31/01/2011

Traidores

"Uma Nação pode sobreviver a seus tolos, e até mesmo aos ambiciosos. Mas ela não pode sobreviver à traição vinda do interior. Um inimigo nos portões é menos formidável, pois ele é conhecido e carrega seu estandarte abertamente. Mas o traidor se move entre aqueles que se encontram dentro dos portões livremente, seus sussurros maliciosos se esgueirando por todos os becos, escutados mesmo nos próprios salões do governo. Pois o traidor não parece ser um traidor; ele fala com um sotaque familiar para suas vítimas, e ele veste sua face e seus argumentos, ele apela à mediocridade que se encontra arraigada profundamente nos corações de todos os homens. Ele apodrece a alma de uma nação, ele trabalha secretamente e ocultamente na noite para sabotar os pilares da cidade, ele infecta o corpo político de modo que ele não possa mais resistir. Um assassino é menos temível. O traidor é a praga."
(Cícero)

29/01/2011

Liberais: o Inimigo dentro dos portões

por C.J. Carnacchio

A guerra filosófica entre os conservadores e os liberais começou há duzentos anos quando a primeira cabeça de um aristocrata francês foi colocada numa estaca como declaração de guerra à sociedade prescritiva. Os liberais são discípulos do iluminismo e ferozes apoiantes da Revolução Francesa. São os filhos bastardos de Jean-Jacques Rousseau e Thomas Payne.

Os conservadores, por outro lado, são os discípulos do estadista britânico do século XVIII, Edmundo Burke. Foi a sua ardente diatribe contra a Revolução Francesa, na obra “Reflections on the Revolution in France”, que deu aos conservadores a sua substância filosófica para os próximos dois séculos. Burke falou contra as atrocidades dos revolucionários jacobinos bem como contra filósofos do iluminismo como Rousseau, que ele viu como responsáveis pela revolução.

Infelizmente a maioria dos conservadores e liberais de hoje ignoram esta querela de 200 anos. A maioria acredita que a aliança baseada em interesses comuns superficiais constitui uma prática política sólida. Mas o pacto dos conservadores com os liberais tem sido muito prejudicial para a causa do verdadeiro conservadorismo, tal como exposto por Burke. Demasiado frequentemente ouvimos pretensos conservadores a cantarem constantes loas ao livre-mercado e ao individualismo em vez de falarem de tradição e espírito comunitário. Os liberais poluíram de tal modo as águas intelectuais do verdadeiro conservadorismo com o seu lixo ideológico que muitos conservadores têm agora dificuldade em distinguirem entre as duas coisas. À luz disto, queria aproveitar esta oportunidade para lembrar aos conservadores como eu os extremos abismos filosóficos que sempre separaram o homem conservador da besta liberal. 

A mais fundamental diferença entre o conservadorismo e o liberalismo é de ideologia. O liberalismo é uma ideologia baseada em ideias e doutrinas abstractas como o livre-mercado, liberdade absoluta, e individualismo radical. O liberal acredita tolamente que se os seus ingredientes abstractos forem apropriadamente misturados no caldeirão social, uma utopia terrestre brotará.

O conservadorismo, como H.Stuart Hughes declarou, é a negação da ideologia. A ideologia é fundada sobre ideias abstractas que não possuem qualquer relação com a realidade, enquanto o conservadorismo é fundado sobre a história, a tradição, o costume, a convenção e a prescrição. Como Russel Kirk afirmou:”o conservadorismo …é um estado de espírito, um tipo de carácter, uma maneira de olhar para a ordem social civil. A atitude a que chamamos conservadorismo é sustentada por um conjunto de sentimentos, em vez de um sistema de dogmas ideológicos.” O conservador põe a sua fé na sapiência dos seus antepassados e na virtude da experiência, em vez de no jargão abstracto dos “sofistas, calculadores e economistas”. Ele sabe que não existem fórmulas políticas simples aplicáveis a todos os problemas do mundo.

Depois, os conservadores e os liberais divergem sobre o que une a sociedade civil. Os liberais vêem a sociedade civil como algo artificial – um acordo dissolúvel feito para fomentar os interesses próprios individuais. Na sua visão repugnante, a sociedade é “uma parceria de coisas apenas subserviente à grosseira existência animal de natureza temporária e perecedoura”. A sociedade é apenas uma máquina com partes inter-permutáveis e separáveis, diz o liberal. 

Em contraste, o conservador declara que a sociedade não é um mísero acordo económico ou um funcionamento mecânico, é uma entidade espiritual e orgânica. O conservador, imbuído com o espírito de Burke vê a sociedade como uma parceria entre os vivos, os mortos e os que estão ainda por nascer – uma comunidade de almas. Cada contrato social, em cada Estado particular “ não é senão uma cláusula no grande contrato primevo de eterna sociedade, ligando as baixas e altas naturezas…”.

Não é verdade que a legitimidade do Estado seja dependente apenas do consentimento tácito, como os liberais querem que acreditemos. A legitimidade do contrato social é fruto da história e das tradições que vão muito para além de qualquer simples geração. O presente não é livre, como os racionalistas nos dizem, de redesenhar a sociedade em função de doutrinas abstractas ou dogmas teóricos. Como Russel Kirk disse:” a sociedade é muito mais do que um mecanismo político…se a sociedade for tratada como um simples mecanismo para ser gerido com preceitos matemáticos, então o homem será degradado em algo muito mais baixo do que um parceiro no contrato imortal que une os mortos, os vivos e os ainda por nascer, o laço entre Deus e o homem”.

O próximo ponto filosófico em que os conservadores e os liberais cruzam espadas é no conceito de liberdade. Os liberais acreditam que a liberdade é a primeira prioridade de qualquer sociedade. Mas a liberdade que eles tanto valorizam é solitária, desligada, individual e egoísta. A sua é uma liberdade abstracta divorciada da ordem e da virtude. O liberal vê a liberdade como algo bom em si e de si e procura constantemente maximizá-la, seja qual for o custo. 

O conservador acredita que a ordem é a primeira prioridade da sociedade, pois é apenas no quadro de uma ordem social duradoura que uma verdadeira e estável liberdade pode ser alcançada. Para o conservador, a única liberdade é “uma liberdade ligada à ordem: que existe não apenas a par da ordem e da virtude mas que não pode existir de todo sem elas”. Quando considera os efeitos da liberdade, o conservador ouve as palavras de Burke a ecoarem:” O efeito da liberdade para o indivíduo é que eles podem fazer o que quiserem: devíamos ver o que eles querem fazer, antes de arriscarmos congratulações, que podem rapidamente ser transformadas em lamentações.”

O individualismo é o próximo campo de batalha onde os conservadores e os liberais soltam os cães de guerra. Os liberais possuem uma ideologia de individualismo que nega que a vida tenha algum significado para além da gratificação do ego. Eles imaginam uma utopia de individualismo onde o homem existe para o seu próprio fim e os seres humanos são reduzidos a átomos sociais. O egoísmo é uma virtude, diz o liberal.

Os conservadores reconhecem que a unidade social básica não é o individuo mas o grupo – grupos autónomos como a família, a igreja, a comunidade local, a vizinhança, a escola, o sindicato, a guilda, etc. Estes grupos intermedeiam entre o indivíduo e o Estado e ajudam a preservar a ordem social. Como Robert Nisbet assinalou:” Libertem o homem do contexto da comunidade e não terão liberdade e direitos mas intolerável solidão e sujeição a demoníacos medos e paixões”. O conservador valoriza o espírito de comunidade e concorda com Marco Aurélio que dizia que “nós somos feitos para a cooperação, como as mãos, como os pés”. 

Tanto os liberais como os conservadores apoiam a economia de mercado, mas diferem no grau da sua devoção. Muitos liberais idolatram o mercado como se fosse uma religião – de facto muitos não têm qualquer problema em substituir a cruz pelo símbolo do dólar. Mas os liberais não confinam o seu zelo pelo mercado à arena económica. Eles acreditam que o mercado é uma doutrina abstracta aplicável a todas as facetas da vida e dos problemas sociais. Na verdade os liberais são apenas marxistas invertidos, que substituem o livre-mercado ao socialismo não só como o sistema económico dominante mas também como a influência social e politica determinante.

Os Conservadores sabem que a sociedade é demasiado complexa para ser reconstruída de acordo com doutrinas económicas abstractas. Têm o homem e a sociedade em demasiada consideração para rebaixar toda a existência à produção e consumo de bens materiais – o nexo dos fluxos de caixa é de facto um fraco elo social. As leis do comércio não são substitutas para as leis da convenção.

Em conclusão, o liberalismo é tanto um anátema para o verdadeiro conservadorismo burkeano quanto o marxismo e deve ser enfrentado com a mesma ferocidade. Como Russel Kirke uma vez disse:” A adversidade une por vezes estranhos amantes, mas os actuais feitos dos conservadores, desaconselham a que se deitem, quais carneiros, com os leões liberais”

28/01/2011

Desdenhar o elemento bárbaro

"Seria coisa de imprudentes ou de distraídos não sentir medo ao ver tantos homens jovens, de educação distinta à nossa e com costumes próprios, ocupados nos afazeres da guerra dentro de nosso território (...)

