza Destrói Decadência

A pesquisa epigenética aponta para a fluidez de massa e energia. Essa fluidez nos fornece um modo científico de compreender o ideal grego, bem como um modo científico de explicar o que Yukio Mishima compreendeu instintivamente sobre o corpo: que sem resistências, nós nos tornamos espiritualmente e fisicamente flácidos e dóceis. No espírito do Sol e Aço de Mishima, nós deixaremos de lado "nutrição, estresse e emoção", ao menos ao modo como os cientistas burgueses os assumem, e focaremos ao invés no exercício e em seu papel em criar e sustentar vitalidade. Ao fazê-lo, nós também demonstraremos o grande potencial da epigenética como ferramente dirigida contra a forma burguesa de vida.

O ataque de Mishima contra a modernidade era muscularmente motivado. Ademais de sua conceitualização do heroísmo e da vida heroica - ambas as quais demandam músculos para serem alcançadas - Mishima compreendeu uma relação fisiológica entre palavras e corpos. Os primeiros, ele disse, são figurativamente projetados nos segundos; e o corpo, como o repositório natural de palavras, conceitos e sistemas gramaticais (epistêmicos), é um medidor melhor do estado "espiritual" de um homem do que seus pensamentos. Isso é porque o corpo, segundo Mishima, possui uma relação mais próxima com as ideias do que o "espírito".

Assim, o corpo se conformará a qualquer ideal que se tenha como objetivo. No mundo homérico, a nobreza demandava músculos, porque o heroísmo era o caminho para a nobreza. Mas assumindo uma abordagem epistêmica à idealização do heroísmo de Licurgo, Mishima explicou que, sem palavras, os corpos jamais teriam se conformado a um ideal grego. Não obstante, Mishima também seguiu o caminho de Licurgo através da fisicalidade ao ideal mais elevado da consciência. O aço, como ele disse, ensina o que as palavras não conseguem.

Como Nietzsche, que também usava modelos fisiológicos de consciência, os pensamentos de Mishima sobre o corpo realmente ganham asas quando se passa do corpo individual ao ambiente no qual ele recebe sentido. Geralmente falando, Nietzsche compreendeu que os corpos humanos refletiriam os sistemas éticos e morais em que eles viviam. Mishima assume uma abordagem similar, compreendendo que os corpos refletem os ideais do dia (em questão). Assim, enquanto os gregos idealizavam força e coragem - o suficiente para colocar esses entre os ideais mais valiosos aos quais um homem pode aspirar - a modernidade idealiza o julgamento passivo e a docilidade resignada. Enquanto tal, o heroísmo é tornado um inimigo do povo, a história é privada de exemplos singulares, e homens são ensinados a viver em sistemas codificados através dos quais o possível é popularizado. Os músculos, a base do heroísmo, não possuem valor e são resignados à extinção.

No ambiente moderno decadente descrito de Mishima, a boa forma física não é o ideal; pois a boa forma física é ela mesma burguesa e decadente - mais um veículo para promover o hiper-consumo e o individualismo superficial e auto-congratulatório. O que é ideal é a dureza. É o corpo sendo transformado pela resistência (aço) de flácido e moderno a duro e clássico - não por como ele "parece" (mesmo que isso seja importante) mas pela transformação conceitual que deve ter acompanhado a do que é aparente. Mishima demanda que consideremos quantas de nossas metáforas conceituais como o cinismo e a imaginação estão apoiadas em um senso de inferioridade física e preguiça.

Diferente de Nietzsche, que - para ser lido corretamente - demanda que o leitor veja muito do Último Homem em si mesmo, Mishima parece mais frutífero para aqueles já iniciados nas afecções transformativas do aço. Em outras palavras, é duro entender a transformação que Mishima descreve a não ser que se tenha passado por uma transformação similar. Uma percepção ampliada, ou consciência, através da dureza física é algo que se deve experimentar por si mesmo.

Mas, se nós brevemente nos voltarmos de novo para a ciência, nós podemos ter uma imagem clara de como o corpo reage à dureza. Restringindo nossa discussão somente à testosterona, é possível demonstrar que a mente e o corpo são igualmente transformados pela atividade física dura. Treinamento com pesos breves e com alta intensidade são a maneira mais eficaz de promover grandes aumentos em níveis de testosterona. Testosterona é o principal hormônio sexual nos homens, não somente guiando a libido mas também a experiência prazerosa de encontros sexuais. Ademais das funções sexuais, a testosterona é crítica no desenvolvimento e manutenção da massa muscular e dos ossos.

Porém, estudos do impacto da testosterona na mente também confirmam o valor da dureza física para a cognição. Um desses, publicado em 2006, demonstrou habilidades visual-espaciais, cognição/recognição, e sensos de vitalidade e estima ampliados em homens com altos níveis de testosterona (versos estrogênio). Quimicamente, esses efeitos são causados pelo impacto da testosterona sobre o hipotálamo, o "centro nervoso" da produção e distribuição de hormônios, e o "centro de comando das emoções". Vários homens com os quais discutimos esse artigo - incluindo músicos de jazz vencedores do Grammy - apontaram para a importância da musculação no estímulo da criatividade, da clareza e da concentração.

Como muito do que descrevemos sobre o ideal grego, há uma relação bidirecional entre usar testosterona e muscularidade. Quando a massa muscular do corpo se eleva, sua taxa metabólica - seja ativa ou em repouso - também se eleva. Isso significa que o corpo tem que trabalhar mais para suportar a massa muscular aumentada. Tudo o mais sendo igual, o corpo utilizará mais gordura como combustível para conseguir realizar essa tarefa. Isso é importante porque há uma relação inversa entre níveis de gordura e testosterona, enquanto há uma relação direta entre níveis de gordura e estrogênio. Assim, um alto nível de gordura em relação a massa muscular possui um efeito deletério sobre os hormônios, a vitalidade e a concepção.

