24/10/2011

Da "Ordem Natural" à "Auto-Organização" ou a Vigência da Idéia Orgânica

por José Agustín Vásquez

O organicismo, um fantasma?

"A idéia orgânica", à primeira vista, aparece como um vasto e pouco definido campo de exploração ideológica. Onde escuta-se hoje mencionar a idéia orgânica? Na imensa estepe democrática e igualitária, onde já nada nem ninguém tem sentido enquanto célula de um organismo social, senão somente em sua qualidade de número, igual a outros, haveria lugar para uma concepção orgânica da sociedade?

Hoje por hoje, os politólogos e cientistas políticos, que assistem deslumbrados à decadência do socialismo no oceano da democracia liberal e do capitalismo, somente poderiam conceber ao organicismo como a fórmula ideológica própria do fascismo de entreguerras, esmagado e rechaçado pela história, ou bem certa forma de organização social reacionária própria da Idade Média (por tanto, retrógrada, obscurantista) e contra a qual alçou-se o Terceiro Estado em 1789 para proclamar os sagrados e eternos príncipes da Liberdade, da Igualdade, e da Fraternidade, ao tempo que, com a lei Le Chapelier, arrasava com as potestades sociais e corporativas, em nome da liberdade de associação. Mais além dessas interpretações reducionistas não encontramos nenhuma tentativa de uma releitura objetiva da concepção orgânica, nem de uma renovação do discurso corporativista entre os que poderiam considerar-se seus "herdeiros", salvo notáveis exceções (que já encarregar-nos-emos de assinalar); a partir do tronco neofascista na Europa, as chamadas "direitas nacionais", que desenvolvem uma tática entrista no sistema parlamentar, ou o interessante fenômeno intelectual que resolveu chamar-se a "Nova Direita", que tenta criar um projeto de influência metapolítica sobre a sociedade.

Por sua parte, o tradicionalismo católico, preferencialmente o hispano, produtor de uma multitude de pensadores no passado, encontra-se hoje atrofiado no conservadorismo ou desnaturalizado em suas essências doutrinárias. Em definitiva, o discurso orgânico ou corporativo pareceria ter passado à história das idéias políticas. Enquanto presença nas estruturas políticas contemporâneas, é inegável que este pura e simplesmente, não existe, ou bem aparece, como o musgo entre as pedras, como uma excrecência parasitária de estruturas alheias por inteiro à cosmovisão na qual o organicismo insere-se. O ponto está, então, em verificar sua vigência, sua realidade sociológica e sua capacidade de assumir, como método de análise e como concepção capaz de guiar o caminho das comunidades humanas, a complexidade dos processos sociais e do devir histórico.

Porém, antes de verificar tal hipótese, é necessário orientar o leitor em relação ao significado da idéia orgânica, de seu desenvolvimento histórico e das concepções teóricas que desde essa perspectiva formularam-se.

Origens Teóricas

Podemos encontrar as primeiras concepções teóricas guiadas pela idéia orgânica já em Platão e Aristóteles. O primeiro, na República, afirma que "a cidade bem constituída pode comparar-se a um corpo que participa do prazer e da dor de seus membros. E suas três classes - os governantes, os guerreiros e os artesãos - são como órgãos que cumprem funções diversas do organismo estatal". Por sua parte, Aristóteles compara a cidade com o ser vivo, composto de elementos. Ambos filósofos, como indica-o Gonzalo Fernández de la Mora, não "afirmam o organicismo em sentido estrito e real; porém entranham uma imagem antropomórfica do Estado que inicia um milenar paralelismo doutrinário dos organismos biológicos com os sociais" (G. Fernández de la Mora. Os teóricos esquerdistas da democracia orgânica).