Mas não preparar as forças necessárias para fazer-lhes frente, conceder a extensão do serviço militar a todos os que a solicitam, na idéia de que aqueles são já nossas forças militares, e permitir aos de nosso país que se dediquem a outras coisas, tudo isso não é a conduta de homens que correm para sua perdição? É preciso, ao invés de tolerar que sejam uns citas os que aqui portam as armas, pedir aos homens de nosso campo que sejam eles os que lutem para defendê-lo, e efetuar um alistamento tão massivo como para tirar o filósofo de seu lugar de meditação, o artesão de sua oficina e de seu comércio aquele que dele cuida. E toda essa massa de preguiçosos, que por seu muito ócio consomem sua vida nos teatros, também deveremos persuadi-los de a levarem a sério, antes de que passem do riso ao pranto, sem que piores ou melhores escrúpulos sejam um obstáculo para o nascimento de uma força armada própria de romanos. Pois bem, antes de chegar até onde já nos vamos encaminhando, devemos recuperar aqueles altos sentimentos dos romanos e nos acostumar a conseguir por nós mesmos as vitórias, sem nos contentar em ser meros partícipes, mas sim desdenhando do elemento bárbaro onde quer que ele se encontre."
(Sinésio, bispo de Cirene, Carta ao Imperador Arcádio)

26/01/2011

Mito e Comunidade

por Giorgio Locchi

Com um bom século de avanço, Friedrich Nietzsche havia previsto todos, ou quase todos, os fenómenos que caracterizam a nossa época, como a ascensão do niilismo anarquista, a epidemia das neuroses, o extraordinário desenvolvimento de uma arte do espectáculo rebaixada ao nível do “circense” quotidiano, o comércio da luxúria. A verificação das profecias nietzschianas deveria afectar os espíritos, convidá-los à reflexão. Não é assim. Mas isso é fatal. Nietzsche havia estabelecido para as sociedades ocidentais um diagnóstico de decadência e não fazia mais do que prever o decurso normal da doença. Ora, o que é próprio desta doença das sociedades que é a decadência é a cegueira que afecta o doente sobre o seu estado. Quanto mais está doente, mais acredita estar de boa saúde. Uma sociedade decadente é tanto mais progressista quanto mais se aproxima da conclusão fatal da sua doença.

Olhemos em torno a nós. Todos, do liberal mais ou menos avançado ao comunista mais ou menos atrasado, acreditam visceralmente no progresso, estão intimamente convencidos de viver uma era de progresso e mesmo de progresso último. Vêem toda a espécie de fenómenos sociais que na longa história dos povos sempre caracterizaram as agonias dos povos e das culturas. Do feminismo à ascensão social fulgurante dos histriões e das gentes do espectáculo, da desagregação das células sociais tradicionais (para nós a família) às tentativas efémeras e sempre renovadas de as substituir por não se sabe que “comunas”, do universalismo masoquista ao abatimento de toda a norma social restritiva para o indivíduo. Mas tornaram-se perfeitamente incapazes de tirar lições da história, o que os leva por vezes a dizer que a história não tem sentido.

Um outro traço é característico da decadência avançada: a mediocridade dos sentimentos. Discutimos agressivamente, mas toleramo-nos. Ainda fazemos a guerra, fria se possível, mas fazemo-la em nome do amor, para libertar o outro.

Aquilo que nos obrigamos a odiar é uma abstracção do Outro, nunca o Outro na sua realidade. Odiamos consoante o campo em que nos encontramos, o detestável capitalismo ocidental ou o horrível regime comunista, mas amamos o povo russo, amamos o grande povo americano. As sociedades decadentes já não sabem amar ou odiar, já estão tépidas, pois a vida está em vias de as abandonar, a sua força vital está já quase toda dissipada. Essa força vital que dá vida às sociedades, as organiza e as lança sobre os perigosos caminhos da história, essa força pode receber diversos nomes. Dostoievski chamava-lhe Deus e dizia que quando um povo deixa de ter o seu Deus não pode mais que agonizar e morrer. Friedrich Nietzsche, por sua vez, anunciou às sociedades ocidentais que o seu Deus estava morto e que elas também iriam, portanto, morrer. Paul Valéry, à sua maneira, sentiu a mesma verdade. Para mim, “Deus” é uma definição demasiado estreita, demasiado “ocidental”, daquilo que é a força vital de uma sociedade. O Divino não é mais que um elemento, que um aspecto dessa força vital que eu chamaria antes, em toda a sua complexidade, MITO.

O que é próprio do Mito, tal como o entendo, é entrar na história criando-se a si mesmo, isto é, criando e organizando os seus próprios elementos. O Mito é essa força histórica que dá vida a uma comunidade, organiza-a, lança-a rumo ao seu destino. O Mito é, antes de tudo, um sentimento do mundo, mas um sentimento do mundo partilhado e, enquanto tal, é e cria objectivamente o laço social e, ao mesmo tempo, a norma comunitária. Estrutura a comunidade, dá-lhe o seu estilo de vida, e estrutura também as personalidades individuais. Este sentimento do mundo está, por outro lado, na origem de uma visão do mundo, portanto de expressões coerentes de pensamento. A história ensina-nos que cada povo, cada civilização, teve o seu Mito. Na perspectiva que se abre a partir do nosso presente social, temos a impressão que os Mitos estão sempre ligados a uma fase primordial, já superada, do devir humano.

Que o Mito seja, por assim dizer, a manifestação própria da infância da humanidade, é um lugar-comum da reflexão histórica moderna. É o ponto de vista, inevitável, de um pensamento que é o reflexo da velhice de uma civilização. Quando um Mito morre, quando o olhamos de fora, um Mito surge-nos como um conjunto de crenças mais ou menos fantasiosas, como uma colecção de narrativas imaginárias, estranhamente confusas, sempre contraditórias. Se tentamos, pela imaginação posterior, transportá-lo para a vida e a história, o Mito parece mover-se contra o sentido do tempo, o que leva Mircea Eliade a dizer que o Mito é nostalgia das origens. Mas sucede que não podemos estudar a vida num cadáver. Um Mito vivo reconhece-se pelo facto de ser harmonia, fusão e unidade dos contrários. Isso significa, muito simplesmente, que os homens que vivem no campo do Mito e que são organizados por ele, não sentem como contraditório tudo que parecerá contraditória aos que estão de fora. O Mito é força criativa viva e demonstra-o justamente por essa criação que infatigavelmente reduz e harmoniza os contrários. Tivemos um nome para esta virtude redutora das contradições, chamámos-lhe a fé. Racionalmente estamos aqui num círculo vicioso, outra forma de contradição: o Mito apenas é verdadeiro pela fé, mas a fé apenas vive pelo Mito – a fé não é criada senão pelo Mito.

Para quem está no Mito, sabemo-lo bem, esse círculo vicioso, essa contradição, não o é, porque o Mito está em todos os que dele são tributários e não cessa de se criar entre eles e por eles. Porque o Mito, com efeito, é criação incessante se si mesmo, ele é – sob todos os aspectos – auto-criação. Isso é verdade, desde logo, ao nível da linguagem, que é o nível no qual o humano se constitui enquanto ser social. Ilustres estruturalistas dizem-nos hoje que nós não falamos, que “somos falados”. Falam evidentemente deles mesmos e para eles mesmos, enquanto representantes privilegiados das sociedades actuais.

Têm razão; pois toda a língua, desligada do Mito – isto é, do sentimento do mundo – que a criou, apenas pode ser falada, no sentido em que aqueles que a utilizam já não falam verdadeiramente, antes são falados. Enquanto a língua está ainda vivamente ligada à sua raiz mítica está também ainda a criar-se e aqueles que a utilizam ainda falam e se falam, longe de toda a Torre de Babel.

A língua do Mito estrutura símbolos, ainda cria as coisas com as palavras. A partir do momento em que o Mito deixa de falar, e passa a ser, no máximo, falado, à harmonia do símbolo sucede a discórdia de duas ideias opostas, inconciliáveis. Isso significa também, tautologicamente, que à época do Mito sucede a época das ideologias, de ideologias saídas de uma mesma fonte e contudo sempre opostas, que se esforçam em vão para atingir a sua síntese impossível através de uma “ciência última” e de reencontrar dessa forma esse paraíso perdido que era assegurado pela harmonia do Mito.

Por ser harmonia dos contrários, o Mito é também o laço social por excelência e, desse ponto de vista, é legítimo falar, a seu respeito, de religião. Enquanto laço social, o Mito organiza a sociedade, assegura-lhe a coerência no espaço e através do tempo. O Mito é bem mais que uma Weltanschauung, é um sentimento do mundo e também, ao mesmo tempo – melhor: por isso mesmo – um sentimento de valor, uma métrica operante. Ele é a chave que explica, que sugere a acção e a norma da acção. Queria relembrar-vos aqui como um Mito pode organizar uma sociedade, ditar a conduta dos homens, no caso os helenos, confrontados frequentemente com um problema que lhes era desconhecido. Os helenos eram indo-europeus, o seu Mito era o Mito indo-europeu, que constituía a base sobre a qual estavam organizados em descendência patrilinear fundada sobre o que podemos chamar o valor heróico. Quando imigraram para a península grega viram-se confrontados com uma sociedade de descendência matrilinear. Por razões que foram talvez contingentes, não destruíram esta sociedade estrangeira.

Houve mistura de povos, de civilizações. Isto colocava um grave problema: o da oposição inconciliável entre duas concepções da sociedade e do direito. Na sociedade matriarcal, não são as mulheres que fazem a guerra e detêm o poder, são também os homens. Mas a legitimidade do poder vem da mulher, apenas se é rei porque se desposa a mulher que por direito de descendência matrilinear é herdeira do poder. Nestas sociedades o poder é assim sempre detido por homens que são escolhidos pelas mulheres. Ora, se podemos legitimamente pensar que os helenos, no início da mistura, adquiriram frequentemente o poder graças ao casamento, deviam ainda assim legitimá-lo do ponto de vista do seu Mito, do ponto de vista do direito patrilinear. Existe toda uma miríade de narrativas míticas que nos contam estes conflitos e as mil vias pelas quais os helenos sempre fizeram triunfar o seu sistema de valores. A aventura de Édipo, a Oresteia, os mitos de Teseu, de Jasão, de Belerofonte, mesmo o mito do rapto da Europa são penas exemplos entre tantos outros. E a supremacia do direito paternal é simbolizada, num Panteão que é tributário, é certo, de duas religiões míticas, pela presença de Atena, a deusa virgem, deusa guerreira mas também deusa do pensamento reflectido. Atena não tem mãe, ela proclama “apenas ser de seu pai”, Zeus, e é ela que está lá para absolver todos os Orestes, que para vingar o seu pai, foram constrangidos a assinar a sua mãe.

Esta ligação íntima entre Mito fundador, sociedade, sistema de valores, norma social, permite-nos falar da sociedade como de um organismo, de falar de sociedade orgânica. De resto, o termo sociedade é impróprio, como o demonstra o facto de sermos obrigados a adjectivá-lo. Falarei então, doravante, de comunidade, para significar sociedade orgânica, e ademais, oporei comunidade a sociedade, a toda a linha, um pouco da maneira como opomos um conceito-limite a outro.