Conclusão

Não é o propósito desse artigo, o terceiro em uma série de quatro, argumentar contra a importância da genética na determinação no conteúdo das vidas humanas. Ao contrário, o artigo busca explicar a importância do ambiente e do comportamento pessoal no funcionamento adequado e óptimo do material genético humano. Nossa esperança era usar a ciência, não para justificar a compreensão instintiva de Nietzsche, Mishima, Licurgo ou Mussolini sobre o corpo, a mente e a sociedade, mas para convencer os homens contemporâneos a colocarem a fisiologia no centro de uma revolta contra a modernidade burguesa.

Tanto a epigenética como a ciência hormonal demonstram que o ambiente manipula corpo e mente. Através da dureza (nesse caso, musculação intensiva) é possível colocar uma distância considerável entre si e o ambiente da modernidade burguesa.

A forma de vida burguesa cria o corpo que ela necessita - máquinas obesas e preguiçosas de obediência que consomem alimentos, estilos de vida e remédios inventados pelo capitalismo - com a mesma regularidade e objetividade que a Esparta de Licurgo. Onde um busca decadência e consumo, o outro buscava pureza e heroísmo. Mas mesmo se concordarmos com Nietzsche de que há algo de diminutivo sobre os corpos modernos quando comparados aos produzidos pelas narrativas clássicas de grandeza, nobreza, competição e beleza; e mesmo se o corpo moderno haja sido ativamente disciplinado por processos disgênicos; nós ainda partilhamos da mesma escolha que aquela primeira geração de homens espartanos: fraqueza ou força.

O ambiente burguês moderno dirige o corpo de uma maneira, em direção à suavidade, à doença e à preguiça. Uma revolta contra essa forma de vida deve transvalorar esse processo. O valor final da epigenética não reside somente em fornecer dados científicos para apoiar as compreensões filosóficas tradicionais e contra-iluministas da relação entre sistemas sócio-conceituais e a forma e conteúdo dos corpos, mas também em tornar claro que o corpo desempenha um papel crítico tanto em nossa escravidão, como na nossa liberação, da modernidade burguesa.

Mas a fisiologia decadente, por pior que seja, é composta pela crença contra-moderna de que o conteúdo de nossos pensamentos combina com a forma de nossos corpos. A fraqueza física se acreditava (por Mussolini, Licurgo, Nietzsche e Mishima - só para nomear as figuras importantes nessa série de artigos) representar tanto a causa como efeito da fraqueza ética e conceitual. Certamente, o exemplo individualizado de Mishima da desconfiança das ideias dos preguiçosos, e o olhar pós-cristão de Nietzsche sobre as devastações dos "odiadores do corpo" fornece rupturas na narrativa da decadência fisiológica burguesa. O enobrecimento, como ambos nos lembram, está naturalmente associado com a força.

A ciência epigenética e a Nova Biologia parecem contentes em promover o fortalecimento físico como meio de prevenir a enervação fisiológica, como a mente busca (para eles) a mesma tranquilidade decadente e ócio que até o corpo "apto". Ao invés, nós estamos discutindo que a enervação é o estado normal da mente e corpo burgueses e que a baixa testosterona e vitalidade são consequências diretas dessa forma de vida. O que nós prescrevemos para alcançar nosso potencial fisiológico e conceitual não é tranquilidade e ócio, mas dor e dureza. Essa série de artigos concluirá com um exame das ideias de Nietzsche sobre essa questão.

24/11/2012

Julius Evola - Acerca da Visão Mágica da Vida

por Julius Evola


A superação de si, ademais de ser objeto de ritos, vincula-se a uma renovada e heroica sensação do mundo e da vida, não como um abstrato conceito da mente, mas sim como algo que vibra no ritmo do próprio sangue. É a sensação do mundo como potência, a sensação do mundo como ato de sacrifício. Trata-se de uma grande liberdade, tendo a ação como única lei. Por toda parte achamos seres feitos de força e, simultaneamente, uma respiração cósmica, um sentido da altura, uma aeridade.

A ação é liberada. É liberada em si mesma, purificada da febre mental, apartada de ódio e de berros. Estas verdades devem penetrar o ânimo: não há aonde ir, não há nada o que pedir, nada que esperar, nada que temer. O mundo é livre: fins e razões, evolução, destino e providência, tudo isso é neblina, é uma coisa inventada por seres que não sabiam ainda caminhar por si mesmos e precisavam de andadores e de pontos de apoio. Agora, serás deixado a ti mesmo. E deves chegar a sentir-se um centro de forças, até conhecer a ação que não se determina mais por este ou por aquele objeto, senão por si mesma. É aqui que não serás mais movido; uma vez desapegado de tudo, então te moverás. Ao redor de ti, os objetos cessarão de ser objetos para ti, converter-se-ão em objetos de ação. Girando ao redor de coisas que não existem mais, os impulsos de uma vida irracional finalmente se extinguirão, e também cairá o sentido do esforço, da mania de correr, de fazer se chegar primeiro na ação, a seriedade dolorosa e a necessidade, o sentimento trágico e o vínculo titânico; enfim, cairá a grande enfermidade: o sentido humano da vida. Sobrevirá, então, uma calma superior. Justamente dela poderá voltar a brotar a ação, uma ação pura e purificadora, é a ação pronta em qualquer momento e em qualquer lugar para assumir qualquer direção, ação lábil, inapreensível, que continuamente se reafirma mais além de si mesma, livre com respeito a si mesma, superior ao vencer e ao perder, ao êxito e ao fracasso, ao egoísmo e ao altruísmo, à felicidade como à desventura, a ação solta do vínculo, solta de identificação, solta do apego.