Esta origem teórica milenar não aparece como uma formulação "ideológica", no sentido de uma preconcepção que tenta ser imposta ao ente social senão que constitui o reconhecimento de uma ordem que, por essas épocas, era muito fácil distinguir; uma ordem que, baseada na harmonia das partes que conformam a sociedade, reconhece as naturais hierarquias entre os homens e entre as instituições. Uma cosmovisão muito distinta à moderna, permite a subsistência milenar desta ordem alheia às idéias lineares de desenvolvimento ou progresso. Esta ordem milenar da tradição persistirá, surgindo já na escuridão do paleolítico, para prolongar-se ao longo de grandes ciclos históricos e de culturas muito diversas. Assim, encontramo-a presente na Antiguidade grecolatina, nos povos germânicos e celtas como também nas altas culturas americanas precolombianas, e estender-se-á sem maiores variações ao longo do período histórico ocidental chamado "Idade Média", já dominado pela mensagem cristã, porém que assumiu os valores externos das civilizações tradicionais. Encontramos no mundo medieval um dos momentos de ápice da concepção orgânica, manifestada tanto nas formas que assume a comunidade como em suas manifestações físicas. Assim, "na cidade medieval experimenta-se um sentimento de biologia perfeita, de harmoniosa correspondência entre a forma - soma de esforços convergentes a um mesmo fim - e a comunidade urbana em si mesma. Vemos uma incorporação sutil de elementos diversos, unificados desde o interior pela unidade espiritual que vincula à Comunidade. Estamos em um dos ápices da arte urbana: a da arquitetura orgânica, e do ser urbano: a da comunhão". (Ciudad de los Cesares Nº2: "O urbanismo, desde uma perspectiva orgânica"). A sua vez as teorias medievais da sociedade assumem formas decididamente orgânicas: "Uma construção orgânica da sociedade humana era tão familiar ao Medievo como era-lhe alheia uma construção mecânica e atomista" (O. Giercke: Das deutsche Genossenschafsrecht). Tomás de Aquino, Tolomeu de Lucca, e outros teólogos, assentam as bases de uma concepção organicista a partir de seus postulados teológicos. A sua vez, os doutrinadores políticos extraem as consequências práticas destes postulados. Entre eles Marsilio de Pádua, que refere-se aos estamentos, associações e grêmios (agricultores, artesãos e comerciantes), ou Nicolás de Cusa, que propõe um esquema quase parlamentar, no qual "os distritos eleitorais são membros orgânicos e corporativos de um povo articulado" (Nicolás de Cusa: De concordantia Catholica).

A comunidade política medieval construía-se através de âmbitos espaciais (família, paróquia, município, feudo, reino e império) que integravam-se sucessivamente; e âmbitos funcionais (grêmios, estamentos, confissões, culturas e Estados) articulados de modo recíproco e, com frequência, escalonado, ninguém era igual a outro, cad um era ele mesmo com sua determinada circunstância. Esta magna construção histórica sofrerá o embate de duas ofensivas: a Reforma e a Revolução. Entre os teólogos espanhóis da Contrarreforma, aparecem alguns, como Francisco Suárez adeptos à concepção orgânica do Estado: "A comunidade humana é como um organismo que não pode subsistir sem diversos ministros e categorias de pessoas que são como vários membros" (F. Suárez, Defensor Fidei).

A Reforma e o protestantismo entranham a dissolução da religiosidade orgânica, na qual o crente religa-se a Deus e às Escrituras através do magistério e da tradição. O livre exame luterano deixa-o sozinho diante dos textos, proclamando um absoluto individualismo intelectual, ao qual agrega-se um individualismo moral (a justificação pela fé), e um individualismo político, na qual o sacerdote já não é um supervisor carismático, senão um igual, encontrando-se o crente sozinho diante de Deus.

Com a revolução francesa, a investida contra a antiga sociedade orgânica alcança sua máxima intensidade. A Comunidade política, segundo os postulados de Locke e Rousseau, nasce de um pacto entre iguais que partilham a soberania. O cidadão, sem corpos intermediários entre ele e o Estado, exerce mediante o sufrágio universal inorgânico sua mínima fração de poder. É o atomismo abstrato frente ao organicismo concreto. Este último, despojado de seu caráter de cosmovisão "consensual", começa a percorrer diversos caminhos. Na Alemanha encontramo-nos, paralelamente com o chamado "romantismo político", com o organicismo restauracionista, representado por figuras como Herder, Fichte, Novalis, Schlegel e Savigny, entre outros. Rechaçam o individualismo, o pactismo social, o racionalismo e a democracia inorgânica, afirmando ao invés, os grêmios, o naturalismo social, as minorias, os sentimentos, a representação estamental e corporativa. A extensa obra destes autores e sua programa institucional foram derrotados pelos princípios revolucionários; razão pela qual não são suficientemente conhecidos ou valorizados.