Esta oposição entre comunidade e sociedade não é nova, foi estabelecida por sociólogos alemães e notoriamente por Ferdinand Tönnies. A intuição destes sociólogos era justa, mas sempre conduziu a conclusões erradas ou a teorias assaz confusas, porque a definição de comunidade em relação a sociedade nunca foi dada senão de maneira implícita.

Um Mito é sempre nostalgia das origens, como afirma Mircea Eliade, mas também é sempre visão cosmológica do futuro, anuncia um fim do mundo, que também pode ser por vezes começo de uma repetição do mundo e, num caso que conhecemos bem, regeneração do mundo.

O Mito, também o dizemos, não tem tempo. Não o tem porque ele é o tempo, o tempo da história. Assim, a comunidade que ele organiza é um organismo histórico que ocupa a todo o momento as três dimensões do tempo histórico. Uma comunidade é um organismo vivente, que está à vez no passado, no presente e no futuro. Uma comunidade tem uma consciência comunitária, que é, ao mesmo tempo, memória, acção e projecto. Uma tal comunidade, chamamo-la povo. Quando um povo já não tem a memória das suas origens e, como diz Richard Wagner, quando deixa de ser movida por uma paixão e um sofrimento comum, deixa de ser povo: torna-se massa. E a comunidade torna-se sociedade. Afirmei que comunidade e sociedade são conceitos-limite. Há sempre um pouco de massa nos melhores povos e há sempre uma réstia de povo na massa mais vil e mais rebaixada. Não há dúvida, e de resto enchem-nos com isso os ouvidos, de que vivemos na época das massas, de que vivemos em sociedades massificadas. O indivíduo, não importa qual, é divinizado em nome da igualdade. Todo o individuo social tem o mesmo valor, a personalidade nunca é tomada em consideração – e com causa, pois já não há sistema referencial de valor social. Numa comunidade, pelo contrário, o valor humano, que é sempre personalidade social, é medido pelo seu grau de adequação aos exemplos ideais propostos pelo Mito, e que cada membro da comunidade traz em si como uma espécie de superego.

Quando o mito se esteriliza, quando esses arquétipos ideais não são mais sentidos como tal, deixa de haver laço comunitário, de modo que, no limite, todo o indivíduo é considerado como ideal em si, pelo simples facto de ser um indivíduo. O que resta para manter unido aquilo que se tornou uma sociedade, é o laço sempre precário e contingente criado pela aliança dos interesses egoístas de grupos de indivíduos, de classes, de partidos, de capelas, de seitas. A verdadeira dimensão humana, que é dimensão histórica, está perdida; a sociedade de massa já não se preocupa, verdadeiramente, nem com o passado nem com o futuro, apenas vive no presente e para o presente. Assim, ela já não faz política, apenas faz economia, e economia da pior espécie, condicionando todos os reflexos sociais. Sintomaticamente, a preocupação do futuro, os horizontes do século XXI, não são invocados senão para justificar e avalizar o insucesso económico do presente. Perceberam bem, estamos em vias de falar das nossas sociedades ocidentais. Estas sociedades, no seio das quais nascemos e vivemos, saíram da grande ecúmena cristã, que havia sido formada e conformada pelo Mito judaico-cristão. Este Mito morreu há muito tempo, com o seu Deus. Mesmo a religião, tal como é veiculada pelo que resta das Igrejas, é ideologizada, tornou-se ideologia que se opõe a outras ideologias brotadas da mesma fonte mítica, entretanto exaurida. Ali, onde o Mito havia organizado, harmonizado, unido, e assim dado um significado e um conteúdo espiritual, isto é, humano, à vida dos homens, as ideologias opõem, desunem, desagregam. A ideologia rejeita o Mito como sendo irracional e pretende, ela, ser racional, ser racionalmente fundada. No fundo, de maneira implícita ou explícita, toda a ideologia pretende ser ciência e ciência do homem também. E lançada sobre a sua busca de racionalismo, toda a ideologia acaba por se transformar em anti-ideologia.

Com efeito, uma vez que uma ideologia é sempre acompanhada por uma ideologia contrária, esta constatação leva à procura de uma síntese, numa espécie de neutralidade ideológica aparente, sustentada pela convicção absurda de que em último caso tudo, mesmo o homem, é quantificável, que tudo pode ser calculado, que a vida de uma sociedade reduz-se a um problema de gestão administrativa.

As sociedades ocidentais, por exemplo, têm a ilusão de reencontrar a harmonia perdida, a fusão íntima dos contrários, graças às virtudes da tolerância: mas tornam-se assim esquizofrénicas e tornam esquizofrénicos os indivíduos mais sensíveis ao clima social. O indivíduo ocidental acaba sempre por ter uma má consciência, sobretudo ao nível do poder, porque é atormentado por duas exigências opostas, que não saberia satisfazer conjuntamente, que dizemos ser, para simplificar: a exigência de liberdade individual e a exigência de justiça social. A cisão que está no seio das sociedades está também sempre no coração dos indivíduos e isso leva por vezes a consequências cómicas, como no caso dos liberais avançados que queriam também ser ao mesmo tempo socialistas e no dos comunistas e socialistas que queriam também ser liberais. E note-se que se desconsideramos o Mito, rejeitado como sendo irracional, instintivamente pretendemos recuperar os seus benefícios sociais, propondo Anti-Mitos, com um ideal correspondente que seria o do anti-herói, ideal tão bem representado ao nível da consumação quotidiana de pseudo-valores sociais, pelo artista desleixado, cabeludo e se possível um pouco sujo.

As sociedades comunistas, também elas saídas do Mito judaico-cristão, tentaram uma outra solução. Escolheram a intolerância, em benefício de uma só ideologia, convocada a tomar a lugar do Mito. Mas porque a ideologia não é um Mito, e portanto não pode ser operante na alma dos indivíduos, estes nunca se conformam à norma ideológica. A consequência bem conhecida é que a sociedade comunista é uma sociedade restritiva.

Para ser exacto: há na sociedade comunista, a todos os níveis, uma obrigação de restrição, de forma que o depurador acaba sempre, ele próprio, depurado, enquanto na sociedade liberal-democrática chegamos a uma obrigação de tolerância, da qual mesmo os delinquentes acabam por beneficiar. Além do mais, também as sociedades comunistas, apesar de certas aparências “anti-económicas”, apenas vivem no presente. A demonstração é-nos oferecida, de maneira periódica mas marcante, pela condenação de todo o “presente encerrado”, assumindo o aspecto de uma celebração ritual. O presente é sempre divinizado – de Lenine a Estaline, até Mao – para ser infalivelmente condenado e desprezado a partir do momento em que cede lugar a outro presente. Assim, tudo somado, podemos dizer que a equação social da sociedade comunista tem como resultado o mesmo valor da equação democrático-liberal. Microscopicamente, ao nível dos indivíduos, a sociedade liberal é mais atraente, daí os fenómenos de dissidência no seio dos regimes comunistas, as fugas, e por reacção o muro de Berlim. Mas note-se também que ao nível macroscópico, da massa enquanto tal, a fuga produz-se sobretudo em sentido inverso e que portanto, no pós-guerra, as sociedades socialistas multiplicaram-se.

O que fazer então? O que esperar? Permitam-me regressar uma vez mais a Nietzsche. Nietzsche foi dos primeiros a dizer-nos que a civilização ocidental tinha entrado em agonia, uma agonia de duração imprevisível, e que iria morrer. As nações europeias estão condenadas ou a sair da história à maneira dos Bororos, tão caros ao senhor Levy-Strauss, ou a morrerem historicamente e verem dissolvida a sua substância biológica em nações e povos que estão para vir. No fundo, todos na Europa estão mais ou menos conscientes e é por causa disso que há, desde há algum tempo, um discurso sobre a Europa.

Mas essa Europa é concebida como um prolongamento das actuais realidades sociais, como o último meio para salvar o que está em agonia, o que está condenado à morte, ou seja, a civilização judaico-cristã. Mas se uma Europa vir a luz do dia num futuro mais ou menos distante, ela não terá sentido, historicamente, se não for tal como Friedrich Nietzsche a auspiciava, conduzida e organizada por um Mito novo, fundamentalmente estranho a tudo o que existe hoje. Acreditamos que este novo Mito já existe, que já apareceu. Disso há sinais e sinais por detrás dos sinais. Nos seus inícios um Mito é sempre extremamente frágil, a sua vida depende sempre de alguns punhados de homens que já o falam. Num estudo sobre aquilo que chamo a música europeia, de Johann Sebastian Bach a Richard Wagner, tentei mostrar como este Novo Mito e a nova consciência histórica que o transporta nasceram, e mostrar também por que via este Novo Mito se dirigiu ao nosso presente. Se ele vive ainda, não pode sobreviver senão em virtude da total fidelidade ao seu jovem passado daqueles que o transportam. É certo, ele ainda não disse tudo, talvez não tenha feito mais que balbuciar. O mito, quando vivente, está sempre em vias de se expressar.

25/01/2011

A Death-Bed

por Rudyard Kipling

'This is the State above the Law.
   The State exists for the State alone.'
[This is a gland at the back of the jaw,
   And an answering lump by the collarbone.]

 
Some die shouting in gas or fire;
   Some die silent, by shell and shot.
Some die desperate, caught on the wire;
   Some die suddenly. This will not.

 
'Regis suprema voluntas lex'
   [It will follow the regular course of --- throats.]
Some die pinned by the broken decks,
   Some die sobbing between the boats.

 
Some die eloquent, pressed to death
   By the sliding trench as their friends can hear.
Some die wholly in half a breath,
   Some --- give trouble for half a year.

 
'There is neither Evil nor Good in life
   Except as the needs of the State ordain.'
[Since it is rather too late for the knife,
   All we can do is mask the pain.]

 
Some die saintly in faith and hope ---
   One died thus in a prison-yard ---
Some die broken by rape or the rope;
   Some die easily. This dies hard.