Em uma tal ação poderá se achar a purificação, posto que por ela o indivíduo não se conta mais e posto que ela te conduz mais além, seja do conhecimento abstrato, como do ímpeto irracional das forças inferiores. Já não mais espectros de conceitos e de ideias, de “valores”, senão visão sem signo, que tem por único e direto objeto a realidade. Ademais, teremos justamente a ação, redespertada como uma coisa Elemental, simples e inatenuada. Uma potência de mando e uma potência de obediência; uma, tão absoluta como a outra, a ser aperfeiçoada até o modo que é requerido pelas evocações e as identificações, assim como por aqueles instantâneos e imateriais encontros de presenças, nos quais uns poderão ascender e desaparecer, poderosos e invisíveis, e os outros precipitar em abismos incorpóreos.

Mas, a tal respeito, ainda na mesma vida comum deve seguir-se uma disciplina apta para fazer pôr de relevo a inutilidade de todo sentimentalismo e de qualquer implicação afetiva. Em seu lugar encontra-se a visão lúcida e o ato adequado. Assim como no cirurgião, em lugar da compaixão e da piedade, é a intervenção o que resolve. Assim como no guerreiro ou no desportista, em lugar do medo, da agitação irracional ante o perigo, o que vale é a pronta determinação de tudo o que se acha na própria capacidade de ação. Piedade, medo, esperança, impaciência, ansiedade: são todos decaimentos do ânimo que vão alimentar poderes ocultos e vampíricos de negação. Toma a compaixão como exemplo: não remove nada do mal alheio, senão que faz com que o mesmo turbe tua alma. Se, ao contrário, atuas, assume a pessoa do outro e comunica tua força. Do contrário, desprenda-te. O mesmo com o ódio: odiar degrada. Se tu queres, se a justiça o quer em ti, abate, arranca, sem que teu ânimo se altere. Ademais, odiando, decais. O ódio altera, impede controlar a influência do adversário, e mais, te abre a essa mesma influência, a qual, do contrário, podes conhecer e paralisar se, em vez, permaneceres sem reação. Seja para o “bem” seja para o “mal”, deve matar a “paixão” quem quer a ciência e a potência do Bem e do Mal. Há que saber se dar com o ato puro, com um dom absoluto, não na voluptuosidade da simpatia ou da piedade. Há que saber golpear sem ódio. “Eu sou nos fortes a força carente de desejo e de paixão – balam balavatâm asmi kâmarâgavivarjitam – dizendo ele de si mesmo, uma figura divina indicou aquela força e aquela pureza, sobre a qual nada pode, ante a qual a própria lei da ação e reação não encontra mais apoio”(Bhagavad-gita). Apenas a febre, a força obscura do instinto, do apetite e da aversão apartem desta centralidade, também o supremo entre os deuses nos arruína.

Desapego, silêncio, solidão, isso prepara a liberação da visão da vida e do mundo.

Distância entre os seres. Não se reconhecer nos outros, não se sentir nem superior, nem igual e nem inferior a eles. No mundo daqui debaixo os seres estão sós, sem lei, sem salvação, sem escusa, vestidos só com sua força ou com sua debilidade: cumes, pedras, areia. Esta é a primeira liberação da visão da vida. Vencer a contaminação fraternalizadora, a necessidade de amar e de sentirem-se amados, de sentirem-se juntos, de sentirem-se iguais e mancomunados. Purifica-te de tudo isso. A partir de um determinado ponto, não mais pelo sangue, não mais por afetos, não mais pela pátria, não mais por um destino humano poderás ainda sentir-se unido a alguém. Tão só poderás sentir-se unido a alguém que esteja na tua mesma via, a que não é a via dos homens, a que não tem referência com a via dos homens.

E dirigindo o olhar às coisas, busca compreender a voz do inanimado. “Como são belas estas livres forças ainda não manchadas de espírito!” (Nietzsche). Não digas “não ainda”, mas sim “não mais” manchadas de espírito, e como espírito aqui compreende o irreal, tudo o que o homem com seus sentimentos, seus pensamentos, seus medos e suas esperanças projetou na natureza para convertê-la em íntima, para fazê-la falar em sua mesma língua. Deixa isso e busca justamente compreender a mensagem das coisas, ali onde elas aparecem como estranhas desnudas e mudas; ali onde elas não tem uma alma, posto que são uma coisa maior do que a alma. Este é o primeiro passo para libertação da visão de mundo. Sobre o plano da magia conhecerás o mundo voltado ao estado livre, intensivo e essencial, um estado no qual a natureza já não é natureza, nem o espírito “espírito”, no qual não existem nem coisas, nem homens, nem hipóstases de “deuses”, senão poderes, e a vida é uma epopeia heroica em todo instante, feita de símbolos, de iluminações, de mandos, de ações rituais e de sacrifícios.

Neste mundo não há mais um “aqui”, nem um “além”, não há apego, tudo é infinitamente igual e infinitamente diferente e a ação brota por si mesma, pura, oculta. E o Vento, o Sopro – o Sopro do Grande Verde Hermético – chega ao todo no sentido de um sacrifício, de uma oferenda, de um rito luminoso e maravilhoso, entre zonas de uma atividade calma, como o repouso mais profundo de uma imobilidade intensa, como o torvelinho mais veemente.

Aquilo que é “humano” dissipa-se aqui como um recordo obscuro de miséria e como o espectro de um largo íncubo. Surge o Anjo, o Antigo Frio: imobilidade e lentidões vertiginosas vão resolver qualquer tensão, e este é justamente o limiar, esta a transfiguração, e mais além disso, o mundo do eterno.

22/11/2012

Terror Contra o Demiurgo

por Aleksandr Dugin



(Resumo sobre a relevância do anarquismo hoje)

Anarquismo: Um olhar desde a direita

O anarquismo é considerado como o produto mais à esquerda do pensamento esquerdista. Essa crítica total da esquerda de todas as outras formas de ideologias revolucionárias: dos marxistas aos social-democratas. Os anarquistas fustigavam nos outros esquerdistas a presença de todos os velhos elementos reacionários. Para a anarquia, todas as outras formas não são mais do que referências sutilmente veladas ao antigo e único inimigo - o poder.