Hegel, por sua parte, deve ser considerado um organicista metafísico, e sua teoria da sociedade e do Estado é manifestamente organicista: "A sociedade civil deve designar a seus representantes não dispersa em individualidades atômicas que somente reúnem-se para um ato isolado e ocasional, senão em associações (Genossenschaften), prefeituras (Gemeinden) e Corporações (Korporationen)" (G.W.F. Hegel, Grundlinien der Philosophie des Rechtes). A idéia de representação em Hegel, ainda que tendencialmente corporativa, mantém as grandes linhas do estamentalismo tradicional.

Do organicismo social que vai-se perfilando surgirão duas versões posteriores, a sociológica e a corporativa. A primeira mantém-se em um plano acadêmico, sendo seus representantes mais destacados Spencer, Fouillé, Lilienfeld e Kjellen, entre outros. Potencializada pela influência do darwinismo, a sociologia organicista verá sua época de ouro na segunda metade do século XIX, e chegará até o período de entreguerras, em que o organicismo social entrará em sua nova etapa: o corporativismo, representado por figuras como Renán, Giercke, Oliveira Martins, Durkheim, Mosca, Duguit e Spann, que enlaçou com os medievais e românticos e conectou com as tradições nacionais. Em Portugal (1923 - 1973), Itália (1922 - 1945) e Espanha (1936 - 1976) fez-se teoria e prática, em diversas circunstâncias históricas e sociais, e com resultados desiguais. A história destes regimes e do desenvolvimento dentre deles das concepções orgânicas e corporativas permite um desenvolvimento muito mais amplo que não é o objetivo desse trabalho.


Paralelamente a este desenvolvimento histórico, as tendências organicistas católicas lograram um importante com pensadores como Brañas, Vásquez de Mella, Donoso Cortés, Aparisi Guijarro, etc. Vásquez de Mella, por exemplo, destaca a existência da soberania social que é "um conjunto de direitos naturais que projetam-se perante o Estado (soberania política) para ser respeitado e cumpridos, desta maneira as sociedades intermediárias entre a família e o Estado, vem a ser as manifestações orgânicas da soberania social e portanto constituem poder por si mesmas" (Citado em Osvaldo Lira, Nostalgia de Vásquez de Mella). Na Espanha, igualmente cativaram as teorias políticas de Enrique Ahrens, catedrático e político alemão (1808 - 1879), discípulo de Carlos Cristian Krauss (1781 - 1822). Sua obra Curso de Direito Natural gera na Espanha uma escola de pensamento organicista de tendência laica e esquerdista, cujos representantes mais destacados foram Sanz del Rio, Salmerón, Giner de los Ríos, Pérez Pujol, Posada, etc. O chamado "Krausismo", ou escola de Krauss, constitui a raiz da linha sóciopolítica que deriva nos corporativismos do segundo terço do século XX na Europa. A sociedade é, para Ahrens, "um grande organismo que compreende um conjunto de sistemas e de organismos particulares, sendo esses organismos particulares ou esferas sociais de dois tipos: os territoriais (família, município, região, nação, etc.) e os funcionais, (ordem jurídica, religiosa, moral, científica, artística, educativa e econômica)".

Já no século XX encontramo-nos com um amplo desenvolvimento teórico e prático: as construções institucionais do fascismo na Itália,  do integralismo português ou do nacional-sindicalismo na Espanha recolheram as diversas teorias que circulam. Filósofos e pensadores de grande relevância aprofundaram-se na teoria organicista do Estado.

