09/07/2011

A Propósito da Teologia Política e do Problema da Linha

por Eduardo Hernando Nieto

1. A Natureza da Linha e a Crise da Política

A crise do político que via-se vindo com força desde inícios do século XX segundo advertiam "profetas" como Weber, Schmitt ou Spengler, percebe-se claramente hoje com a convulsão social que gira ao redor da perda de significados dos conceitos, particularmente os políticos, como também com a  grave alteração do que foram os espaços, os papéis e as funções sociais tradicionais.

Tal confusão aprecia-se por exemplo no plano sexual quando começamos a ter problemas para distinguir os sexos e inventam-se conceitos ambíguos como o de "gênero", no aspecto político por sua vez, faz-se já complicado discernir entre os âmbitos públicos ou privados ou pior ainda, diferenciar o amigo do inimigo, e a vagueza também exibe-se quando resulta impossível falar de hierarquias, de centros e periferias, do real e do ideal ou finalmente no plano moral, do bem e do mal.

Certamente, a gravidade e perversidade deste fenômeno, como demonstraremos logo, é usualmente "anestesiada" recorrendo à linguagem "acadêmica", descrevendo esta nova realidade simplesmente como uma manifestação natural da chamada pós-modernidade que caracteriza-se justamente pela relativização dos conceitos e pela conseguinte eliminação das hierarquias, forma típica, dito seja de passagem, que acompanhou a modernidade cartesana. Inclusive, para os filósofos pós-modernos, herdeiros diretos do discurso marxista, como Lyotard, Foucault ou Derrida, esta situação mais bem poderia ser vista de modo positivo na medida que a superação e anulação final das hierarquias consideram-se como um signo de plenitude democrática, falando-se assim da transcendência ou anulação do poder e finalmente da afirmação da igualdade plena.

Não obstante, para entender este fenômento e compreender acima de tudo a natureza do perigo que ronda por trás desta situação, segundo nossa leitura particular, vamos recorrer inicialmente ao apoio da Teologia Política, e ao conceito da linha ou katechon. Assim pois, desde a Teologia Política, toda esta situação de crise social e anomia não é senão fruto de um processo acelerado de indiferenciação daquilo que permitia anteriormente a separação e a conseguinte definição de espaços e papéis, isto é, do nomos, (de acordo à linguagem jurídica), da linha, (desde a perspectiva metapolítica), ou katechon, o selo que continha a chegada do iníquo ou anticristo como afirmava a revelação dentro do contexto teológico.

A idéia de limite sempre esteve associada ao homem e sua natureza, assim o entenderam filósofos clássicos como Sócrates, Aristóteles e Platão, teólogos como Santo Agostinho ou São Tomás e inclusive filósofos modernos como Montesquieu, Tocqueville ou Stuart Mill, os quais com maior ou menor intensidade compreenderam que a virtude e a justiça dependiam da existência de uma ordem política, assumindo que esta ordem somente poderia ser viável sempre que pudessem definir-se claramente limites, inclusive de caráter interno.

Neste sentido, a política teve também o objetivo de situar e delimiar espaços dentro da terra, vale dizer, em conseguir manter uma linha de separação que definisse também os objetos, quer se tratasse por exemplo de uma comunidade, de uma família, uma Igreja, do Estado, ou da propriedade ou mantendo uma divisão entre contrários, o meu e o teu, ou o bom e o mau, desde uma perspectiva qualitativa, isto é, na busca do melhor regime político que nascia da tentativa de harmonizar os opostos.

Se bem é verdade que tem sido usual o associar a idéia de separação ao pensamento moderno, ao menos em seus inícios, e na política moderna ao liberalismo e à democracia, não obstante, como já vimos no contexto antigo também estava muito presente a idéia de nomos ou linha, tratando-se neste caso de uma separação que não buscava isolar os espaços senão integrá-los em um todo coerente mantendo a diversidade dentro da unidade orgânica, garantia última do regime justo.