O anarquismo busca justificar um sistema de antítese radical de uma sociedade baseada no princípio do poder. Daí vem o nome "an-arquia", literalmente - "a ausência de poder". A anarquia aspira ser uma esquerda sem qualquer mistura de "direita", mas infelizmente não é assim. E aqui no anarquismo nós comumente encontramos os elementos que tradicionalmente pertencem à "direita". Exemplos notáveis são o "anarquismo de direita" do Evola e o conceito de "anarca" do Jünger.

Exemplos de componentes "direitistas" do anarquismo são numerosos. O mais notável é o misticismo. Bakunin - maçom, místico - era interessado no movimento dos "beguni". O mesmo se passa com Kelsiev. A grande figura do anarquismo Theodor Reuss - maçom, místico, fundador da "Ordem do Templo do Oriente" (junto com Karl Kellner). Posteriormente Aleister Crowley. Na Rússia - Karelin Solonovich, cujo círculo se reunia ao redor do museu de Kropotkin. A seita anarquista de Alexei Dobrolyubov. Muitos exemplos são dados no livro de Alexander Etkind "Chicote. Seitas, Literatura, Revolução".

O misticismo dificilmente poderia ser classificado como de "esquerda", como uma tendência "progressista". Ele pressupõe a crença em algo além, um certo arcaísmo.

Outra coisa: o que é esse arcaísmo? Qual é a estrutura da atitude anárquica em relação ao misticismo?

"Contra os governantes, contra os poderes..."

O misticismo dos anarquistas se apóia em uma fórmula gnóstica especial. A essência dela vem a isso: não há uma única realidade, hierarquicamente organizada, harmônica, virtuosa em si mesma, mas duas (ou mais). A realidade imanente se sustenta na usurpação, na tentativa de expressar o melhor a partir do pior, como único e inconteste.

E assim o poder imanente é o poder que é ontologicamente e inerentemente errado, injusto, maligno. Os primeiros gnósticos se fiavam no dito pelo Apóstolo Paulo - "Pois nós lutamos não contra carne e sangue, mas contra principados, contra potestades, contra os príncipes das trevas desse mundo, contra as hostes espirituais da maldade, nos lugares celestiais". A versão cristã do anarquismo gnóstico se apóia nessa fundação.

Ademais, porém, o mesmo Apóstolo Paulo diz, "Escravos, obedecei a vossos mestres terrenos com respeito e temor, e com sinceridade de coração, assim como obedeceríeis a Cristo." A ortodoxia combina os chamados à conformidade social e à inconformidade espiritual. Os círculos gnósticos radicais estendem o clamor por inconformismo ao nível social.

Mas essa revolução contra "esse mundo" em um padrão anarco-gnóstico pleno pressupõe também uma segunda parte afirmativa. Contra esse mundo pelo outro mundo, por um mundo melhor, pelo "nosso" mundo, um novo mundo. E esse mundo alternativo possuía características positivas, construtivas. Esse - um universo de Luz, o mundo do bem e da divindade justa, o mundo do verdadeiro Bem, que foi usurpado por Satã, "o maligno Demiurgo".

Portanto, estruturalmente e tipologicamente a maior parte do anarquismo revolucionário oculta em si mesmo um grau extremo de conservadorismo, afirmatividade, criatividade, uma ordem transcendental radical. Ele não é niilismo irresponsável. Essa negação daquilo que, segundo o próprio anarquismo gnóstico, é a negação total do Bem.

Império: O Sagrado e o Profano

Traçar as raízes místicas do anarquismo ocidental não representa qualquer dificuldade. Mas como são os "beguni", os velhos crentes, a serem chamados os anarquistas russos mais consistentes? A quem os pesquisadores erguem a cosmovisão de Bakunin? Àqueles que Kelsiev tentou encorajar para a prática de terror antigovernamental em larga escala?

Os  gnósticos formularam suas doutrinas radicais no ambiente pré-imperial onde o Cristianismo ainda não havia se tornado a religião dominante. Sua rejeição desse mundo era apoiada por observações do ambiente pagão da Roma tardia, confirmando sua rejeição radical de tudo "externo". Isso quer dizer, os gnósticos eram "contra os principados, contra as potestades, contra os príncipes das trevas desse mundo..." também porque eles eram não-cristãos - judeus ou helenos.

Quando o Império se tornou cristão o anarquismo gnóstico se dissipou. O reinício dessa linha se dá no período da Cristandade, quando a sociedade nominalmente cristão começa a ser alienada de sua natureza. E nesse ponto se torna relevante novamente a mesma abordagem dualista em uma contraposição radical e intransigente entre esse mundo e o outro mundo, "as autoridades desse mundo" às autoridades do outro mundo.

Diagnóstico dos Mentores "Beguni"

É durante o período da dessacralização total do catolicismo que surgem as lojas maçônicas. Enquanto a dessacralização da Russia nikoniata, romanovita, pró-ocidental, "administrativa" é tragicamente percebida pelos mais extremos entre os patriotas místicos ortodoxos russos - os velhos crentes.

Os "beguni" seguiram na negação dos "principados e potestades do governo desse mundo" mais do que os outros, assumindo que o Anticristo já havia coroado a si mesmo em face de Pedro I (Pedro o Grande). Foi assim que aconteceu a convergência tipológica dos extremistas sem sacerdotes com a fórmula gnóstica, cujos elementos já são visíveis naqueles ascetas russos que percebiam a queda do Império Bizantino como uma catástrofe apocalíptica absoluta - especialmente com a linha dos "não-possuidores", e seguidores tardios do ancião radical Kapiton.