 
'I will dash to pieces who bar my way.
   Woe to the traitor! Woe to the weak!'
[Let him write what he wishes to say.
   It tires him out if he tries to speak.]

 
Some die quietly. Some abound
   In loud self-pity. Others spread
Bad morale through the cots around...
   This is a type that is better dead.

 
'The war was forced on me by my foes.
   All that I sought was the right to live.'
[Don't be afraid of a triple dose;
   The pain will neutralize half we give.

 
Here are the needles. See that he dies
   While the effects of the drug endure...
What is the question he asks with his eyes? ---
   Yes, All-Highest, to God, be sure.]

Simplicidade Voluntária

"O consumo excessivo tem efeitos sobre as nossas próprias vidas. Para consumir tal como fazemos precisamos de dinheiro; logo, em consequência, a maioria das pessoas trabalha desalmadamente. No Canadá, por exemplo, cerca de 20% da população ativa trabalha mais de 50 horas por semana. Esgotamo-nos a trabalhar, dando o melhor do nosso tempo e das nossas vidas para o trabalho; enquanto isso, outras vertentes da nossa existência ( a família, a vida amorosa, a participação cívica e a vida comunitária, a saúde,…) sofrem com essa quase exclusividade que o trabalho exige. Acaba-se de chegar a um paradoxo: quanto mais satisfeitos formos na vida material, menos felizes nos sentimos. E há cada vez mais pessoas que acham que isso não tem sentido, e que há que fazer algo para mudar esta situação. Mas o quê? Os governos e os partidos não dão respostas alternativas, empenham-se antes em seguir a mesma direção tal como têm feito até agora. Ora há que ultrapassar este bloqueio E é isso justamente o que propõe a Simplicidade Voluntária: empreender as mudanças necessárias nas nossas vidas.
Não confundir a Simplicidade Voluntária com a pobreza; esta é imposta por força de circunstâncias penosas. Mas quando se opta voluntariamente por viver sobriamente, tudo funciona de modo diferente. É que não nos sentimos frustrados porque nos privamos de um bem, mas antes sentimos que vale a pena substitui-lo por algo que tenha mais sentido. Este desprendimento alarga o espaço para a nossa consciência operar de outra forma: trata-se de um estado de espírito que nos convida a apreciar, a saborear e procurar o elemento qualitativo da vida. No fundo, renunciamos aos objetos que estorvam, travam e impedem irmos até ao fim das nossas possibilidades. "Não é a riqueza, mas o apego à riqueza que é um obstáculo à emancipação; e não é o prazer da busca por coisas agradáveis que está em causa, mas sim o desejo ardente de as adquirir", escreve Schumcher (1911-1997), autor do livro Small is Beautiful.
A Simplicidade Voluntária leva-nos ao não-uso e à não-posse de algo, implica uma escolha: não comprar certo objeto ou não seguir determinado procedimento implica uma escolha por um outro motivo de satisfação, nem que seja ser fiel aos nossos princípios ou aos nossos compromissos sociais.
Escolher não utilizar certo bem ou serviço, não seguir a moda, consumir de outra maneira, tudo isso releva de atos de consciência e de lucidez, e não de fatalidade. Na verdade, quem faça voluntariamente este tipo de opções sabe que podia não o fazer, e acaba por ser o próprio a dominar a situação em vez de ser um ser dominado por esta. Claro está que não se trata de decisões irrevogáveis que arrastam consigo um radicalismo sem concessões, nem sequer de uma regra de aço que dificilmente poderíamos desvincularmo-nos. A Simplicidade Voluntária é uma opção que é tomada mediante pequenos passos, uma via que se segue por decisão própria e porque nos sentimos satisfeitos por seguir."
(Serge Mongeau)

21/01/2011

Julius Evola - O que é Tradição?

por Julius Evola


Há duas razões pelo qual hoje é oportuno precisar o conceito de Tradição em sua acepção particular, pelo qual se converteu muito corrente usar tal termo com letra maiúscula.

A primeira razão é o interesse crescente que a ideia de Tradição como ponto de referência suscitou e continua suscitando nos ambientes de cultura e contestação de direita, em especial entre os pertencentes à nova geração.

A segunda razão se refere ao facto que, ao mesmo tempo, e se pode dizer que justamente por haver se constatado tal interesse, se formularam intentos de sustentar uma interpretação caduca e tíbia do conceito de Tradição, quase para suplantar o originário e integral e substituí-lo com um conteúdo menos comprometido e mais acomodado, de modo tal de permitir a continuidade das routines de uma mentalidade em grande medida conformista. Se poderia falar, a tal respeito, usando um termo francês, de uma escamotage.

E é assim como aconteceu, por exemplo, o distanciamento de certas pessoas, que atraídas em um primeiro momento pelo conceito de Tradição, terminarão aderindo a um “tradicionalismo católico”. Acerca do sentido interno de tal distanciamento são bastante significativas as palavras expressadas por um escritor expoente desta direcção, em uma entrevista concedida por ele a Gianfranco de Turris. O escritor em questão reconheceu que da mesma maneira que outros de sua geração e das sucessivas, em um primeiro momento se interessou pela ideia tradicional, especialmente pelas suas aplicações políticas, mas logo distanciou-se sentindo que as coisas aconteciam como em uma “sã cura de helioterapia”, havia que “retirar-se do sol antes de ser queimado”.

Evidentemente este não é senão um modo elegante para dizer que não se suportava a força de certas ideias formuladas sem atenuações, daí então o distanciamento e a adesão ao “tradicionalismo católico”. Um caso importante é o constituído por um livro, editado por Bompinani que se intitula: “O que é a Tradição?” 

Aparte do facto de que não se trata de uma exposição sistemática, senão de um grupo de ensaios que muitas vezes tem pouco que ver com o tema, o autor dá novamente uma versão tíbia da Tradição, com visíveis preocupações de carácter religioso e moralizante, o alarde expressado através de citações múltiplas de uma cultura variada vale mais para confundir que para esclarecer, dada a falta de um rigoroso quadro sistemático. É bastante visível que este livro foi justamente escrito em relação ao mencionado crescente interesse pela ideia de Tradição. Há um aspecto que merece ser assinalado, o autor do livro em questão, que pretende dizer o que é ou que seria a Tradição, por certo não sonhou jamais de aproximar-se a tal ordem de ideias até não faz muito tempo quando andava junto com Moravia e com outros expoentes da intelectualidade esquerdista italiana. Ele ignora que o conceito integral de Tradição havia sido já formulado nos anos 20 por René Guénon e seu grupo, e depois em nossa obra Revolta contra o Mundo Moderno, editada em 1934 na Itália e em 1935 na Alemanha, a primeira parte desta obra se intitula justamente “O mundo da Tradição”. O autor aludido cita apenas um par de vezes a contribuição da corrente guenoniana, entretanto ignora sistematicamente a nossa. Lamentavelmente ele dispõe de um círculo bastante vasto de leitores, pelo qual sua tíbia apresentação do que seria a Tradição resulta sumamente perniciosa.

O autor em questão se perde em uma discussão quase teológico-escolástica quando afirma que a “tradição por excelência é a transmissão do conhecimento do objecto óptimo e máximo, o conhecimento do ser perfeitíssimo”. 

Isto poderá valer no campo contemplativo-religioso, e só com referência ao mesmo se pode dizer que a Tradição “se concreta em um conjunto de meios: sacramentos, símbolos, ritos, definições discursivas cujo fim é o de desenvolver no homem aquela parte, faculdade, potência ou vocação, que lhe coloca em contacto com o máximo do ser que lhe seja consentido, colocando-o por cima de suas constituições corpórea ou psíquica, o espírito ou intuição intelectual”. Se nestes termos é reconhecida a definição de uma hierarquia “entre os seres relativos e históricos, fundada em seu grau de distanciamento a respeito da ideia do puro ser”, é evidente que aqui se fixa em esfera abstracta, e isso se confirma pelo fato que o autor em tela alimenta uma espécie de rechaço pelas formas de realidade política, por tanto também por tudo o que é Estado, hierarquia política e imperium, em conformidade com certas concepções espiritualistas cristãs (co mo aparece claro também no “tradicionalista” Leopold Ziegler). É um fato que a Tradição se manifesta em sua plena potência formativa e animadora justamente no domínio da organização político-social, para conferir à mesma um significado e uma legitimação superior. Como um exemplo importante que persistiu até à época moderna se pode indicar o Japão.

Podem-se distinguir dois aspectos da Tradição, um referido à metafísica da história e a uma morfologia das civilizações, o segundo a uma interpretação “esotérica”, ou seja, de acordo com a dimensão em profundidade do diferente material tradicional.

Sabe-se que o termo tradição vem do latim tradere, ou seja, transmitir. Assim o mesmo tem um conteúdo indeterminado, pelo qual se observa seu uso nos contextos mais variados e profanos. 

“Tradicionalismo” pode significar conformismo, e acerca disso Cherterton disse que a tradição é a “democracia dos mortos”, assim como na democracia a maioria se conforma à opinião de uma maioria de contemporâneos, do mesmo modo acontece no tradicionalismo conformista o qual segue a da maioria daqueles que viveram antes de nós. Quiçá poucos saibam que o termo Kabbala tem literalmente o sentido de tradição, mas aqui é em relação com a transmissão de um conhecimento metafísico e da interpretação “esotérica” da correspondente tradição, pelo qual nos aproximamos acerca daquilo do que é a Tradição.

No que se refere ao domínio histórico, a Tradição vincula-se àquilo que poderia denominar-se como uma transcendência imanente. Trata-se de uma ideia recorrente de que uma força do alto actuou em uma ou outra área ou em um ou outro ciclo histórico, de modo que valores espirituais e supraindividuais constituíram o eixo e o supremo ponto de referência para a organização geral, a formação e a justificação de toda realidade e actividade subordinada e simplesmente humana. Esta força do alto é uma presença que se transmite, e esta transmissão de dita força, que se encontra por cima das meras contingências históricas, constituía justamente a Tradição. Normalmente a Tradição tomada neste sentido é levada por quem se encontra no vértice das correspondentes hierarquias, ou por uma elite, e em suas formas mais originárias e completas não há um separação entre o poder temporal e autoridade espiritual, sendo a segunda, em matéria de princípios, o fundamento, a legitimação e o crisma da primeira. Como exemplo característico se pode citar a concepção extremo-oriental do soberano como “terceira força entre o céu e a terra”, concepção que se reencontra na realeza nipónica cuja tradição persiste até hoje. 