Os italianos Gentile, Spirito e Bottai, o romeno Manoilesco, o austríaco Spann, e muitos outros interessam-se e desenvolve as teorias orgânicas corporativas do Estado. Gentile e Spirito, com sua concepção do "Estado Ético", ou a "societas in interiore homini"; Manoilesco caracterizando o corporativismo como aquela forma de organização social cuja essência é a solidariedade nacional; Oliveira Salazar tentando realizá-lo na prática em Portugal; no Chile, Guillermo Izquierdo Araya em sua Racionalização da Democracia, tentando precisar aquele conceito de "democracia funcional" que implique "uma transformação integral no econômico e no social que trará logicamente uma morfologia nova do Estado".

A Perspectiva Tradicional

Esta concepção do organicismo, que poderíamos chamar sociopolítica, não contrapõe-se fundamentalmente com a perspectiva que chamaremos "tradicional" (para diferencia-lo daquela "tradicionalista", que tem seu discurso próprio e autônomo). Para Julius Evola, a idéia orgânica pertence a essa ordem de idéias que, em uma civilização "normal" (entendamos por isso uma civilização tradicional) tem um caráter real-constitutivo, enquanto que nas civilizações em crise somente tem um caráter ideal-normativo ("o que é" frente a "o que deve ser"). Para Evola, esta idéia tem uma orientação "desde e para o alto". Esta tensão "garante o caráter normativo e suprahistórico que confere à idéia tradicional uma perene atualidade". A idéia orgânica não é, pois, produto de uma especulação filosófica, e teve vigência na realidade histórica de uma série de grandes civilizações e sociedades, o que não obsta que a idéia possa ser permanentemente separada de suas encarnações contingentes para preservar sua permanência como modelo de novas estruturas existenciais, "diversas porém homólogas" às anteriores.

Para Evola, em todo Estado tradicional à idéia central une-se um correspondente princípio positivo de soberania e de autoridade. Pois a idéia orgânica não abarca somente a relação das partes entre si, senão também a das partes com o todo. A concepção hierárquica e estamental vai associada ao núcleo da idéia orgânica, e não deve entender-se nela uma concepção classista ou uma estrutura de dominação, senão o normal ordenamento que assumem os homens e os corpos sociais em ordem ao correto exercício da função própria de cada um. Nesta ordem a unidade está produzida pelo consenso em torno a um princípio ordenador superior e não em torno aos mecanismos subalternos ou burocráticos, pelo que "um relativo pluralismo é um traço essencial de todo sistema orgânico". Não é a organização do externo o essencial, nem a regulamentação ou a centralização; ao contrário, também é característica de tais sistemas uma ampla descentralização, de onde toda tentativa de estruturação da sociedade que tente impor-se através dos mecanismos das burocracias institucionais não é mais que um desvio totalitário na qual "deve-se ver a inversão e a contrarrealização de um sistema orgânico". Como também sustenta-o Fernández de la Mora "a sociedade hierárquica..., é um fato biológico, fundado genéticamente e anterior em milhões de anos ao aparecimento dos hominídios; é pois, uma realidade dada não já para cada indivíduo concreto, senão para a espécie humana. A sociobiologia refuta apoditicamente a hipótese do pacto social". Segundo constata-o a etologia, "a hierarqua aporta mais de uma contribuição à próspera organização de seres desiguais, ao enfrentar-se às necessidades comuns. Assim mesmo, reduz a luta. Uma vez estabelecida a ordem de domínio, raraz vezes produz-se a séria agressão, havido conta de que cada membro conhece muito bem suas capacidades em relação com os demais. A ordem hierárquica, mediante a competição, esclarece aos desiguais, colocando em postos de influência os principais valores de todo o grupo".