Anarquia - Mãe do Bem

O niilismo extremo do impulso anarquista acaba não sendo de forma alguma a última palavra na profanação e negação da Tradição. Ao contrário, ele está baseado em uma discordância total em relação a essa dessacralização, em uma rejeição absoluta dela, do "mundo", dessa "era", que é governada por um Demiurgo maligno e seus acólitos, "avliyi El Shaitan", os "Santos de Satã".

A própria fórmula famosa da "anarquia mãe da ordem" é uma transferência para a dimensão social da tese da necessidade de uma abolição radical desse mundo do mal para que um mundo do bem possa ser fundado. Já que o mundo do mal é uma "barreira" para sua fundação ("Satã" em hebraico antigo significa "barreira"), então ele deve ser completamente destruído. É importante que os anarquistas compreendam o "novo mundo" não como uma criação, mas como uma descoberta. Eles não querem reformar, reconstruir, renovar a realidade, eles queriam transformar radicalmente a qualidade da realidade. Eles eram nisso conservadores muito bem sucedidos, sendo os destruidores mais consistentes. Mas eles destroem o próprio espírito de destruição, o ídolo da "velha ordem", a fortaleza do Demiurgo.

Estranha ação de "busca pela alma"

Os anarquistas são considerados sinônimos de terror radical. Mas por trás disso não há tantos significados sociais quanto ontológicos e cosmológicos. O terror não é um meio para os anarquistas de conseguirem reconhecimento político. Ele leva consigo um peso não tanto sócio-político quanto antropológico. Terroristas anarquistas não lançam bombas contra pessoas, não contra membros da classe, não contra figuras socialmente significativas. Eles lançam bombas contra o Anticristo e seus servos, e o ato em si leva consigo sua própria desculpa e justificativa.

O anarco-terrorismo é, eventualmente, uma "ação de salvação da alma". Ele é dirigido a salvar a "alma do mundo" do abraço tóxico do Usurpador.

Anarquismo de Direita e Rússia

É agora fácil compreender de onde são os "elementos direitistas" dos clássicos do anarquismo, Stirner e Proudhon. Os dois pólos dentro do anarquismo: um - personalista; o outro - coletivista.

Stirner ensina sobre a singularidade e sobre o verdadeiro ego disposto para sair do poder hipnótico desse mundo, incorporado no sistema social, seus símbolos, e da hierarquia de suas dependências. E aqui ele se aproxima ao conceito gnóstico de "atman", o mais elevado "Eu" espiritual, desenvolvido no hinduísmo e no esoterismo de outras tradições. Daí o interesse de Evola em Stirner, incluindo ele em seu panteão filosófico pessoal. Proudhon é o pólo oposto. Sua "veracidade" não está na "ciência do Eu" (o conceito do "Uno"), mas na idealização de comunidades rurais, a autonomia de grupos orgânicos naturais os quais ao sair do poder alienante do controle estatal (o Demiurgo) estão retornando às raízes da existência comunal, associada com ética tradicional e com a terra.

Esse ideal está próximo ao ideal da igreja cristã primitiva, representando ainda outro fenômeno profundamente arcaico e essencialmente "direitista".

Bakunin e Kropotkin estão no mesmo nível que Stirner e Proudhon. A Russia tradicionalmente tem assumido pelo menos metade das cadeiras da esquerda, enquanto o resto é composto por todos os outros povos europeus e não-europeus. Há um desequilíbrio claro. E a vitória da extrema-esquerda em outubro aconteceu conosco. É notável que somente em nosso profundamente "reacionário", "arcaico", "telúrico", "conservador" país, com o mesmo tipo de povo. Isso não é acidente. Para nós esse espírito paradoxal, o pulso gnóstico está muito próximo, esse incrível complexo espiritual, religioso e social que está por trás do fenômeno do anarquismo radical místico, essa forma extrema da Revolução Conservadora.


20/11/2012

Um Único Estandarte Vermelho: Atualidade de Drieu La Rochelle

por Claudio Mutti



"La race des Aryens retrouve son union - Et reconnait son dieu à l'encoulure fort", dessa forma o poeta de Runes anuncia a próxima unificação da Europa em torno ao Eixo; evocando a imagem da doutrina da cruz gamada flameando no coração da Europa, não já como bandeira do Reich alemão, senão do Império europeu: "Trezentos milhões de homens cantam sobre um mesmo território. Um único estandarte vermelho se alça no cume dos Alpes". Ademais, em março de 42 expõe rotundamente a ideia eurasiana de um grande bloco organizado entre o Oceano e Vladivostok ("Idées", reeditado em "Chronique Politique", parte V, "Les années passent").

"Um único estandarte vermelho": porém, a medida que se distancia a esperança de uma vitória alemã, não é já a suástica o símbolo das esperanças de Drieu, senão a foice e o martelo. Em 27 de dezembro de 1942, enquanto que em Stalingrado se passava a batalha que assinalará o princípio do fim para o Eixo, o escritor anota em seu Diário: "Morrerei com bárbaro gozo pensando que Stálin será o amo do mundo. Por fim um amo. É bom que os homens tenham um amo que lhes faça sentir a feroz onipresença de Deus, a voz inexorável da lei".

Em sua, pelo demais, louvável e penetrante "Introdução ao Diário 1939-1945 de Drieu", Julien Hervier tenta explicar "a origem dessa adoração por um poder paterno, político e divino" (p.45) recorrendo aos manuseados tópicos sobre a "relação com o pai". A mesma "explicação", obviamente, deveria servir para o desejo que se formula em 24 de janeiro de 43: "Ah, que morram também todos esses burgueses, o merecem. Stálin degolará a todos e depois aos judeus...quem sabe. Eliminados os fascistas, os democratas permanecerão sozinhos frente aos comunistas: saboreio a ideia desse tête-a-tête. Desfrutarei desde a tumba".