Assim pois, o nomos como sustentava acertadamente o teórico político e jurista alemão Carl Schmitt, produzia então um ordenamento dentro de um espaço físico estabelecendo imediatamente significados e sentidos. O nomos podia entender-se também como o ato inicial de possessão da terra:

"A história de todo povo que fez-se sedentário, de toda comunidade e de todo império inicia-se pois, em qualquer forma com o ato constitutivo de uma tomada da terra. Isso também é válido enquanto ao começo de qualquer época histórica. A ocupação de terra precede não só logicamente, senão também historicamente à ordenação que logo seguir-lhe-á. Contém assim a ordem inicial do espaço, a origem de toda ordenação concreta posterior e de todo direito ulterior. A tomada de terra é o enraizar no mundo material da história."

Schmitt ao mencionar o conceito katechon, ou nomos, associava-o fundamentalmente ao catolicismo, no qual a linha divisória marcava o terreno eclesiástico e político porém mantendo uma relação ainda quando poderia ser que no fundo a autoridade eclesiástica mantivesse uma preponderância na medida em que o Império ou a Respublica Christiana havia-se construído em função à revelação e à tentativa de evitar a concentração de poder. O katechon neste caso podia entender-se também como autoridade, como auctoritas.

"A unidade medieval de império e sacerdócio na Europa Ocidental e Central não foi uma concentração de poder em mãos de uma pessoa. Estava baseada desde o princípio na diferenciação entre potestas e auctoritas como duas linhas distintas de ordem dentro da mesma ampla unidade. As diferenças entre Imperador e Papa não são, portanto diferenças absolutas, senão unicamente ordens nas quais perdura a Respublica Christiana."

Por isso, a negação do katechon seria o chamado Cesarismo que surgiria ao redor da Revolução Francesa constituindo um regime político presumidamente todo poderoso porém em termos reais muito débil em relação ao Império porque o verdadeiro poder requer também da autoridade que era algo que o Cesarismo descartava gerando assim um regime político secular e inimigo da Teologia Política, quer dizer, negador do katechon e da autoridade, portanto, inimigo da ordem.

Certamente, Schmitt destacou sempre o caráter espaço-temporal e voluntarista da política, em contraste com a dinâmica abstrata e atemporal que percebia-se por exemplo no discurso jurídico e político moderno de induvidável raioz kantiana, assim mesmo a política entendida como nomos ou como katechon implicava uma tomada de posição que criava identidades e permitia assim o reconhecimento e a consolidação de comunidades delimitadas pela própria política. De fato, o nomos e seu caráter concreto estava ainda presente no discurso dos filósofos clássicos, em particular Aristóteles, entendendo-se basicamente como "a forma imediata na qual faz-se visível, enquanto ao espaço, a ordenação política e social de um povo."

Por certo, que a própria idéia de linha ou nomos conduzia-nos à imagem do traçado como ato de vontade ou decisão, uma ação que implicava no fundo uma recriação do ato fundacional do mundo, entendido este como ordem natural ou divina, a qual significava que a política não podia desligar-se de seu fundamento metafísico e teológico.

A presença do nomos envitava então a anomia que seria no fundo uma manifestação da indecisão, indefinição e relativismo. Neste sentido, verdadeiros inimigos da política ou do nomos seriam então a ausência de decisão ou vontade, por um lado, e pelo outro, a promovida neutralidade frente aos valores, típica característica do liberalismo contemporâneo.

Assim pois, a ausência de decisão observar-se-ia dentro de contextos como o do Mercado, por exemplo, pois este seria o espaço da "não decisão" e da "ordem espontânea", enquanto que no caso da neutralidade, falaríamos do Estado Liberal contemporâneo precisamente ao ser este o maior promotor da indiferença no tema dos valores e do individualismo que nega o respeito por qualquer princípio político ou verdade objetiva.