Porém a perspectiva tradicional é também a perspectiva da decadência e da dissolução cíclica das civilizações, das sociedades e dos Estados tradicionais. Este ciclo de dissolução parte da perda do vínculo espiritual, do centro unificante e transcendente, em primeiro lugar pela crise do princípio central, e logo pela progressiva regressão, nos indivíduos, de toda sensibilidade e interesse superior. Através de sucessivas quedas, a sociedade vai perdendo esse caráter tradicional e orgânico que fazia-a harmônica e ordenada a um fim superior. Na base desta dissolução encontramos também o individualismo, que conduz ao atomismo social, ao reino da Quantidade, que, por um processo lógico, conduz ao subpessoal, ao coletivo, ao subracional. Em tal circunstância, aponta Evola, a tarefa de levar à humanidade a uma nova manifestação da idéia orgânica e tradicional deve declarar-se hoje como impossível. Hoje somente pode conceber-se uma ação, não sobre a base dos resíduos do mundo da Tradição que ainda circulem no que sobrevive do mundo da burguesia, senão a partir de um determinado tipo humano que, sobre a base da vontade pura e sem apoios, tenha a capacidade de uma autotranscendência ascendente, em relação à escolha de uma idéia em estado puro. Uma contribuição válida à definição de tal tipo humano foi feita por Ernst Jünger através das figuras arquetípicas do Trabalhador, do Anarca e do Emboscado.

Portanto, hoje não é tanto a simples arquitetura política o essencial. Não é a construção do Estado corporativo a "idéia em estado puro" sobre a qual deve-se articular uma ação política. Já apontava-o José Antonio Primo de Rivera em 1934: "Quê importa-nos o Estado corporativo, que importa-nos que suprima-se o Parlamento, se isto é para seguir produzindo com outros órgãos a mesma juventude cauta, pálida, escorregadia, e sorridente, incapaz de inflamar-se pelo entusiasmo da Pátira e nem se quer, digam o que digam, pelo da religião?" E continuava, "muito cuidado com isso do Estado corporativo, muito cuidado com todas essas coisas frias que dirão muitos procurando que convertamo-nos em mais um partido...nós não satisfazemos nossas aspirações configurando de outra maneira o Estado". Entre parênteses, há que assinalar que Primo de Rivera e a Falange Espanhola devem algumas de suas características, não tanto ao fascismo italiano ou ao nacional-socialismo alemão, como ao tradicionalismo católico e no caso específico de José Antonio, a seu professor Adolfo González Posada, da mais pura cepa do organicismo de esquerda, procedente de Ahrens e Krause. O seguinte princípio falangista: "Que volte a irmanar-se o indivíduo em seu contorno pela reconstrução desses valores orgânicos, livres e eternos, que chamam-se o indivíduo portador de uma alma; a família, o sindicato, o município, unidades naturais de convivência", está mais próximo da linguagem krausista do que da mussoliniana, segundo aponta acertadamente Fernández de la Mora. Do mesmo modo, constatamos em Primo de Rivera um claro rechaço das tentativas de reconstruir a ordem tradicional e orgânica através de iniciativas totalitárias (ainda quando a Falange explicitamente refere-se em sentido positivo ao totalitarismo). No discurso de clausura do 2º Congresso Nacional da Falange (Madri, 17 de novembro de 1935), critica por igual o anarquismo e o totalitarismo, o primeiro, por resolver a desarmonia entre o homem e a coletividade dissolvendo esta nos indivíduos; a segunda, por resolver o problema absorvendo os indivíduos na coletividade. Ao anarquismo cataloga de "dissolvente e funesto". Mais benévolo com o totalitarismo (não esqueçamos que, apesar de suas objeções, olhava com simpatia o fascismo italiano e o nacional-socialismo alemão), considera-o uma solução "não definitiva", somente sustentável "pela tensão genial de uns quantos homens". A longo prazo, afirma, chegar-se-á a formas mais maduras.