Porém, à margem da interpretação psicanalítica, Hervier esboça também outra, segundo a qual a opinião de Drieu "não faz mais do que acompanhar o curso dos acontecimentos" (p.45), no sentido de que as simpatias de Drieu pela União Soviética se deveriam a ofato de que "os russos são mais fortes do que os alemães, Stálin mais forte que Hitler" (p.46). De onde se deriva o perfil inédito e peregrino de um Drieu La Rochelle oportunista, "vítima de uma forma de oportunismo intelectual que o impele a se alinhar vez ou outra com o mais forte!" (p.46).

A semelhante diagnóstico psicológico lhe acrescenta Hervier outra de caráter ideológico, acusando politicamente Drieu de não ter as ideias suficientemente claras sobre as doutrinas fascista e comunista: "Conforme as vitórias e derrotas russas e alemães, Drieu cairá em uma permanente oscilação entre as duas ideologias conflitantes do fascismo e do comunismo, demonstrando quão fracas eram as raízes de suas convicções" (p.47).

Não obstante, essas desafortunadas valorações são posteriormente superadas e de certo modo rebatidas pelo próprio Hervier, que ao final se mostra capaz de captar o sentido mais genuíno da "conversão" de Drieu: "O trânsito de Drieu desde o fascismo ao comunismo é a final de contas mais geopolítico que ideológico, sendo inclusive racista, na medida em que vê os russos como um povo jovem que sobrepuja os alemães. A única constante de seu pensamento político é a ideia de Europa: a realização será responsabilidade, senão dos alemães então dos russos" (p.47). Em resumo, até o final da Segunda Guerra Mundial e de sua própria vida Drieu vê no Exército Vermelho o único instrumento histórico capaz de substituir os exércitos do Eixo na construção da unidade continental.

Mais adiante Hervier acerta ao assinalar a outra constante do pensamento de Drieu: "O único estável que subsiste é não por acaso uma repugnância, um rechaço: o ódio visceral pela democracia" (p.48).

Para prová-lo se menciona a parte final dessa entrada de 29 de março de 44: "Em todo caso, saúdo com alegria o advento da Rússia e do comunismo. Será atroz, atrozmente devastador, insuportável para nossa geração que perecerá toda de morte lenta ou inesperada, porém isso é melhor que o regresso da decrepitude, do mau gosto anglo-saxão, da restauração burguesa, da democracia rançosa". Um fragmento análogo leva data de 2 de setembro de 43: "E por outra parte meu ódio pela democracia me faz desejar o triunfo do comunismo. Em ausência do fascismo [...] somente o comunismo pode pôr o Homem contra a parede obrigando-o a admitir de novo, como não sucedia desde a Idade Média, que tem Senhores. Stálin, mais do que Hitler, é a expressão da lei suprema". Após a derrota do fascismo, a autocracia soviética permanece como única alternativa à democracia e ao individualismo, produtos da decadência: "O que me agrada no triunfo do comunismo não é somente o desaparecimento de uma burguesia desprezível e obtusa, senão também o enquadramento do povo e o renascimento do antigo despotismo sagrado, da aristocracia absoluta, da teocracia definitiva. Desaparecerão assim todos os desatinos do Renascimento, da reforma, da revolução americana e francesa. Se volta à Ásia; que é o que necessitamos" (25-IV-43). Quanto ao marxismo, não é preciso se deixar enganar: se trata de uma enfermidade passageira que não compromete a saúde básica do organismo russo. Infinitamente mais grave é o mal americano. "Devemos desejar - escreve Drieu em 3 de março de 43 - a vitória dos russos antes que a dos americanos. [...] os russos possuem uma forma, enquanto que os americanos não a tem. São uma raça, um povo; os americanos são uma caterva de híbridos. Quando se tem uma forma, se tem uma substância; pois bem, os russos tem uma forma. O marxismo é uma enfermidade de crescimento dentro de um corpo sadio. Pensávamos que esse corpo magnífico estava podre, mas não é assim".

Considerações desse gênero se fazem mais frequentes no transcurso de 1944. Em 10 de junho Drieu escreve: "Volto o olhar para Moscou. Na queda do fascismo meus últimos pensamentos se dirigem ao comunismo. Confio em sua vitória, que não me aprece assegurada de modo imediato, mas sim provável em um prazo mais ou menos longo. Desejo o triunfo do homem totalitário sobre a terra". Em 28 de junho: "Nada me separa já do comunismo, nada nunca me separou exceto minha desconfiança atávica de pequeno burguês". Em 20 de julho: "Imagino uma solidariedade in extremis entre ditadores: Stálin oferecendo ajuda a Hitler e a Mussolini, ao se dar conta de que, se permanece como o único de sua espécie, está perdido. Porém seria demasiado belo. Escolherá colonizar diretamente a Alemanha. Em 26 de julho: "Os russos se aproximam de Varsóvia. Hosanna! Hurrah! É meu grito de hoje". Em 28 de julho: "Teria uma só razão para sobreviver: lutar no bando russo contra os americanos. [...] Do mesmo modo poderia hoje me entregar ao comunismo, na medida em que assimilaram já tudo o que eu amava do fascismo: galardia física, voz do próprio sangue dentro de um grupo, hierarquia vivente, nobre reciprocidade entre fracos e fortes (na Rússia os fracos são oprimidos, mas reverenciam o princípio da opressão). É o mundo da monarquia e da aristocracia em seu princípio vital". Em 7 de agosto: "Monarquia, aristocracia, religião estão hoje em Moscou e em nenhum outro lugar". Em 9 de agosto: "Moscou será a última Roma". E assim até as últimas páginas do "Diário", nas quais Drieu reafirma um conceito já expressado repetidamente, por exemplo em 10 de setembro de 43: "A conclusão lógica do comunismo é a teocracia. [...]. Provavelmente Stálin aceitará um compromisso, como Clóvis. Para ele a Igreja constituirá outra leva contra os anglo-saxões", manifestando a confiança de que os russos consigam "espiritualizar o materialismo" (20 de fevereiro de 1945).