Indubidavelmente, a carência de conhecimento político no mundo atual faz passar desapercebido este problema que resulta na prática crucial pois poderia explicar muitos dos acontecimentos que vem-se decantando hoje e que tem que ver diretamente com a perda de propósitos e sentidos na vida dos homens, com os conflitos que se suscitam pela falta de identidade, a ausência de status e a luta pelo reconhecimento. Por isso mesmo, é que a indiferenciação do nomos significaria abrir as portas ao caos e a desordem.

Chegados a este ponto é pertinente apresentar-se algumas perguntas, o que é que produziu este fenômeno de perda do nomos? Por quê os limites foram transbordados? E o mais importante, como poder-se-ia recuperar o katechon?

Sem dúvida, que são perguntas complexas porém quiçá a última seja muito mais difícil de responder. Pelo visto, a raiz do decaimento da linha está dado pelo incremento do poder e da força nos homens. Se reconhecemos na linha um limite que não pode ser ultrapassado, o poder crescente que veio concentrado o homem moderno serviu para ultrapassar a linha e inclusive apagá-la, com isso então destapou-se "o selo), como rezava a revelação, trazendo o conseguinte caos e anomia generalizada.

Este poder concentrado, chama-se em realidade Técnica Moderna que tem que ver diretamente com esta crise de política. Não por gosto, aquieles que interessaram-se durante o século XX pelo problema do katechon, como Jünger, Schmitt, Heidegger ou Spengler, olharam com grande suspeição o desenvolvimento da técnica.

A técnica moderna, à diferença da antiga como sustentava Heidegger não pretende "re-velar" ou "des-cobrir" como a antiga poiesis, mas sim desafiá-lo:

"O que é a tecnologia moderna? Também é revelação. Somente quando nos permitimos prestar atenção a sua característica fundamental é quando a tecnologia moderna se nos mostra. E não obstante, a revelação que se dá através da tecnologia moderna não se manifesta da maneira de trazer a nós no sentido da poiesis. O revelar que subjaz à tecnologia moderna é o do desafio (Herausforden), que coloca à natureza na pouco razoável demanda de que nos providencie energia que possa ser extraída e armazenada como tal."

Paradoxalmente, esta técnica que podia servir para construir e expandir a vida e o bem-estar e que era também fruto da divisão do trabalho, possuía um lado maligno no sentido de poder outorgar uma força igualmente poderosa para destruir e alienar o homem de sua essência, quer dizer, tinha o poder de remontá-lo fora da natureza e fora de sua própria natureza, desumanizando-o. Porém, esta técnica ademais, servia para relativizar espaços e fazê-los perder significado, como quando empregávamos os elevadores em um edifício deixando vazios e sem uso as escadas, excluindo-as da realidade; ou quando a concentração de áreas comerciais em distintos lugares da cidade, começava a constituir uma série de guetos sem contato entre si, acentuando assim a fragmentação da cidade e a afirmação de diferenças radicais.

O poder da técnica no campo da biologia poderá servir também para deixar completamente aberto o âmbito da privacidade como observamos no caso do projeto genoma humano, que permite por exemplo gerar uma quantidade de informação sobre a pessoa que não somente a torna vulnerável mas senão que na prática terminará por reduzir sua autonomia a níveis inaceitáveis. Com a técnica então a dualidade do escuro e do luminoso, se desvanece em favor da luz, a qual no plano social pode ler-se como a "publicidade do privado" que terminar assim por acabar com a privacidade.