Em relação às formas totalitárias do organicismo, que levaram-se à prática na Europa do entreguerras e que na Espanha e Portugal prolongaram-se até a década de 70, revestiram diversas formas e estiveram regidas por muitos princípios ordenadores diversos, pelo que é muito difícil referir-se genericamente a elas. O fascismo italiano recolhe em sua idéia de Estado a noção do "Estado Ético" e da "societas in interiore homine", desenvolvida pelo mais importante filósofo italiano da primeira metade do século passado, Giovanni Gentile. Este Estado, esta sociedade não "entre homens", senão "no interior dos homens", na qual o trabalho (no mais amplo sentido da palavra) nega o particularismo e o individualismo liberal e situa o homem em sua dimensão universal, traduz-se no Estado corporativo fascista, desenvolvido em sua versão mais depurada na fase republicana do fascismo (1943 - 1945). Porém já em 1921, o fascismo define a Nação e o Estado desde uma perspectiva orgânica: "A Nação não é somente uma soma de habitantes do território, nem um instrumento que cada partido possa empregar para o logro de seus objetivos, senão um organismo que abraça uma série ilimitada de gerações, e dentro do qual cada indivíduo é somente um membro contingente e transitório; a Nação é a síntese suprema de todas as energias materiais e morais da Raça. O Estado é a expressão da Nação". O Estado é para o fascismo a única exteriorização do conteúdo inteiro da Nação. Desde logo, proscreve o fascismo toda forma de vida social ou coletiva alheia ao Estado: "Tudo no Estado, nada contra o Estado; nada fora do Estado" (Mussolini). Segundo a expressão de Rocco, "o indivíduo é tão somente um elemento transitório e infinitamente pequeno dentro de um todo orgânico".

As materializações institucionais dos regimes antes expostos, de um ou de outro modo, sob diversos prismas ideológicos ou filosóficos, tentaram reconstruir a ordem orgânica corporativa. Não obstante, todas elas naufragaram mais por razões externas que por causa da dinâmica mesma dos sistemas. O fenômeno histórico fascista, em geral, cometeu os erros do totalitarismo, da burocratização e da transação com formas institucionais antitéticas, porém não foi o corporativismo ou a idéia orgânica que fracassaram. A guerra sepultou estas experiências, ou, no caso da Espanha e Portugal, mumificou os regimes, retirando-lhes toda substância de índole transcendente ou revolucionária, transformando-as em sonolentas burocracias que sobreviveram a si mesmas, apoiadas na inércia histórica e política ou no mando carismático da figura superior (Franco e Oliveira Salazar).


O Organicismo no Pós-Guerra

As fórmulas posteriores nacional-populistas que surgem no pós-guerra (Argentina, Egito, Indonésia), de algum modo, menos explícito, buscam também interpretar a idéia da Nação como organismo. Perón e os trabalhadores; Nasser e o Exército mais a idéia do pan-arabismo como unidade histórica, étnica e religiosa; Sukarno e a união da idéia nacional, a questão social e a religião (o Nasakom). Porém o corporativismo e a concepção orgânica, como formulações ideológicas, ficarão marcados com o estigma do fascismo. Na atualidade volta-se a escutar falar delas, desde um plano sociológico, ideologicamente neutro. E é que a sociedade, não obstante que as fórmulas demo-liberais tendam a impor-se mundialmente como uma espécie de uniforme, continua estando estruturada como um organismo. Ao qual a abstração individualista ou coletivista não serve-lhe como meio de representar sua natural estrutura. Daí os "pactos sociais", os Conselhos Econômicos e Sociais, os "lobbies" de pressão, que aparecem como estruturas paralelas às estruturas parlamentares formais. Daí a força que assumem as grandes confederações sindicais. A democracia liberal, para sobreviver, deve gerar válvulas de escape à pressão da comunidade. Os partidos políticos buscam então transformar-se em leitos para que os corpos sociais, ou suas inquietudes, canalizem-se. Em um recente artigo de Robert Steuckers (Vouloir, Bruxelas, nº56 - 57 - 58, Outubro - Novembro 1989), expõem-se as mais recentes idéias sobre o tema, desde uma perspectiva cognitivo-biológica. Apresenta-se, em primeiro lugar, um problema de caráter semântico: "Quando fala-se de organização, dever-se-ia em seguida pensar em 'orgânico' e não simplesmente pensar em um modo estático qualquer de regulação estrutural. Na acepção semântica do termo 'organização' as tradições filosóficas grega e alemã perceberão em conjunto a dimensão orgânica/somática/cognitivo-biológica enquanto que o grosso da tradição sociológica norteamericana - que vai com vento em popa desde 1945 - não vê detrás do vocábulo 'organização' mais que um simples fato de gestão mecânica, ou um procedimento de regulação sem recursos íntimos profundos". Portanto, a partir da concepção baseada na tradição européia, a lógica última da organização alimentar-se-á de uma fonte interior, não impulsionada desde o exterior; na tradição empírica e mecanicista anglo-saxã, a organização será a ação de um diretor de orquestra exterior.