É precisamente o mito da Europa imperial, assim como o suplementário "horror" frente à democracia, o que constitui o eixo ao redor do qual gira o compromisso político de Drieu, desde o primeiro até o último dia de sua militância. Sendo esse o referente ideal que nos permite valorar sua coerência extrema quando assinala a Rússia soviética como o novo instrumento histórico para retomar a luta contra a decadência ocidental. Relidos sob essa luz, os parágrafos que desconcertaram Hervier não demonstram de modo algum a fragilidade do pensamento de Drieu (e muito menos seu suposto oportunismo intelectual), senão uma linha consciente e radical.

Não é o de Drieu um fenômeno único, e nem mesmo raro. Razões análogas às suas se encontram nas adesões ao comunismo de muitos militantes dos fascismos e dos "falsos fascismos" europeus, que ao final da contenda decidiram seguir combatendo desde diferentes trincheiras ao inimigo principal: o Ocidente capitalista. Seria muito interessante descobrir que papel desempenharam os homens procedentes do bando dos derrotados nas opções heterodoxas, desde o ponto de vista marxista, de alguns governos e partidos comunistas do Leste da Europa, ou por outro lado conseguir estabelecer em que medida a herança nacionalista, fascista ou nacional-socialista pôde ser transmitida aos novos regimes. Se bem é sem nenhum gênero de dúvidas falsa a afirmação segundo a qual os legionários romenos teriam sido os "predecessores imediatos dos comunistas" no sentido de que esses últimos teriam levado a cabo as reformas sociais legionárias; se resulta igualmente infundado manter que "foi realizada na Hungria e na Romênia a revolução social pela qual Szálasi e Codreanu lutaram e que haviam preparado", não é menos certo que certas reminiscências são inevitáveis, quando se apreciam as acusadas particularidades do "nacional-comunismo" romeno (que por outra parte procedeu a uma cautelosa reabilitação de Antonescu), as tendências nacional-populares presentes no seio do partido comunista húngaro (que no terreno cultural recuperou os autores de orientação "populista", incluídos aqueles que haviam flertado com o nazismo", a permanência de um certo estilo "prussiano" na Alemanha Oriental (onde não se permitiu a constituição de associações de "vítimas do fascismo").

Porém sigamos na Itália. Condições anímicas e intenções análogas às de Drieu não deixaram de se manifestar no período da RSI, como distantes e às vezes radicais manifestações do "fascismo de esquerda". A esse respeito resulta ilustrativo este texto da revista florentina "Italia e Civiltà": "Saibam finalmente Roosevelt e Churchill, e todos os seus congêneres, que os fascistas mais conscientes, que reconheceram sempre no comunismo a única força viva contraposta à sua, assinalaram como seu verdadeiro inimigo não tanto a Rússia como à plutocrática Inglaterra e à plutocrática América. Igualmente eles tem discordado em muitos pontos com os comunistas, mas também tem estado de acordo em rechaçar sempre, tanto uns como os outros, a velha sociedade liberal, burguesa, capitalista. E saibam também, os Roosevelt e os Churchill e seus congêneres, que se a vitória não correspondesse ao Tripartito, a maioria dos fascistas autênticos que escaparam da repressão engrossariam as fileiras do comunismo. Ficaria assim saltado o fosso que hoje separa as duas revoluções. Se produziria entre elas um recíproco intercâmbio e influência, até concluir na fusão harmônica". 

Em 22 de abril de 45, Enzo Pezzato manifestava conjecturas equivalentes em "Repubblica Fascista": "O Duce denominou social à República italiana não por diversão; nossos programas são resolutamente revolucionários, nossas ideias forma parte das que um regime democrático qualificaria como de esquerda; nossas instituições são emanação direta e concreta dos programas; nosso ideal é o Estado do Trabalho. Sobre isso não podem existir dúvidas: nós somos proletários em luta, de vida ou morte, contra o capitalismo... Somos revolucionários em busca de uma nova ordem. [...] O autêntico disparate, o verdadeiro perigo, a ameaça contra a qual combatemos sem cessar procede da direita". 

Após o 25 de abril de 1945, esses propósitos tomam corpo de várias formas: "enquanto que em mais de uma ocasião se organizaram encontros entre jovens do MSI e comunistas - muitas vezes interrompidos por ataques de ex-partidários indignados - em nome de uma pouco provável convergência anti-burguesa que incidisse sobre a questão social", a iniciativa mais consistente esteve representada pelo "Pensiero Nazionale".

Se trata de um quinzenal fundado por Stanis Ruinas (1899-1974), um antigo socialista que durante o "ventennio" havia sido redator de "L'Impero" e desde 1941 foi diretor de "Lager", periódico dos trabalhadores italianos na Alemanha. Enrico Landolfi, que reconstruiu a história do "Pensiero Nazionale", sintetiza sua linha política e ideológica nestes termos: "continuação, dentro das novas condições do pós-fascismo, da luta anti-plutocrática contra o capitalismo interno, representado pela democracia cristã e protegido pelas potências ocidentais vencedoras da guerra, manifestações do domínio do ouro no âmbito internacional. Aliado natural: o bloco de esquerda dirigido pelo Partido Comunista Italiano e vinculado à URSS, dentro do qual "Il Pensiero Nazionale" se posiciona em convergência autônoma".

Sobre a base desses e outros elementos, não resulta infundada em absoluto a hipótese seriamente considerada por Demonico Leccisi: "Se escreveu - lembra este autorizado testemunho - que se o Partido Comunista não tivesse se declarado autor do fuzilamento de Mussolini e do extermínio de milhares de fascistas nas sangrentas jornadas de abril (e meses sucessivos) de 1945, teria obtido com segurança a adesão em massa dos jovens combatentes da RSI. Não estou em posição de responder com certeza a semelhante conjectura, ainda quando a presença nas fileiras e nos quadros do PCI de alguns sonoros sobrenomes de antigos membros do fascismo do ventennio torna a hipótese bastante plausível". 