No aspecto aqui indicado de uma “transcendência imanente”, o tradere, a transmissão se refere não a algo abstracto e contemplativo, mas a uma energia que por ser invisível não é menos real. Aos chefes e a uma elite cabe a tarefa de transmissão dentro de determinados marcos institucionais, variáveis, mas homologáveis em sua finalidade. É bastante evidente que a mesma está mais garantida se pode ser paralela a uma continuidade de estirpe ou sangue tutelada por normas rigorosas. De facto, quando a cadeia de transmissão se interrompe, é sumamente difícil restabelecê-la. Nesta perspectiva a Tradição é a antítese de tudo o que é democracia, igualitarismo, primazia da sociedade sobre o Estado, poder que vem de baixo e coisas similares.

Para o segundo aspecto da Tradição, é necessário remeter-se ao plano doutrinário, e aqui o ponto de referência e o que pode denominar-se a unidade transcendente e oculta das diferenças tradições. Pode tratar-se de tradições de tipo religioso, mas também de outro género, tais como sapiênciais ou de mistérios. Aquilo que foi chamado de “método tradicional” consiste em descobrir uma unidade ou correspondência essencial de símbolos, de formas, de mitos, de dogmas, de disciplinas, mais além das expressões múltiplas que os correspondentes conteúdos de significado podem assumir nas diferentes tradições históricas. Tal unidade pode resultar a partir de uma penetração em profundidade do diferente material tradicional: indagação — isto deve ser destacado — que deve ser distinta das investigações da denominada ciência comparada das religiões universais, a qual se atém à superfície e tem um carácter empírico e não metafísico. A faculdade requerida, é aquela que se pode denominar como “intuição intelectual ou espiritual”, intuitio intellectualis. Só a possessão desta rara capacidade intelectual pode dar o sentido da medida e prevenir o que se poderia denominar a “superstição da Tradição”. 

Com efeito, há pessoas que se entregam à fantasia e que descobrem em tudo conteúdos tradicionais, ainda quando os mesmos são imaginários ou se trata de contextos espúrios e primitivos. É o análogo do chamado “delírio interpretativo” dos freudianos, os quais querem ver em tudo a acção dos complexos sexuais.

A origem das formas tradicionais é um problema complexo. No que diz respeito ao primeiro dos aspectos aqui aludido, ou seja, o aspecto histórico é muitas vezes formulada a ideia de uma tradição primordial, da qual derivaram as sucessivas e particulares tradições. Mas se permanecemos no plano histórico, este conceito deve ser articulado. A hipótese de uma tradição primordial hiperbórea e nórdico-ocidental no que se refere ao grupo de civilizações tradicionais da área indo-europeia, não se pode fazer demasiado uso no que concerne, por exemplo, às formas tradicionais extremo-orientais, as quais devem remeter-se a um diferente tronco de origem. Mas aqui pode impor-se o ponto de vista a seguir para o segundo aspecto do problema, que é a explicação de concordâncias e de correspondências essenciais de conteúdos tradicionais. É simplista e em parte supersticiosa a ideia de personagens “iniciados” e similares, que nos vários casos operaram conscientemente na origem de toda tradição. Ainda se a ideia quiçá não pode ser aceita por todos sem dificuldade, igualmente muitas vezes se deve pensar em influências por assim dizer, que intervêm na história e nos desenvolvimentos das tradições por detrás dos bastidores, sem que os representantes das mesmas se dêem conta.

Há casos também de um “voltar a brotar” de uma única influência com notáveis distâncias de espaço e tempo, portanto, sem uma transmissão materialmente relevante, quase como um redemoinho que desaparece em um determinado ponto da corrente de um rio para voltar a formar-se em outro ponto. 

É o que se deve pensar em muitos casos de correspondências tradicionais, em elementos particulares, mas também nas estruturas de conjunto de determinadas civilizações, as linhas de vinculação com a superfície são inexistentes, algo imponderável entra em jogo servindo-se ao máximo de elementos de sustentação. Por exemplo, a génese da antiga romanidade, em tudo aquilo onde esta reproduz formas variadas da tradição primordial indo-europeia, pode ser visto sob este aspecto. Enfim, se deve considerar o caso de que a influência em questão actue sucessivamente, ou seja, no desenvolvimento posterior como tradição de uma matéria originária, transformando-a, enriquecendo-a e também a rectificando. Em certa medida, isto parece ter acontecido na formação da tradição católica a partir da matéria proporcionada pelo cristianismo primitivo.

A introdução da ideia de tradição vale para libertar toda tradição particular de seu isolamento, remetendo o princípio gerador da mesma e de seus conteúdos essenciais a um contexto mais vasto, em termos que são de uma efectiva integração. Para desdenhá-la se encontram tão só eventuais pretensões de exclusivismo sectário( e de privilégio. Reconhecemos que isto pode molestar e criar certa desorientação em quem se sentia muito seguro em uma determinada área restringida. Entretanto, para outros, a concepção tradicional abrirá horizontes, infundindo uma superior segurança, com a condição de não confundir o jogo, como no caso daqueles “tradicionalistas” que colocaram a mão na Tradição só por uma espécie de condimento para a própria tradição particular reafirmada em todas suas limitações e em todo seu exclusivismo.

A Essência do Heroísmo

"O curso da vida e do labor me lembram de uma longa jornada que eu fiz de trem uma vez. Subitamente, houve um problema na frente, e os passageiros reagiram a esse evento de modos variados. Alguns deles sentaram parados, resignadamente, e não proferiram palavra alguma. Outros, resolveram dormir. Mas alguns de nós saltamos daquele trem e corremos para a frente, para limpar os trilhos de todas as obstruções."
(Michael Collins)

19/01/2011

Por uma nova Teoria Revolucionária

"Antes mesmo de pensar em definir qualquer coisa construtiva, essa crítica das falhas dos 'nacionais' é indispensável. Alguns, por falta de maturidade política, não serão capazes de compreender isso. Aqueles que aprenderam as lições a partir da própria experiência, por outro lado, reconhecerão sua necessidade. Revolução não é o ato de violência que às vezes acompanha a tomada do poder. Nem é uma simples mudança de instituições ou de um clã político. Revolução é menos sobre a tomada de poder do que seu uso para a construção de uma nova sociedade. Essa imensa tarefa não pode ser visualizada em meio ao pensamento e ação desordenadas. Ela demanda um vasto aparato de preparação e formação. O combate 'nacional' está preso nas velhas rotinas de meio século. Antes de tudo mais, uma nova teoria revolucionária deve ser desenvolvida."
(Dominique Venner)

18/01/2011

Não-Violência

"É por isso que é útil recordar que a "não violência" so é digna e portadora de sentido se existir realmente a possibilidade dessa violência, ou seja, se for uma verdadeira escolha e não a simples consequência de uma fraqueza, de uma resignação ou de uma cobardia. Resumidamente, é preciso ter capacidade de desferir golpes para que seja respeitável o facto de os reter. Em política, como a história demonstrou repetidamente, a violência não deve evidentemente ser um fim, contudo continua frequentemente a ser um meio, às vezes uma justa e imperiosa necessidade e deve em todo o caso permanecer uma possibilidade."
(Pierre Chatov)

17/01/2011

Vitória ou Morte

"Como! Chorais a perda de nossos amigos mortos nos combates? Seu nobre sangue é rocio que banha ardente solo, e Roma surge fertilizada do fecundante batismo. Quantos heróis entre nossos pais, não sucumbiram em estéreis guerras! Porém, outros, afortunados em vossos esforços, lograsteis ser livres, grandes, fortes, vitoriosos; não me deis a pensar que sois capazes de maldizer um dia de gloria. Afugente-se a  tristeza, e ocupai vossos postos junto a mim. Deus, que protege minha Raça, e lê em meu coração, guiará meu braço vencedor."
(Richard Wagner, Rienzi)

16/01/2011

A Civilização Americana

por Julius Evola

O recentemente falecido John Dewey foi declarado pela imprensa norte-americana a figura mais representativa da civilização americana. Isto é bastante correto. Suas teorias são representativas do conceito de homem e da vida que tem o americanismo e sua “democracia”.

A essência destas teorias é esta: todos podem converter-se no que querem, dentro dos limites que marquem os meios tecnológicos disponíveis. Igualmente, uma pessoa não é o que dita sua verdadeira natureza, porque não há diferenças reais entre as pessoas, só diferenças em qualificações. Segundo esta teoria todos podem ser como outra pessoa se sabem como formar a si mesmos.

Este é o ideal do “sel-made-man”; em uma sociedade que perdeu todo sentido da tradição o ideal de engrandecimento individual se estende a todos os aspectos da existência humana, reforçando a doutrina igualitária da democracia pura. Se aceitarmos tais idéias, então toda a diversidade natural tem que ser abandonada. Assim, cada pessoa pode presumir de possuir o mesmo potencial que outra e os termos superior e inferior perdem seu significado; também toda noção de distância e respeito; já que todos os estilos de vida estão abertos a todos. Frente a todas as concepções orgânicas da vida, os americanos opõem uma concepção mecanicista. Em uma sociedade que “começou desde baixo”, tudo tem a característica de ser fabricado. Na sociedade americana as aparências são máscaras e não rostos. Ao mesmo tempo, os proponentes de “American way of life” são hostis ao ideal da personalidade.

A “abertura mental” dos americanos que às vezes é citada a seu favor, é simplesmente a outra face de seu vazio interior. Igual sucede com seu individualismo. O individualismo e a personalidade não são a mesma coisa: o primeiro pertence ao mundo sem forma da quantidade, o outro ao mundo da qualidade, da diferença e hierarquia. 

Os americanos são a refutação vivente do axioma cartesiano “penso, logo existo”: os americanos não pensam, entretanto, existem. A mentalidade americana, pueril e primitiva, não tem uma forma característica e assim esta aberta a todos os tipos de estandardização.