Porém, seguindo a tradição européia, a organização é um "organon", não uma instituição. Um sistema organizado segundo leis interiores próprias possuirá as seguintes qualidades: complexidade unitária dinâmica e processual, não determinada e autônoma, interativa e fazendo referência a si mesma. Tal sistema poderá ser uma planta, um bosque, um processo mineral ou físico-químico, uma agrupação animal como um formigueiro, uma manada de cervos, um rebanho de búfalos, uma tribo de símios ou uma soicedade humana. A organização não é jamais uma hierarquia pela hierarquia, nem uma ordem pela ordem. Não tem uma dimensão construtivista, é um fenômeno processual e não institucional.

Na atualidade, o enfoque orgânico aponta a compreender a dinâmica dos sistemas, de modo a lograr que eles sejam entendidos não como processos retroativos estabilizantes, senão como "auto-organizações inovadoras". Prévia a esta etapa, o organicismo sociológico teve um matiz conservador. Contra a crescente opressão e a quebra do expansionismo economicista e racionalista, o pensamento organicista conservador dos anos 20 e 30 põe o acento na estabilidade das ordens naturais orgânicas em sua adaptabilidade constante. O principal foco intelectual do conservadorismo organicista é indubitavelmente o austríaco Othmar Spann (1878 - 1950). Um de seus biógrafos recentes, Walter Becker, resume sucintamente os ataques que Spann faz ao liberalismo de Smith, Mandeville ou Hayek. Sua crítica dirige-se especialmente a Hayek e influenciou todas as escolas organicistas solidaristas, pertencentes ao movimento cristão-corporativista do pré-guerra e, mais parcialmente, ao movimento democrata-cristão personalista do pós-guerra.

Para Spann e os organicistas, o mercado não é um "bilhar neutro" em que as bolas-mercadorias e as bolas-serviços entrechocam-se, senão um terreno preciso, que varia segundo as circunstâncias geográficas e históricas. As circunstâncias determinam as variáveis de toda ação econômica: Não há pois ação econômica padrão, realizada por indivíduos padrão, senão ações econômicas variáveis realizadas por indivíduos diferentes, quer dizer, diferenciados pelas circunstâncias espaço-temporais. Contrariamente às afirnações da escola neoliberal, para Spann e seus discípulos o agente econômico não atua somente frente ao absoluto, sem um programa social (familiar, regional, nacional, corporativo, etc.) senão como representante de uma rede de interesses coletivos, de sentimentos compartilhados, de móveis determinados pela história, etc. Na ótica de Hayek, para fazer prosperar a ordem econômica é necessário atuar fazendo abstração de todo contato e sentimento social e solidário e não fazer senão aquilo que vai no sentido dos interesses da própria individualidade. Para Spann, não existe o ato econômico descontextualizado, desprendido de um tecido social preciso, que tenha sua história e sua circunstância. Pensar como Hayek é favorecer o deslocamento da economia e preparar o terreno para as tentativas de tipo marxista. A planificação surge necessariamente do enfoque organicista.