Contudo, a massa dos ex-combatentes da RSI não aderiu ao PCI; e nem mesmo ao PSI, ainda que Mussolini tivesse declarado sua vontade de deixar em herança "a socialização e tudo o mais aos socialistas e não aos burgueses". Desse modo, o partido fundado no pós-guerra por fascistas republicanos, esse MSI que bem ou mal afirmava ter na RSI seu referente histórico reivindicando em certo modo sua herança, bem logo se alinhou decididamente na direita, concertou alianças eleitorais com os monárquicos e deu seu apoio a vários governos demo-cristãos. Não obstante sua inicial "negativa circunstancial" ao Pacto Atlântico, o MSI se converteu logo, sob a capa do anti-comunismo, na mosca varejeira do "partido americano" na Itália. Competiu em fanatismo pró-sionista com as sinagogas saragatianas e lamalfianas [referente a Saragat e Lamalfa, líderes políticos do regime italiano do pós-guerra] quando se tratava de apoiar as agressões israelenses contra os povos mediterrâneos; apoiou todas as "batalhas pela civilização ocidental", desde a agressão americana contra o Vietnã até a "operação de polícia" contra o Iraque; finalmente se transformou em Alleanza Nazionale e enviou seu secretário a uma recepção do B'nai B'rith nos EUA.

Se Atenas chora, Esparta não ri. A triste história da esquerda italiana, reduzida ao papel de amortecedor social a serviço da usurocracia e do grande capital, se explica também mediante o fato de que no pós-guerra imediato a fetichista "religião do anti-fascismo" impediu à esquerda de atrair os que haviam combatido pelos princípios solidaristas e de justiça social incorporados ao Manifesto de Verona. Uma contribuição de forças neofascistas teria podido dotar à esquerda italiana desse caráter patriótico do qual ela careceu quase sempre, ao extremo de que posteriormente se declarou abertamente partidária da OTAN e de outros organismos imperialistas; teria reforçado seu componente popular, evitando que se transformasse em toque de alarme da burguesia acionista [referente ao Partido de Ação Italiano] e liberal; a teria comprometido na luta das conquistas sociais, na precisamente nas "batalhas de civilização" a favor do aborto ou pelos direitos dos degenerados sexuais.

Na Itália do pós-guerra, o anti-fascismo e o anti-comunismo cultivados ad arte tornaram impossível essa síntese entre o elemento nacional e o elemento social que Drieu La Rochelle havia visto se plasmar na Place de la Concorde em 6 e 9 de fevereiro de 1934, quando as Jeunesses Patriotes e militantes comunistas, ex-combatentes e desempregados, se haviam manifestado juntos contra a Câmara dos Deputados, símbolo da corrupção democrática, e contra o governo radical da época. "Vi sobre essa praça os comunistas se aproximando dos nacionais: olhar para eles, observá-los nervosos e com inveja. Faltou pouco para que se unissem, em uma massa fervorosa, todas as energias da França" - diz Gilles no romance homônimo. O personagem de Drieu "imaginava que fascismo e comunismo caminhariam na mesma direção, uma direção que lhe comprazia".

A união sagrada auspiciada por Drieu se converteu em realidade na Rússia, onde os fascistas de Barkashov e os comunistas de Anpilov se enfrentaram juntos, com armas em mãos, aos desígnios ditatoriais do governo proconsular de Yeltsin. A tentativa mundialista de submeter o grande espaço ex-soviético provocou, como é sabido, o nascimento de uma oposição "vermelho-parda", que expressa a reivindicação popular de tudo aquilo que a colonização liberal-democrática está pondo em perigo: honra, dignidade, identidade espiritual, cultura tradicional, espírito comunitário, independência política. "Todos os que constituíram esse bloco - nos diz textualmente Guenadi Ziuganov, em 17 de junho de 92 - compreenderam que somente as ideias de Estado e de justiça social podem salvar nossa Pátria. Para um povo, a nacionalidade representa uma coordenada vertical, enquanto que a justiça social é a coordenada horizontal. Esses dois componentes são inseparáveis". Palavras extremamente cristalinas, e não obstante o observador ocidental não consegue compreender em absoluto como as bandeiras czaristas e as soviéticas possam ondular, umas junto às outras, nas manifestações "vermelho-pardas". 

Drieu La Rochelle, ao contrário, o havia compreendido sessenta anos antes. "Durante a guerra - põe na boca do protagonista de L'Agent Double - fui soldado. Fui feliz: servia. A quem? Ao Czar? Quiçá à Santa Ortodoxia? Também à Rússia? Certo. Porém vós me contestareis hoje, como dissestes há dez anos: "A Rússia não significa nada. Um país não é nada, é uma massa indiferenciada. A Rússia é ou o Czar ou o Comunismo". Porém não, eu os respondo com toda a experiência de minha vida e da vossa: "A Rússia é o Czar e o Comunismo e de outros muitos mais".

E um pouco mais adiante escreve uma frase que tem gosto premonitório e que foi na Rússia verificada realmente: "O século XX não acabará sem que assistamos a estranhas reconciliações".

Não há pois que se assombrar se hoje Drieu está na moda em Moscou. Um jornalista italiano que no verão de 93 visitou a redação do diário "Sovetskaja Rossija" advertiu no despacho do chefe de redação, pendurado na parede, um manifesto com essa frase: "Imaginai o que, para a grandeza da Europa, significaria que em um futuro se reiniciasse a colaboração secular entre a elite europeia e as massas russas para o aproveitamento dos recursos do mundo". Assinado: Pierre Drieu La Rochelle.