Em uma civilização superior, como por exemplo, aquela dos indo-ários, o ser que carece de uma forma característica ou casta (no sentido original da palavra), é um pária. Neste aspecto, a América é uma sociedade de párias. Houve um papel para os párias: submeter-se a seres que tem forma e leis próprias definidas. Entretanto, os párias modernos se emanciparam e desejam exercer seu domínio sobre todo o mundo.

Há uma idéia popular que sustenta que os Estados Unidos é uma nação jovem com um grande futuro pela frente. Assim, os defeitos americanos são descritos como “erros de juventude” ou “dores do crescimento”. Não é difícil observar como o mito do progresso teve uma grande influência em tal juízo de valor. Segundo a idéia de que tudo que é novo é bom, a América teria um papel privilegiado entre as nações civilizadas. Os Estados Unidos interviu na primeira guerra mundial como o defensor do “mundo civilizado” por excelência. A nação mais “evoluída” não só se viu com o direito, se não também com o dever de intervir nos destinos dos outros povos. Porém, a estrutura da histórica é cíclica e não evolutiva. A maioria das civilizações recentes não são necessariamente “superiores”. São na verdade senis e decadentes. Há uma correspondência entre a etapa mais avançada de um ciclo histórico e a mais primitiva. A América é a etapa final da trajetória histórica da Europa moderna. René Guénon chamou a América de “o último Ocidente”, no sentido de que os Estados Unidos representam a reductio ad absurdum dos aspectos mais negativos e senis da Civilização ocidental. O que na Europa existe de forma diluída é magnificado e concentrado nos Estados Unidos revelando-se como os sintomas da desintegração e de regressão cultural e humana. 

A mentalidade americana só pode ser interpretada como um exemplo de regressão, que se manifesta em sua incapacidade e incompreensão de toda sensibilidade superior. A mente americana tem horizontes limitados, reduzidos a tudo que é imediato e simplista, com a conseqüência inevitável de que tudo o que existe é banalizado, reduzido e nivelado até que perca todo seu caráter espiritual. A vida em sentido americano é inteiramente mecânica. O sentido do “eu” na América é reduzido inteiramente ao plano físico-material da existência. O americano típico, não tem dilemas nem complicações espirituais: é um conformista natural que se integra facilmente ao resto do sistema sem rosto.

A primitiva mentalidade americana só pode ser comparada a uma mentalidade infantil. A mentalidade americana é característica de toda sociedade regressiva.

A moralidade americana

É fictício o tão admirado sex appeal da mulher americana que é mostrado nos filmes e revistas. Uma recente investigação médica nos Estados Unidos, mostrou que 75% das jovens americanas carecem de uma forte sensibilidade sexual e que em vez de satisfazer sua libido preferem buscar o prazer narcisista no exibicionismo, na vaidade do culto do corpo e na saúde no sentido estéril. As moças americanas não têm “problemas com o sexo”, são fáceis para o homem que vê o processo sexual como algo isolado e por conseqüência pouco interessante. Assim, por exemplo, logo de ser convidada a ver um filme ou a dançar, é positivo, segundo os costumes americanos, que uma moça se deixe beijar sem que tal ato signifique nada no plano sentimental. As mulheres americanas são frias, frígidas e materialistas. O homem que “tem algo” com uma moça americana obriga-se materialmente, financeiramente com ela. A mulher lhe concedeu um favor material. No divórcio a lei americana favorece majoritariamente a mulher. As mulheres americanas pedem o divorcio quando conseguem um candidato melhor. Na América, o matrimônio não é mais que uma relação monetária, uma forma de prostituição legal. 

 “Nossos” meios de comunicação americanos

A americanização da Europa se estende e se faz cada vez mais evidente. Na Itália, é um fenômeno que se desenvolveu rapidamente nestes anos pós-guerra e que é considerado pela maioria das pessoas, se não de forma entusiasta, ao menos como algo natural. Faz algum tempo que escrevi que dos dois grandes perigos que confronta a Europa - o americanismo e o comunismo - o primeiro era mais negativo. O comunismo só é um perigo pelas conseqüências repressivas que acompanhariam a imposição da ditadura do proletariado. Enquanto que a americanização se impõe por meio de infiltração gradual, que modifica as mentalidades e os costumes, e que parece inofensivo, mas realiza uma perversão e degradação contra o qual é impossível lutar diretamente.

Os italianos são débeis para começar uma luta como esta. Ao esquecer sua própria herança cultural, rapidamente vêem os Estados Unidos como uma espécie de guia no mundo. Qualquer um que deseja ser moderno tem que medir-se segundo o critério americano de vida. É triste ver uma nação européia desvalorizar-se a si mesmo. A atual veneração da América não tem nada que ver com o interesse cultural a respeito como outro povo vive. Ao contrário, o servilismo até os Estados Unidos leva implícita a idéia que não há outra forma de vida aceitável que não a americana.

Nossos programas de rádio se americanizaram. Sem nenhum critério do que é superior ou inferior, só seguindo os temas da moda do momento e do que é considerado “aceitável” - ou seja, aceitável para o segmento mais americanizado do público, o qual também é o mais degenerado. O resto é simplesmente arrastado pela onda. O estilo de apresentação de rádio também se americanizou. “Quem depois de escutar um programa de rádio americano, não pode se não considerar que a única forma de escapar ao comunismo é americanizando-se?”. Essas não são palavras de um observador externo se não de um sociólogo norte-americano, James Burnham, professor na Universidade de Princeton. 

Tal juízo de parte de um americano deveria envergonhar os radialistas italianos.

Uma das conseqüências da “democracia” é a intoxicação de grande maioria da população, que não é capaz de discriminar e que quando não esta guiada por um poder e um ideal, é rapidamente perde todo sentido de identidade.

A ordem industrial na América

Werner Sombart resumiu em seu estudo clássico sobre o capitalismo, o significado da última etapa do capitalismo no adágio “Fiat producto et pereat homo” ("Produza-se e que pereça o homem"). Assim, o capitalismo é um sistema em que o valor do homem é estimado segundo a quantidade de mercadoria que produza ou invente. As doutrinas socialistas nasceram como reação a inumanidade deste sistema.

Uma nova fase se inicia nos Estados Unidos, onde há um incremento do interesse nas chamadas relações laborais. Os empresários e os patrões terminaram por reconhecer a importância do “fator humano” em uma economia produtiva, sendo um erro ignorar o indivíduo implicado na indústria: seus motivos, seus sentimentos, sua vida no trabalho. Assim, pois, se desenvolveu toda uma escola que estuda as relações humanas na indústria, baseada no condutismo. Estudos como Human Relations in Industry por B. Gardner e G. Moore proporcionam uma análise esmiuçada do comportamento dos empregados e de suas motivações com o objetivo preciso de definir os melhores meios de fazer frente a todos os fatores que podem obstaculizar a maximização da produção. As investigações sociológicas chegam até a analisar o ambiente social entre os empregados. Esta classe de estudo tem um objetivo prático: a manutenção da satisfação psicológica do empregado é tão importante como a física. Nos casos onde um trabalhador está vinculado a um trabalho monótono que não exige uma grande concentração, os estudos chamaram a atenção sobre o “perigo” que seu espírito possa extraviar-se em uma direção que pode finalmente refletir-se negativamente em sua atitude em relação ao trabalho. 

As vidas privadas dos empregados não são esquecidas, por isso o aumento da denominada assessoria pessoal. Chamam-se especialistas para dissipar a ansiedade, as perturbações psicológicas e os “complexos” de não adaptação, até o extremo de se dar conselhos relativos a os problemas mais pessoais. Utiliza-se muito a técnica psicanalítica para fazer “falar livremente” o indivíduo e por em destaque e relevo os resultado obtidos por esta “catarsis”.

Nada disso, busca a melhora espiritual dos seres humanos ou a solução dos problemas verdadeiramente humanos, tal como os compreenderia um europeu nesta “idade da economia”. Do outro lado da cortina de ferro, se trata o homem como uma besta de carga e sua obediência é garantida pelo terror e pela fome. Nos Estados Unidos se vê o homem também como um fator de trabalho e consumo, cada fator de sua existência tem a mesma finalidade. No “país da liberdade”, por todos os meios de comunicação, se diz ao homem que alcançou um grau de felicidade inigualada. Convida-se a esquecer quem é, de onde veio, e simplesmente gozar o presente.

A “democracia” americana na indústria

Há uma contradição significativa e crescente nos Estados Unidos entre os valores da ideologia política dominante e as estruturas efetivas da nação. Há muitos estudos consagrados sobre “a morfologia do trabalho”. Os estudos corroboram a impressão de que a empresa americana está muito longe de ser uma organização que corresponda ao ideal democrático assinalado pela propaganda americana. As empresas americanas têm uma estrutura “piramidal”. Constituem o cume de uma hierarquia articulada. As grandes empresas americanas são dirigidas da mesma maneira que os Ministérios governamentais e são organizadas segundo linhas similares. Têm corpos de coordenação e controle que separam os dirigentes da empresa da massa dos empregados. Com o passar dos anos, a “elite gerencial” (Burnham) se faz cada vez mais autocrática, sintonizando-se bem com a política externa americana. 

É o fim de outra ilusão americana. América: “o país onde todo mundo tem sua oportunidade”, onde todas as possibilidades existem para todo aquele que saiba aproveitá-las, um país onde cada um pode elevar-se da miséria a riqueza. No princípio havia uma “fronteira aberta” que poderia ser conquistada por todos. Aquela foi fechada e a próxima “fronteira aberta” era o céu, o potencial ilimitado da indústria e do comércio. Como Gardner, Moore e muitos outros mostraram, também alcançaram seus limites, e as oportunidades vão reduzindo-se. Pela especialização do trabalho, sempre crescente no processo produtivo , e da insistência na valoração das “qualificações”, é evidente para os americanos que seus filhos não chegaram mais longe que eles. Assim é que a democracia política dos Estados Unidos, a força e poder do país, ou seja, a indústria e a economia, são cada vez mais manifestamente anti-democráticos. O problema é então: a realidade deve adaptar-se a ideologia, ou vice-versa? Até uma data recente, se demandava-se a solução antiga, ou seja, o retorno a “verdadeira América” igualitária da empresa sem obstáculos e do indivíduo emancipado de todo o controle central. Entretanto, há também os que preferiram eliminar a democracia para poder adaptar a ideologia política a realidade comercial. Retirando-se a máscara da “democracia” americana,se vê claramente até que ponto a “democracia” na América(e em outras parte) é somente o instrumento de uma oligarquia que utiliza um método de “ação indireta”, garantindo-se a possibilidade de abusar e enganar a grande maioria daqueles que em outras circunstâncias aceitariam um sistema hierárquico porque é simplesmente o único que funciona. Este dilema da “democracia” nos Estados Unidos poderia um dia dar lugar a um interessante evolução.