No fundo, a técnica moderna proporcionava um poder excessivo aos homens que terminava por desvirtuar a figura da autoridade, outorgando a seus detentores uma capacidade tal que já não podiam ser controlados por nada nem por ninguém. Em realidade a técnica ao final podia mais bem ser útil somente a ela mesma e já não à humanidade, tal e como advertia também o próprio historiador Oswald Spengler:

"A civilização converteu-se ela mesma em uma máquina que tudo o que faz ou quer fazer, o faz maquinisticamente. Hoje pensa-se em cavalos de vapor, já não se veem e contemplam as cascatas sem convertê-las mentalmente em energia elétrica. Não se vê um prado cheio de rebanhos pastando sem pensar no aproveitamento de sua carne. Não se tropeça com um belo ofício antigo, de uma população todavia alimentada de seiva primordial, sem sentir o desejo de substituí-lo por uma técnica moderna. Com sentido ou sem ele, o pensamento quer realização. O luxo da máquina é a consequência de uma construção mental. A máquina, é, em último termo, um símbolo como seu ideal oculto, o perpetuum mobile, é uma necessidade espiritual e anímica porém não vital."

Porém, os maiores perigos radicavam não somente em que a linha ao final podia ser varrida pela técnica senão também porque sem ser necessariamente eliminada esta podia ser objeto de manipulação e alteração arbitrária. Quer dizer, que a técnica brinda também a possibilidade de "jogar" com sua localização e colocá-la segundo conveniência em qualquer lugar. Um exemplo do dito encontramos claramente na promovida "sociedade civil" e seus produtos conhecidos como Organismos Não-Governamentais (ONGs), conceito que possui tal ambiguidade que por momentos aparece situada dentro do âmbito privado porém também dentro do espaço público. Assim, quando trata-se de participar no governo "assessoram", ocupam cargos públicos e cobra do erário Estatal como se tratassem de organizações políticas escolhidas popularmente gozando por isso de representação política, porém quando o assunto tem que ver com o controle ou a supervisão então imediatamente identificam-se com o espaço privado buscando assim neutralizar qualquer ato de fiscalização, quer dizer, reivindicam uma imunidade.

Esta situação, ademais de gerar mal-estar pela desonestidade e injustiça do fato, produz uma sensação de real confusão, que é também um signo claro do processo de indiferenciação do katechon. A confusão é no fundo um símbolo inequívoco de anomia exagerada, quer dizer, de uma situação na qual esta supera ao nomos e gera esta atmosfera tão nefasta que estaria avisando a próxima desaparição do nomos da terra.

Avaliado já o problema da perda do nomos, encontramos que sua gestação dá-se com a chegada à técnica moderna, que é a sua vez resultado do desenvolvimento da própria modernidade. Uma modernidade que em si mesma é um processo contraditório e que se acelera diariamente.

Agora bem, se o nomos pode interpretar-se como um ato de vontade, é induvidável que sua restauração passa pelo terreno político, do poder e da decisão, porém o poder como vimos requer limites, quer dizer, que deixe de ser somente poder e transforme-se em autoridade. Não obstante, o contexto atual dificilmente presta-se para entender a natureza da autoridade que ademais requer de fundamentação filosófica ou teológica mais não científica. Assim mesmo, o outro grave problema encontramos com a própria presença hegemônica da técnica que não podemos anular ademais de ser isto também um absurdo. O nomos requer então de uma técnica que possa ser limitada e em cujo caso necessitará também de pessoas que possam controlar dita técnica e que se possa reorientá-la a fim de que ela mesma possa contribuir a restaurar a ordem com o traçado da linha.

Consequentemente, a tese sugerida por Leo Strauss, em relação à recuperação da filosofia política e da educação liberal junto com a possibilidade de retomar a concepção do Estado decisionista nos termos de Carl Schmitt, seriam duas alternativas necessárias neste objetivo. Trata-se então de constituir por um lado cidadãos virtuosos que estejam em condições de manejar e moderar seus sentimentos para poder reomar o sentido real da política, enquanto que pelo outro, de afirmar um Estado que oriente e fixe sentidos e valores e não que permaneça impávido como aconselham os impulsores do Estado neutro do liberalismo contemporâneo e do Mercado. Somente assim poderemos retomar o sentido do katechon, quer dizer, graças ao reencontro com a filosofia política e com a teologia política.