Porém não é o enfoque sociológico o que queremos destacar. Este enfoque mostra a multiplicidade de perspectiva que uma cosmovisão orgânica pode entregar. O problema na atualidade é, fundamentalmente, representar a complexidade da sociedade. O princípio de representação, que condenava como ingênua e utópica toda pretensão de participação direta dos indivíduos na coisa pública, caiu vítima dos mesmos argumentos que evocou contra seus adversários, em primeiro lugar a incapacidade em dar conta das dimensões (não geográfico-espaciais, senão funcionais) assumida pelos portadores de demandas frente ao sistema político. As políticas de tipo neocorporativo, adotadas pela socialdemocracia e pelos governos liberais - progressistas europeus, enfrentam esta essencial problemática. Com o termo neocorporativo, neste caso, indica-se um sistema de regulamentação das relações sociais baseado na concertação entre governos, empresários privados e grandes sindicatos, com o objetivo de incluir a parte social na esfera de ação política estatal. Este modelo conheceu uma grande aceitação a partir dos primeiros anos 70 e, partindo da Suécia, experimentou diversas traduções em diversos países de Europa (Ex.: o pacto da Moncloa, em Espanha). Depois dos primeiros êxitos, atolou-se em suas contradições de origem, pois em definitiva deixa fora à maioria ou a um grande número de atores sociais, reduzindo-se aos grandes "cartéis" empresariais e às grandes confederações sindicais (Marco Tarchi: La política dell'identitá. Crisi della democrazia e "nuovi movimenti").

Em nosso país, após o fracasso político da experiência militar, as concepções neocorporativistas que surgiram na primeira etapa do regime e que materializaram-se nos Conselhos de Desenvolvimento Comunal (CODECOS), nos Conselhos Regionais de Desenvolvimento (COREDES) e, a nível nacional, no Conselho Econômico e Social (CES), todos eles, na prática, mais caixas de ressonância das autoridades locais, regionais ou nacionais que leitos de participação orgânica, hoje encontram-se ameaçados de rápida extinção. Não obstante isso, subsistem as tendências neocorporativistas ao interior de alguns setores do governo, em especial do chamado "socialismo renovado". Assim, o Subsecretário de Desenvolvimento Regional, Gonzalo Martner, ao anunciar que o Governo apresentaria nos próximos dias um projeto de reforma municipal, com o objetivo de realizar eleições diretas de prefeitos durante 1991, anunciou também que os CODECOS seriam substituídos por um Conselho Econômico e Social a nível Comunal, para que junto ao Conselho Municipal preste assessoria aos prefeitos. Afirmou que "parece pertinente que permaneça um Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social de caráter local, no qual estejam representadas de modo corporativo as distintas organizações vivas da Comunidade". Precisou que este organismo e o Conselho Municipal permitirão que o Prefeito tenha "a possibilidade de estabelecer uma estreita relação de consulta e trabalho comum com as forças vivas da Comunidade", e acrescentou que "o que queremos é reunir a diversidade das organizações territoriais e a capacidade de ação dos vizinhos".

Conclusão

Em definitivo, não é resolver um problema de maior ou menor representação de interesses sociais ou econômicos o objetivo final da idéia orgânica. Despojada de seu significado superior ou transcendente pode facilmente converter-se em uma escola sociológica ou em uma ideologia neutra, mais ou menos eficaz como sistema para enfrentar a complexidade dos grupos humanos. Porém uma sociedade que perdeu todo princípio ordenador e normativo, e que entrou em uma etapa de involução acelerada, não pode retomar um caminho de ascensão e de recuperação por obra de uma técnica sociológica ou ideológica. Resta então, para os que não sentem-se comprometidos com o atual processo de dissolução e em geral, com os pressupostos do mundo moderno, reter os princípios ordenadores que inspirar a idéia orgânica. Com Evola, podemos dizer que, "em particular, podemos admitir um sistema de competências técnicas e de representações corporativas para substituir o parlamentarismo dos partidos; porém deve ter-se presente que as hierarquias técnicas em seu conjunto, não podem significar nada mais que um grau da hierarquia integra: estas referem-se à ordem dos meios, que hão de subordinar-se à ordem dos fins, à qual, portanto, corresponde a parte propriamente política e espiritual do Estado. Falar pois em um 'Estado do Trabalho' ou da produção equivale a fazer da parte um todo, equivale a reduzir um organismo humano a suas funções simplesmente físicas, vitais. Nem uma coisa tal, obscura e obtusa, pode ser nossa bandeira, nem a mesma idéia social. A antítese verdadeira tanto frente ao 'Ocidente' como ao 'Oriente' não é o 'Ideal Social'. É, ao invés, a idéia hierárquica integral. Em relação a isso, nenhuma incerteza é tolerável."