A Tirania dos Moralistas

"De todas as tiranias, uma tirania sinceramente exercida para o bem de suas vítimas pode ser a mais opressiva. Pode ser melhor viver sob barões ladrões do que sob moralistas onipotentes. A crueldade do barão ladrão pode às vezes adormecer, sua cupidez pode em algum ponto ser saciada; mas aqueles que nos atormentam para nosso próprio bem nos atormentarão sem cessar, pois eles o fazem com a aprovação de sua própria consciência."
(C.S.Lewis)

15/01/2011

O verdadeiro inimigo

"Uma vez vencido o marxismo, as maiores dificuldades se apresentam ao fascista pelo lado liberal, demo-burguês, onde se apinham, não essas pobres nostalgias da liberdade perdida, como pretendem os plumíferos chorões da democracia, mas sim a frente oligárquica capitalista; quer dizer, os donos dos grandes jornais, os diretores dos grandes Bancos, todos os magnatas, enfim, que oferece em suas diversas formas o grande capitalismo moderno. Geralmente, todos eles se mostram partidários da democracia libera, aprovam um regime de liberdade política. Pois são, em efeito, os representantes feudalistas, que equivalem em nossa época ao regime feudal dos grandes senhores antigos, mostrando-se hoje inimigos da prepotência e da pujança do Estado, como seus antecessores o eram ontem da soberania dos monarcas. O fascismo sabe que a democracia parlamentar é o regime ideal para que predominem, do modo mais descarado, as piores formas de feudalismo moderno."
(Ramiro Ledesma Ramos)

14/01/2011

A Escolha do Trágico

por Ramón Bau

O desenvolvimento da Pessoa

Se um “ser humano” procura apenas o prazer e a felicidade na sua vida, se o objectivo é viver placidamente logrando satisfazer ao máximo as necessidades físicas e psicológicas, nesse caso de pouco lhe pode servir continuar a ler estas linhas. A visão “utilista” do homem, visto como “máquina económica” (inclusive considerando a palavra “económica” não só no sentido monetário mas no sentido de satisfação de necessidades), que pretende conseguir os meios para viver feliz, reproduzir-se e obter prazer, está num caminho absolutamente diferente do nosso.

O mundo como Representação, diria Schopenhauer, é o mundo da aparência, do superficial e material, que tem como cúspide a ciência, o mais perfeito conhecimento do Representativo. Mas atrás do conhecimento esconde-se a Utilidade, primeiro degrau inevitável em direcção ao inferior, em plena representação ilusória da realidade, para cair, por fim, na Felicidade e no Prazer como únicos fins capazes de se alcançar nesse caminho do aparente.

Quando se pergunta a alguém qual o seu objectivo na vida, são cada vez mais os que respondem “ser felizes”, e a essência dessa “felicidade” é a ausência de dor, o cumprimento das necessidades (as “utilidades”) e a Posse de elementos representativos, materiais, capazes de dar esse prazer. E em todos os casos satisfazer necessidades psicológicas como segurança e auto-estima, sem nenhuma referência a cumprir algum Dever ou melhorar a sua qualidade humana.

Frente a esse caminho centrado no material, há outra forma de entender o desenvolvimento pessoal, o que Schopenhauer chamou a “Vontade”, que implica a compreensão da dimensão perecedoura de tudo o que é Representativo e pretender uma acção transcendente, algo que nos eleve sobre o humano. É a luta como caminho heróico, não egoísta nem útil. 

Quando um ser humano aceita que a sua vida tem como objectivo a sua elevação a Pessoa, acto nunca acabado, uma luta permanente entre as tendências para o Prazer do superficial e a Vontade de sobrehumanidade, é nesse momento que se necessita de Wagner. Herói não é quem comete actos extraordinários mas quem vive a própria vida como um acto contrário ao egoísmo utilista. O acto heróico é um desafio da Vontade à Utilidade, e é sempre um acto Trágico.

O Sentimento e a Arte formam esse caminho para a essência real interior, frente às aparências dos feitos materiais. Assim, podemos assumir na nossa vida um objectivo “normal”, “representativo”, ou pretender assumir a construção da Pessoa, o caminho heróico contra o “possuir” e o prazer material, e de alguma forma, nesse caso, assumir a Tragédia como essência da vida superior. Para quem recorde “Siegfried”, Fafner “possui” o Ouro, e essa posse “fá-lo feliz”, dorme e descansa porque “tem tudo” na sua posse do material. Essa é a felicidade “humana” de quem não procura ser “pessoa”.

A Tragédia como essência da Pessoa

O “heróico” não é o mero acto singular de valor mas antes assumir a vida como um acto Trágico. De certa forma o debate é entre o Vulgar e o Trágico, entre a Utilidade e o Heróico, entre Representação e Vontade. Uma pessoa tem a possibilidade de orientar a sua vida para o “útil”, ou seja esforçar-se por cumprir as suas necessidades e desejos. O Sentido Trágico da Vida consiste em superar essa tentação e orientar a vida contra o egoísmo, na seriedade e na superação. E este caminho é uma Tragédia em si mesmo.

Não há que entender o “Trágico” como triste ou pessimista, significação saída precisamente da visão utilista da vida. Para o utilismo tudo o que é heróico é doloroso, implica uma renúncia ao prazer imediato do material, de alguma forma é “triste e pessimista”. Em parte o “Trágico” significa sempre Dor, renúncia ao prazer que dá a Posse e cumprimento dos egoísmos. Mas não significa tristeza, de todo. 

Calderón escreve jocosamente:” Bem-aventurado o que vive enganado”, que é a expressão máxima da Representação, da “utilidade”. Quem assume a essência e não se deixa enganar pela representação superficial, aparente, da vida, está condenado a não ser “feliz”, a sofrer, pois a felicidade do “vulgar” baseia-se fundamentalmente em viver “enganado”(no “dormir” da Posse de Fafner), em não aprofundar, em enganar a essência da pessoa com argumentos de utilidade superficial. Uma vez dizia-me um amigo “se a minha mulher me enganar não quero saber, pois assim não terei sofrimento”. Ou dito mais duramente: se não conheço o “trágico” poderei desfrutar do “cómico”. Se bloqueio a minha sensibilidade profunda poderei desfrutar das alegres aparências dos bens, dos prazeres instantâneos que dá a Posse face à tragédia que dá o Sentimento. Possuir dá um instante de prazer, sentir permite uma essência superior, mas ao mesmo tempo abre a consciência ao sofrimento, ao trágico. Prazer frente a Dever, o Cómico frente ao Trágico.

Unamuno escreveu “O Sentido Trágico da Vida”, um livro para expressar este caminho, “a vida é tragédia e a tragédia é luta perpétua, sem vitória nem esperança dela”. De certa forma a morte marca o fim do trágico…”a vida é tragédia” mas a morte é a confirmação do valor da Tragédia face ao Cómico. Se não aproveitamos esse esplendor de vida entre dois vazios, se não temos Vontade de Poder nesse segundo de vida pessoal, o significado dessa vida é jocoso, é Cómico, somos nada e vamos para o nada. Só o sentido Trágico, o esforço para ser sobre-homens, pode dar sentido a esse instante de vida. Dar-lhe sentido pelo prazer e a utilidade do representativo é rebaixar a nossa qualidade humana.

Para Schopenhauer o sentido trágico resume-se na renúncia, no eliminar dos desejos egoístas. Para Nietzsche na Vontade de Poder, em superar-se através da Vontade. O egoísmo, para Nietzsche, não é impor a vontade própria mas orientar essa vontade para o baixo e o miserável em vez de para a potência e a superação. 

Para a religião a Tragédia é a Compaixão pela dor do mundo. Cada um trata de procurar uma solução para a sua tragédia pessoal. É neste sentido que a Tragédia é a essência pura da Arte, é a forma extrema de fazer surgir os sentimentos mais profundos e menos egoístas, menos úteis.

E a Política, não a “política” miserável do imediato, deve ser um acto Heróico para dar a todos a possibilidade da Arte do Trágico. Ou seja, estabelecer as condições materiais e sociais que permitam a cada homem da comunidade poder desenvolver, se o quiser, a sua personalidade e rebelar-se contra o domínio do seu prazer material, despertar o seu Sentimento face ao seu desejo de Posse, alcançar pela arte a sobrehumanidade.

No Trágico narram-se os desafios da Vontade sobre o devir dos homens. Na Tragédia o herói levanta-se e observa a Vontade que o insulta e persegue, está inclusive disposto a renunciar à vontade de viver pela sua Honra (a sua Vontade de superação). Com ele o herói não só redime as suas culpas individuais mas combate o rebaixamento vulgar da humanidade, mostra-nos o caminho da redenção.

Ser ou Deus?

"No paganismo, os deuses não se confundem com o Ser. Não são as causas de todas as formas de ser. Heidegger, dentro do mesmo espírito, diria em 1951: 'Ser e Deus não são idênticos e nunca tentarei pensar na essência de Deus como sendo o Ser (...) Creio que o Ser nunca pode ser pensado como estando na base e como essência de Deus e a sua manifestação pode tocar o homem, é na dimensão do ser que ela fulgura o que não significa de forma alguma que o Ser possa ter o sentido de um predicado possível para Deus.'
Heidegger quer dizer com isto que é no Ser que o deus pode chegar, mas que não chega como a última palavra do Ser. Ao contrário, a teologia cristã identifica o Ser como Deus criador, fazendo deste o primeiro e incondicionado fundamento, a causa absoluta e infinita de todas as formas de ser. No entanto, o cristianismo condena-se a não se poder manifestar sobre o horizonte ontológico ao qual chama o mistério do Ser.
As línguas indo-europeias não dispõem rigorosamente de nenhum termo para designar o ser supremo do monoteísmo bíblico. A atribuição a este último da palavra 'deus', ornamentada com uma maiúscula e de acréscimo arbitrariamente privado de feminino e de plural, é uma convenção perfeitamente arbitrária: onde nos habituámos a ler 'Iavé o teu Deus'(DT.18,15) deve ler-se na realidade, segundo o texto hebraico: 'Iavé Adonai, o teu Elohim'. Uma tal tradução esvazia a palavra 'deus' do seu sentido original para lhe atribuir outro. Cria a ilusão de que todas as religiões têm um 'Deus' e que só se diferenciam pela forma de o designar, encobrindo ao mesmo tempo que através da mesma palavra designamos realidades totalmente diferentes. Quem quer falar de 'deus' não se pode privar desta ambiguidade."
(Alain de Benoist)

12/01/2011

Opulência?

"É verdade que os homens são mais felizes hoje que em outros tempos, porque dispõem de meios de comunicação mais rápidos ou de outras coisas desse tipo? Nos parece que em verdade é tudo o contrário: o desequilibrio não pode ser a condição de uma verdadeira felicidade. Por outra parte, quantas necessidades a mais tenha o homem, mais corre o risco de carecer de algo e, por conseguinte, de ser desgraçado."
(René Guenon)

O Dinheiro, a Imprensa e a Democracia

por Oswald Spengler

"O que é a verdade? Para a multidão é aquilo que continuadamente lê e ouve. Uma pequena gota perdida pode cair algures e reunir terreno para determinar “a verdade”, mas o que obtém é apenas a sua verdade. A outra, a verdade pública do momento, que é a única que interessa para resultados e sucessos no mundo dos factos, é, hoje em dia, um produto da imprensa. O que a imprensa quer torna-se verdade. Os seus dirigentes evocam, transformam, permutam verdades. Três semanas de trabalho da imprensa, e a verdade passa a ser reconhecida por toda a gente.

As suas bases são irrefutáveis enquanto o dinheiro esteja disponível para as manter intactas. Também a retórica Clássica foi concebida para o resultado e não o conteúdo – como Shakespeare brilhantemente demonstra na oração do funeral de António – mas essa estava limitada à audiência presente e ao momento. O que o dinamismo da nossa imprensa pretende é a eficiência permanente, manter a mente dos homens continuamente sob a sua influência. Cada argumento é derrubado assim que a vantagem do poder financeiro passa para o contra-argumento e passa a levar este último ainda com mais frequência aos olhos e ouvidos dos homens. Nesse momento a agulha da opinião pública inclina-se para o pólo mais forte. Todos se convencem imediatamente da nova verdade e passam a olhar para si próprios como tendo sido acordados do erro.

Com a imprensa política existe a necessidade de uma educação escolar universal, que no mundo clássico estava completamente ausente. Nesta exigência existe um elemento algo inconsciente de desejar conduzir o rebanho das massas, como objecto da política partidária, ao encontro do poder dos jornais. O idealista da democracia nascente olhava a educação popular, sem reservas, como esclarecimento (“iluminismo”) puro e simples, e ainda hoje encontramos aqui e ali cabeças fracas que se entusiasmam com a Liberdade da Imprensa, mas é precisamente isto que abre caminho para os vindouros Césares da imprensa mundial. 

Os que aprenderam a ler sucumbem ao seu poder, e a auto-determinação visionária da democracia tardia resulta numa determinação total do povo pelos poderes a quem a imprensa obedece.

Nas disputas do presente a táctica consiste em retirar ao adversário esta arma. Na infância pouco sofisticada do seu poder, o jornal sofreu com a censura oficial que os campeões da tradição lhe impuseram em auto-defesa, e então a burguesia chorou porque a liberdade do espírito estava em perigo. Agora a multidão segue placidamente o seu caminho, conquistou definitivamente para si esta liberdade. Mas nos bastidores, longe da vista, as novas forças combatem-se comprando a imprensa. Sem que se observe, o jornal, e com ele o leitor, muda de mestre. Também aqui o dinheiro triunfa e obriga os espíritos livres ao seu serviço. Não há domador que tenha os seus animais sob maior controlo. Soltem o povo, como leitor-massa, e explodirá pelas ruas jogando-se contra o alvo indicado, aterrorizando e partindo montras; basta uma indicação ao staff da imprensa e o povo acalmar-se-á e irá para casa. A imprensa é hoje um exército com armas e ramos cuidadosamente organizados, com os jornalistas como oficiais e os leitores como soldados. Mas aqui, como em qualquer exército, o soldado obedece cegamente e os objectivos de guerra e planos de operações mudam sem o seu conhecimento.

O leitor não sabe, nem é autorizado a saber, os propósitos para os quais é usado, nem sequer o papel que irá desempenhar. Uma mais aterradora caricatura da liberdade de pensamento não poderia ser imaginada. Antigamente um homem não se atreveria a pensar livremente. Agora ele atreve-se, mas não consegue; a sua vontade de pensamento é apenas uma vontade de pensar dentro da ordem, e é isto que ele sente como sendo a sua liberdade. 

E o outro lado desta liberdade tardia é permitir a todos dizer o que lhes apraz, mas a imprensa é livre de tomar nota do que é dito ou não. Pode condenar qualquer “verdade” à morte simplesmente não a comunicando ao mundo, uma terrível censura de silêncio, que é ainda mais potente porque as massas de leitores desconhecem em absoluto que existe. (…)

A ditadura dos partidos é suportada pela da imprensa. Os competidores esforçam-se através do dinheiro para afastar os leitores das alianças hostis e para os colocar sob o seu treino. E tudo o que aprendem nesse treino, é o que foi considerado que deveriam saber, porque uma força mais alta define a imagem do seu mundo por eles. Não há agora necessidade, como havia com os príncipes barrocos, de impor a responsabilidade do serviço militar uma vez que se açoitam as almas com artigos, telegramas e imagens até que o clamor por armas obrigue os líderes a um conflito para o qual queriam ser obrigados.(…)

O pensamento, e consequentemente a acção, das massas é mantido sob um controlo férreo, razão pela qual, e apenas por essa razão, aos homens é permitido serem leitores e votantes, isto é, numa escravidão dupla enquanto os partidos se tornam os séquitos obedientes de uns poucos, e a sombra do cesarismo vindouro já os toca.

Como sucedeu à monarquia inglesa no século XIX, também os parlamentos se tornarão, no século XX, um espectáculo pomposo e vazio. Como antes com o ceptro e a coroa, são agora os direitos do povo que são exibidos em parada para a multidão, e quanto mais escrupulosamente menor o seu verdadeiro significado. Foi por esta razão que o cauteloso Augusto nunca deixou passar uma oportunidade para realçar os antigos e venerados costumes da liberdade romana. Mas o poder está a migrar ainda hoje, e consequentemente as eleições estão a degenerar para nós na farsa que eram em Roma. O dinheiro organiza o processo no interesse daqueles que o possuem, e as eleições tornam-se um jogo pré-concertado que é encenado como auto-determinação popular. 

Se a eleição foi originariamente revolução em formas legítimas, esgotou essas formas, e o que acontece é que a humanidade volta a “eleger” o seu destino pelo método primitivo da violência quando as políticas do dinheiro se tornam intoleráveis.

Através do dinheiro, a democracia transforma-se na sua própria ruína, depois do dinheiro ter destruído o intelecto. Mas, porque a ilusão de que a actualidade pode permitir-se ser melhorada pelas ideias de um qualquer Zeno ou Marx desvaneceu, porque os homens aprenderam que no reino da realidade uma vontade-de-poder pode apenas ser derrubada por outra [ pois esse é o grande ensinamento humano dos períodos dos “Estados em Guerra” (NdT: da História da China)], desperta finalmente um profundo desejo por toda a antiga e valorosa tradição que ainda permanece viva. Os homens estão cansados e enjoados da economia-dinheiro. Anseiam por salvação de um lado qualquer, por algum sentido real de honra e cavalheirismo, de nobreza interior, de abnegação e dever. E agora amanhece o tempo em que os poderes do sangue, que o racionalismo da Megapolis havia suprimido, despertam nas profundidades. Tudo na ordem da tradição dinástica e da velha nobreza que se salvou para o futuro, tudo cuja ética desdenha o dinheiro, tudo o que é intrinsecamente firme para, nas palavras de Frederico o Grande, servir, trabalhar duramente ,sacrificar-se, cuidar do Estado, tudo o que descrevi noutra parte e numa palavra como Socialismo em contraste com Capitalismo (NdT: cf. “Prussianismo e Socialismo”. O socialismo de Spengler era tradicionalista e hierárquico, sem relação com marxismos ou socialismos liberais), tudo isto se torna, subitamente, o centro de imensas forças vitais. O Cesarismo cresce no solo da democracia mas as suas raízes penetram a fundo no subsolo da tradição do sangue. 

O César Clássico derivava o seu poder do Tribunato, e a sua dignidade, e portanto a sua permanência, do facto se ser o Princeps. Também aqui a alma do antigo Gótico desperta de novo. O espírito das Ordens de Cavalaria supera a pilharia viking. Os poderosos do futuro podem possuir a terra como sua propriedade privada pois a grande forma política da Cultura está irremediavelmente em ruínas, mas não interessa, porque, por informe e ilimitado que o seu poder possa ser, tem uma tarefa. E essa tarefa é a incansável preocupação por este mundo tal como é, que é o exacto oposto do oportunismo vigente na era do poder do dinheiro, e requer elevada honra e consciência. Mas por esta mesma razão instala-se agora a batalha final entre a Democracia e o Cesarismo, entre as forças que lideram a ditadura da economia-dinheiro e a vontade-de-ordem puramente política dos Césares.(…)"